sábado, 25 de fevereiro de 2012

Entrevista 2: Dr. Hirondino da Paixão Fernandes

“E pelo Parâmio se quedou (para onde é que haveria de ir!), jogando a porca, ou brincadeira que a valha, até que entrou para a escola primária, já um tudo-nada tarde, porque tinha a “trave” - ainda recorda a intervenção (cirúrgica), no cimo das escaleiras da casa, com uma vulgaríssima tesoura de costura, “samumbém” enferrujada e “roma”, mas esterilizada... com algum "bucho" de aguardente).”
Doutor Hirondino, como seu antigo aluno, não resisti a fazer uso desta bela frase que faz parte do seu currículo e reporta-nos à sua infância. Fale-nos da sua meninice.

Não sei a bem dizer, o que deverei lembrar, tive uma meninice como todos os demais, uma meninice, como já frisou, a jogar a “porca”, o “tirolilo”, jogos que tínhamos na altura. Um pouco depois ia com as vacas para o lameiro, mesmo em período de férias e, depois foi deixar o Parâmio e vir para Bragança.

De que forma o facto de ter nascido nesta região o marcou?

Marcou-me profundamente. É esta região que tenho sempre presente em mim. Concluí a universidade e vim para Bragança. Podia ter ido para longe, mas não o fiz, fiz o estágio e vim para Bragança e, uma vez em Bragança, sabendo que, mais dia, menos dia sairia de cá, fui para Coimbra e, uma vez mais em Coimbra lá estou eu, sempre a pensar em Bragança. Prova disso a Bibliografia do Distrito de Bragança, pequenos outros trabalhos, mas múltiplos, todos eles tendo como pano de fundo coisas da nossa terra.

O bom filho volta sempre a casa, não é?

O bom filho volta sempre a casa, psicologicamente, intelectualmente, porque fisicamente tem que ficar por fora.

Como seu antigo aluno, atrevo-me a pedir-lhe que nos fale da Trave…

A Trave, já lhe soube o nome científico, é uma prisão da língua, sublingual não é? Que prende um bocadinho a língua e que nos obriga a pronunciar o “R” natural, e não o “R” pronunciado com a ponta da língua; fora disso penso que não tem outros problemas, tem esse que é o de não pronunciar o “R”.

Que não é problema nenhum...

Não é problema nenhum, foi em parte anulado com a tal tesoura, esterilizada com um bucho de aguardente, porque álcool nas aldeias, na altura, não havia e os médicos também não o levavam.

Tinha de ser com aguardente…

Os organismos resistem muito e o meu resistiu a uma pequena cirurgia do corte dessa ligeira prisão sublingual. Claro que só cortou um bocadinho, não o suficiente. Já agora, este esclarecimento, cortou só um bocadinho, porque não gostei da brincadeira. Foi o Dr. Rapazote, que me disse que aquilo não era nada mas, quando senti a tesoura a cortar, ele quis cortar mais, mas depois não deixei. Até me deu jeito como professor de francês, que fui, mais tarde, pois fiquei com uma pronúncia mais correcta.

Fale-nos da sua experiência como aluno no Liceu Nacional de Bragança.

Um aluno como tantos mais, sem nada de especial, fui andando, foram passando os anos. No 5º ou 6º ano fundei o “Alvorada”, no 7º ano fui presidente da Academia e mais nada, portanto, não vejo assim nada de especial como aluno do Liceu de Bragança.

Do seu curso universitário, diz o seu currículo, que foi incolor, inodoro, insípido, mas não cristalino. Fale-nos dessa experiência.

Cristalino não sei bem. Agora, porque é que na altura classifiquei o curso incolor e inodoro sei, porque não foi o curso que realmente esperava, que eu gostava. Feito o 1º e 2º anos não podia voltar atrás, não podia sacrificar mais quem tanto sacrifício fazia para me manter em Coimbra e, não houve outra alternativa que não fosse a de continuar e assim foi. Conclui o curso quando, na verdade, eu gostaria de ir para Engenharia de Máquinas, por estranho que pareça. Só o disse a dois ou três amigos até à data e digo-o, agora, em público.

