segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

VARGE – A FESTA DOS RAPAZES

Viver a celebração pagã do solstício do Inverno em convívio harmonioso com o Natal cristão é o que poderemos considerar acerca dos peculiares rituais que ocorrem no contexto das festas dos rapazes. Exemplo dos mais representativos e simbólicos deste fenómeno é o Natal celebrado em Varge, aldeia situada na Baixa Lombada, atravessada pelas águas límpidas do rio Igrejas, com a celebração da festa dos rapazes. É como se as antigas e pagãs festas chamadas Juvenálias, protagonizadas pelos jovens, estivessem, dois mil anos passados, em plena actualidade.
A festa é anunciada no Dia de Todos os Santos, com a reunião dos rapazes para a recolha da Lenha das Almas. Já no mês de Dezembro, os preparativos intensificam-se com as rondas à aldeia, todos os sábados, ao som da gaita de foles, para uma visita à casa de todos os rapazes participantes.
No dia de Natal, à hora aprazada, reunem-se os rapazes na casa da festa. Devidamente perfilados em formatura, com os mordomos, revestidos das insígnias do seu poder – um chapéu enfeitado - e o gaiteiro à frente, dirigem-se para a missa. Já no espaço do adro, a formatura dá duas voltas à igreja até parar em frente à porta principal. O gaiteiro cala-se para que todos possam entrar no espaço sagrado sem o som da música profana que, segundo as determinações eclesiásticas, “da porta da igreja para dentro não toque gaiteiro nenhum a gaita”.
No final da missa, os rapazes saem a correr para se indumentarem com seus fatos de mascarado. Chegou a hora de os “caretos” entrarem no exercício das suas funções. Transformam-se em figuras diabólicas e mágicas, sob a máscara de latão pintado, o colorido dos seus fatos, com fitas, campainhas e chocalhos à volta do corpo.
Entretanto, os mordomos saem também, transportando a imagem do patrono dos rapazes – Santo Estêvão – no percurso entre a igreja e o largo onde vão ser recitadas as “loas”.
As loas são uma espécie de revista do ano e constam da proclamação dos acontecimentos ridículos ou como tal apreciados, ocorridos durante o ano. É o ritual solene da crítica social institucionalizada. A crítica social é uma das funções dos mascarados a que o povo tem de assistir porque a ele diz respeito.
Reunido no largo, o povo aguarda com expectativa. No meio de uma algazarra enorme, o primeiro interveniente sobe ao carro para saudar o povo.
Cada um dos que se segue tem a seu cargo o relato, em verso, de um dos acontecimentos seleccionados. Recita de memória um rosário de quadras por ele próprio engendradas, com a cara encoberta pela máscara para não ser identificado. No final de cada quadra, os colegas aplaudem à sua maneira.
Alguns destes factos são representados ao vivo. Os actores são os próprios rapazes que assumem o papel das personagens intervenientes no caso: de mulher, de velho ou mesmo de animais.
A primeira representação refere-se a um conflito familiar que pôs em confronto uma mulher da aldeia e seu primo pela posse da casa deste que ele queria doar à sobrinha. No auge da discussão houve insultos e empurrões e só terminou com a intervenção da Guarda Nacional Republicana.
No segundo acto é representado o despique entre dois vizinhos, pretendendo cada um leiloar para si as terras pertencentes à confraria de S. Sebastião. Um deles chegou a vias de facto, agredindo o outro que teve que receber tratamento hospitalar.
O ritual chegou ao fim e o povo dispersa. Agora é o momento de os “caretos” darem largas às suas diabruras, de manifestarem a sua superioridade perante todos executando actos de valentia, desafiando os próprios elementos da natureza, o rigor do clima e colocando-se acima das normas sociais instituídas.
Segue-se o cerimonial mais solene da festa, a ronda das Boas Festas. Mordomos e gaiteiro à frente, organiza-se o cortejo que percorre a aldeia, de porta a porta, ao som da música da gaita, dos gritos, das pantominas e da chocalhada dos “caretos”.
Os mordomos carregam cada um sua vara, em forma de árvore com muitos ramos, onde colocam os presentes que os donos da casa lhes oferecem. Param em todas as casas e saúdam os donos que os recebem à porta.
Recebem os presentes: fruta, figos secos, roscas de pão, peças de fumeiro… e dinheiro. Bebe-se um copo e o percurso protocolar prossegue para a casa seguinte, em acto de propiciação dos bons augúrios para a natureza e para a comunidade.
Entretanto, os “caretos” desenvolvem a sua própria actividade em ordem à recolha de fundos para o financiamento da festa. Interpelam os forasteiros, exigindo-lhes um pequeno contributo, condição sem a qual não os deixam prosseguir a sua marcha.
A corrida à rosca é já ao anoitecer. Um teste à resistência física dos jovens iniciados. Os vencedores recebem uma rosca de pão, compartilhada fraternalmente por todos.
À noite, a ceia dos rapazes. Como em qualquer sociedade secreta, só eles participam na refeição, por eles mesmo confeccionada, e naquele espaço a ninguém mais é permitida a entrada. Segue-se o baile intercalado com a música do gaiteiro com a da mais moderna aparelhagem sonora.
O Santo Estêvão celebra-se no segundo dia de festa, 26 de Dezembro. O acto religioso dedicado ao santo é a missa dos rapazes. Pese embora a noitada anterior, todos marcam presença. Uma vez mais se identificam as duas celebrações: a pagã e a cristã. Uma vez mais o sagrado e o profano andam de mãos dadas.
O almoço é mais um convívio comunitário só para rapazes. Mas esta refeição reveste-se de um simbolismo muito especial – a eleição dos novos mordomos, os que irão dar continuidade à festa. A milenar tradição está entregue e em boas mãos. Para assinalar este facto, organiza-se um cortejo que se dirige para a casa dos mordomos eleitos, ao som da gaita de foles, dançando e cantando ao longo das ruas. Em cada uma das casas come-se e bebe-se abundantemente; é que a festa dos rapazes de Varge está por fim mas a sua continuidade está devidamente assegurada.
António A. Pinelo Tiza

1 comentário:

  1. Um grande abraço para o meu amigo António Tiza, que tantas recordações me despertou ao lê-lo.
    Bela entrevista.

    Amadeu Ferreira

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