Mãe, posso ir?
Não filha, hoje não. É muito longe e está muito calor.
Eu quero mãe, por favor.
Não, hoje não.
Era noite ainda. No céu, as estrelas cintilavam contentes, como se dançassem a Danúbio Azul, num imenso salão de baile pintado de azul noite.
A mulher vestia-se. Com uma mão cheia de água lavou o rosto e calçou os gastos sapatos que usava para os trabalhos no campo; dispunha-se a sair.
A menina saltou da cama qual saltão verde dos campos e correu para a porta.
Eu também vou mãe, eu quero ir. Choramingava.
Com carinho, a mulher dizia-lhe que não que não podia. Mais choro, mais teimosia, que teimosa era ela.
A mãe perdeu a paciência, estava atrasada. Os outros esperavam-na já. A caminhada era longa e o dia ia ser muito comprido. O fidalgo tinha muito pão para ceifar. Da aldeia ia uma tropa de vinte, rapazes e raparigas. Deu-lhe uma nalgada e fê-la voltar para a cama.
Saiu para a rua e sentiu frio. A madrugada estava fresca. Corria um vento agreste. Embrulhou-se no delido xaile e disparou pela ruela abaixo. A menina chorou até voltar a adormecer.
Chegou esbaforida junto dos companheiros de jornada. Parece que não querias vir rapariga. Mais um cibinho e íamos embora. Foi a menina, queria porque queria vir comigo. Tive de lhe sacudir o pó para que me deixasse vir. Bem, vamos lá embora rapazes.
Era fim de julho, quase agosto e ainda havia pão para cortar. Era tempo de muito trabalho, de muita canseira. Tinha de ser, o dinheiro fazia muita falta e era quando se ganhava algum.
Era uma vida difícil. Tinham de caminhar muitos quilómetros por dia, de uma aldeia para outra, à procura do seu sustento. Os dias eram quentes como um deserto e desde que se começava a labuta até que se matava o bicho passavam muitas horas.
Bebia-se muito vinho e pouca água. O vinho era farto, a água escassa. O calor era tanto que parecia que o vinho não tinha força suficiente para embebedar e não embebedava. Esvaia-se pelos poros sem deixar mácula.
Quando chegavam as mulheres da casa com o almoço, as mãos eram um prolongamento da foice. Procurava-se uma sombra. As pernas e as costas recusavam-se a dobrar. No entanto, o cheiro bom da comida, alegrava a alma e o estômago. Cantava-se, ria-se, dançava-se ao som do realejo que alguém levava no bolso como fiel companheiro.
Dava-se tempo ao calor para se afastar um bocadinho e a foice voltava à vida. Quase autónoma, independente do pensamento que voava. Uma mulher iniciava um canto e todas as outras a acompanhavam. "Quem canta seus males espanta".
Era verão, quase agosto. Era-se feliz com tão pouco. Sofria-se tanto sem saber!
Mara Cepeda
Boa noite, Mara
ResponderEliminarA segada! essa palavra mítica, símbolo de todas as canseiras, de todos os desafios mas, apesaar disso, era o tempo do pão! Ainda a fiz por muitos anos, de foice na mão. É muito difícil de descrever o trabalho daqueles autómatos. São bonitos os seus textos de memórias: o tempo continua a irradiar uma força enorme. Até as palavras se transfiguram
beisico
Amadeu
Olá Amadeu,
ResponderEliminarSem dúvida nenhuma que de todas as canseiras da segada resulta o pão de que tanto gosto.
Nunca participei em nenhuma e, realmente, não sei nada sobre ela. Apenas tenho memórias de menina e conversas ouvidas, aqui e ali, aos meus pais, sogros e avós.
O que é interessante é que, apesar de todos os trabalhos, unanimemente as recordam como momentos de alegria e convívio.
Depois de um longo e extenuante dia, faziam bailes e todos dançavam ao som dos realejos e concertinas.
O tempo, apesar de ainda me considerar bastante jovem, pesa muito. A alegria também. O pensamento, sempre tão irrequieto, adquire asas e voa. As palavras, essas, ganham vida, autonomizam-se.
Estou a ler "La Bouba de La Tenerie". A cada dia que passa compreendo melhor e descubro a beleza do mirandês. Tento, ao mesmo tempo, entender a história e a língua. Tarefa difícil!
Obrigada Amadeu por este novo desafio. Beisico
Mara
Querida amiga
ResponderEliminarYe berdade que la segada era alegre, mas era ua alegrie triste i mui cansada, tal i qual cumo diç la cantiga que se cantaba:
A modinha da segada
Ela é muito alegre
Parece que vai dizendo
Quem t'arramou que te segue.
Ela era um grande desafio, mas dela dependia um ano de pão e/ou o ganhar jeiras essenciais para o resto do ano, para além de se comer melhor que na maioria dos dias do ano. Tudo isso junto já não era pouco e, apesar de cansativo, trazia alegria.
Obrigado por estares a ler La Bouba de la Tenerie. É uma honra que me emociona. Espero que nem o escritor nem a língua desiludam.
beisico
Amadeu
Olá Amadeu,
ResponderEliminarComo correu a homenagem ao Pires Cabral?
O Ernesto e a Teresa estiveram aqui em casa. Vinham muito bem dispostos, sinal de que tudo correu às mil maravilhas. Fui levá-los ao IBIS. Vão embora amanhã de autocarro.
O Ernesto fez o favor de nos oferecer o "Fastigínia" e "O Romance do Gramático".
Vejo, Amadeu, que conheces muito bem as segadas. Tens a perspectiva de quem teve a pele tisnada pelo sol inclemente, as narinas queimadas pelas "faúlhas" da palha, as mãos dormentes pelo incessante ceifar...
Não "sei" esse sofrimento. Não "sei" essa triste alegria...
Quanto a "La Bouba de la Tenerie", apanhou-me. Quando um livro me prende, não durmo até acabar de o ler. Ontem deitei-me às quatro da manhã, hoje, logo se vê.
Beisico
Mara