É para nós uma honra. Depois habituou-se a gostar daquilo em que se formou, não é verdade?

Depois, naturalmente que gostei, embora, em casa, quando passava por um sítio onde houvesse uma maquineta, os meus olhos iam logo para o sítio da maquineta, das mais pequenas às maiores, desde máquina de fotografar até máquina de cinema.

São palavras suas: “Colaborou, como a miudagem sabe e pode, em "Alvorada" e "Presença" (que fundou, como se disse) e, mais tarde, em "Mensageiro de Bragança", "Brigantia, "Gil Vicente" e "Tellus…” Fale-nos, por favor, dessa sua faceta.

O “Alvorada” foi do tempo do liceu, um jornalito pequeno, naturalmente, como um começo da nossa actividade jornalística e que resultou também um jornal de parede. “O Presença” era um jornal, começou por ser um jornal dos alunos de um segundo, terceiro ano do curso geral do comércio, inteiramente da nossa responsabilidade, porque sua excelência, o Sr. Director, com todo o devido respeito que a sua memória merece, não quis saber da nossa aventura. Saíram uns dois ou três números, venderam-se muito bem e, nessa altura, o Sr. Director já não se importou de tomar à conta da escola a responsabilidade do jornal.

Com certeza...

E o jornal por aí foi, deixou de ser de meia dúzia de alunos, para passar a ser um jornal da escola inteira, onde colaboravam tantos e tantos alunos, desde o Marcolino Cepeda, que temos o prazer de ter aqui ao nosso lado e muitos professores também.

O Senhor Doutor também colaborou?

Eu também colaborei. A princípio foram os primeiros da nossa responsabilidade, depois fui embora, veio outro director, eu era um simples professor provisório, veio o novo director, deu-lhe um novo formato e, quando eu regressei, já depois do estágio e como director da escola, transformei-o em boletim. Nessa altura é que os professores começaram a trabalhar, a colaborar nele com belíssimos trabalhos. Depois vieram os outros com pequenos artigos, o “Mensageiro de Bragança”, “O Tellus”, porque em dada altura, comecei a pensar a sério numa bibliografia do distrito que, aliás, tinha iniciado no “Mensageiro de Bragança”, com um fim completamente diferente daquele que veio a tomar depois. A princípio era apenas destinado aos alunos da escola, em que procurava apenas dar conta daquilo que havia em Bragança. Uma vez saindo daqui e indo para Coimbra e sem perder portanto o norte, dei-lhe uma amplitude completamente diferente e, começou a Bibliografia de Bragança e, com ela pararam as pequenas publicações, porque não havia a mínima hipótese de tempo. A Bibliografia de Bragança consumiu-me muitas e muitas horas de trabalho.

A sua vida profissional está intimamente ligada ao ensino. Fale-nos da sua experiência enquanto docente.

Já lhe disse que eu tinha errado o curso, pois deveria ter ido para o campo das “maquinetas”, etc. Mas também foi muito gratificante trabalhar como professor. Presumo que houve um ou outro aluno que não terá gostado muito que eu não o tenha deixado correr, saltar, brincar nos bastidores mas, a maioria, não terá uma impressão muito má do director, nem do professor. Eu tenho uma impressão belíssima de todos eles. Recordo-os a todos com imensa saudade, dos professores também, embora com uma ou outra excepção.

Posso dizer, então, que aprendeu o seu curso e a sua profissão.

Sim, sem dúvida nenhuma. Era realmente com prazer que entrava nas aulas, mesmo aquelas mais barulhentas, porque às vezes eram e, depois do 25 de Abril foi pior ainda, mas felizmente nunca tive problemas.

Tem dedicado a sua vida à escrita e à investigação em diversas áreas, tendo por isso vastíssima obra publicada. Fale-nos dessa paixão.

Essa “vastíssima” é com alguma amabilidade sua, enfim, algumas centenas de artigos, quase todos sobre Trás-os-Montes. Não colaborei em mais alguns artigos porque a Bibliografia levou-me muito tempo. A colaboração em determinado jornal começou, mas durou pouco, porque entretanto suas excelências, não sei quem, resolveram trincar aqui, acrescentar acolá, fazer isto, fazer aquilo e eu achei que assim não, que assim o trabalho não era meu, que o fizesse quem quisesse nessa publicação periódica, nas outras não tive tempo.

Pois é, mas a grande obra da sua vida está ainda por publicar. Podemos dizer que está a fazer um trabalho hercúleo, com uma série de autores e que já vai em cinco mil páginas. De que consta esta sua imensa e importantíssima obra?

Portanto, a série de autores que como sabe são três séries: a Série Documentos, que estão publicados, são quatro volumes; a Série Iconografia que, muito provavelmente, ficará só nas intenções, com tristeza o digo, mas São Pedro não me vai dar forças nem tempo para a iniciar; a outra, a Série de Autores trata simplesmente disto, dos autores do distrito de Bragança, de tudo quanto escreveram, quer sobre a terra quer sobre coisas que não são da terra, caso de um artista, caso de um médico, menção completa de tudo quanto escreveram, na medida do possível. Não são monografias, são grandes títulos e, esses seria supérfluo e inútil estar a referi-los, estão na Internet mas, essencialmente, aquilo que não está em lugar nenhum, que nunca ninguém procurou porque dá imenso trabalho, que são os artigos da revista e do jornal e nesses é que nós consumimos imensos anos da nossa vida. Para além dos autores naturais do distrito, referidos na pluralidade da sua produção, temos os autores estranhos ao distrito referidos apenas nas obras que tratam de coisas do distrito de Bragança se, por ventura, vindos para o distrito e que aqui ficaram por qualquer razão. Nessa altura referimos tudo quanto escreveram enquanto aqui estiveram, que é o caso por exemplo dos Bispos, enquanto Bispos de Bragança, que referimos tudo quanto fizeram. E tantos outros médicos, advogados, enfim, enquanto aqui estiveram.

Então esta, a Bibliografia do Distrito, é a sua vida?

É a principal, até pela vastidão dela. Para além disso, ainda há uma Série de Artigos Bibliográficos publicados, nas largas centenas de páginas, pois temos cinco mil e tal e falta-nos contactar os autores para nos forneceram dados bibliográficos que não temos, porque é muito difícil, praticamente impossível ter todas as publicações feitas em jornais e revistas. Prolifera ultimamente, depois do 25 de Abril, publicações em jornais e revistas, uns com mais, outros com menos.

Espera, então, que fiquem coisas por publicar?

Naturalmente. Eu tenho autores na ordem de cento e tal páginas. Junqueiro, por exemplo, tem duzentas páginas, Trindade Coelho passa as cem, o Senhor José Teixeira as cento e tal, enfim, e tantos outros.

De artigos de jornais?

Tudo, artigos de jornal e pequenas referências até, daquilo que eu chamo ecos da imprensa, pequenas referências mas que nos lançam das obras e vida de cada um deles.

Continuando com a obra da sua vida “Autores”, não sei se há mais alguma coisa que queira acrescentar sobre aquela que será a sua grande obra.

Por ventura dizer que, uma obra deste género, sobretudo em autores contemporâneos, é praticamente impossível sem a colaboração dos próprios. Os dados bibliográficos que só os próprios podem fornecer, dados bibliográficos que só eles poderão também completar, e nós consultamos dezenas, centenas, de publicações periódicas, desde um “Comércio do Porto” até a um “1º de Janeiro”, desde o início até 1950 mas, depois parámos, só num caso ou noutro pesquisamos e vimos as publicações periódicas do distrito, todas, mas não é possível voltar a vê-las todas no mesmo dia para dar o trabalho como actualizado, portanto, só os autores é que efectivamente nos podem dizer. Penso que serão uns dez volumes, na ordem das seiscentas, setecentas páginas, atendendo que dois, os consagrados às Publicações Periódicas e Anónimas e os consagrados aos Artistas serão menores, daí que aumenta o volume das outras. Espero, dentro de alguns meses, começar a contactar os autores e, espero que eles respondam, pois alguns não o têm feito, aqueles a quem temos pedido informações várias vezes. Se eu tenho que fazer uma obra perfeita e completa, o interesse deverá ser deles, porque temos que reconhecer e, que nos perdoe quem quiser, se não fosse um Inocêncio, se não fosse um Machado, muitos autores ficariam esquecidos, ninguém se lembraria deles.

É um homem ligado à cultura, uma referência para todos nós. Diga-nos, por favor, entende que a cultura, em Bragança, está no bom caminho?

É muito difícil… sabe que estas coisas só se podem avaliar vinte, trinta, cinquenta anos mais tarde, para se saber se Bragança ou outra cidade esteve no bom caminho. De momento parece que Bragança está num belíssimo caminho. Eu não vinha cá há três anos e, realmente, é um encanto vir a Bragança. Hoje, é um encanto vir a Bragança. Parece que está no bom caminho, mas a palavra final só pode ser daqui a cinquenta, cem anos.

Fala-se muito da falta de acessibilidades e da desertificação desta região. Estaremos condenados a desaparecer do mapa, mesmo estando muito bem localizados, frente à Europa Comunitária?

Outra pergunta deveras difícil. Não sei mesmo o que lhe dizer, pois realmente as dificuldades são grandes… eu próprio daqui a dois ou três dias já volto a fugir para Coimbra, não posso continuar aqui o meu trabalho e é certo que não o posso concluir lá em baixo sem vir cá acima mas, também, por culpa não sei de quem, porquê eu quero conhecer as publicações que se fizeram de há um, três anos a esta parte; quero conhecê-las quando estou lá em baixo e para o fazer eu tenho de vir cá acima porque elas não vão sozinhas para baixo. Culpa de quem não sei… eu quero consultar determinado jornal e tenho que vir cá acima, porque a última edição que eu tenho desse jornal de Bragança é do dia 23 de Março de 2004, isto em Coimbra, porque ou o jornal não enviou para o depósito legal as diferentes edições, ou o depósito legal não enviou para as diferentes bibliotecas as diferentes edições, de maneira que estamos isolados, não sei porquê, não sei como, não sei por culpa de quem, o que é facto é que estamos, o que é facto é que as aldeias como a minha, que tinham umas três ou quatro centenas de pessoas, têm hoje uma dúzia ou duas… é certo que já lá chegou a luz, a água, a estrada, coisas que não havia na minha infância mas, nessa altura também não tínhamos nada e toda a gente ria e cantava, toda a gente se sentia feliz e hoje, a única coisa que se vê e que se sente é uma revolta permanente, uma culpa de toda a gente, como se não fosse também de nós próprios.

Teme pelo futuro de Trás-os-Montes?

Sim, sem dúvida nenhuma! Algumas coisas não vão durar muito tempo, por mais artificialismos que se façam, por mais malabarismos que se façam, de uma rota para aqui ou para acolá. Não é com a protecção que se dê a um burro, que se vai evitar que a raça se extinga e que as aldeias também se extingam, pois muitas vão acabar e tem sido sempre assim ao longo dos séculos. Quantos restos de grandes cidades não temos encontrado? É só lançar o olhar para a história, ruínas aqui, ruínas acolá e o povoado desapareceu, para se construir um outro… então, não devemos ter ilusões, é a história.

Sem dúvida! “O futuro se encarregará de provar se apenas se tratou de um exercício de retórica ou de um programa para vingar e dar frutos”, são palavras do Dr. José Monteiro relativas ao 3º congresso de Trás-os-Montes e alto douro. Quer comentar?

Apenas dizer que o Dr. José Monteiro, se me permitem daqui mandar os meus cumprimentos, tudo quanto diz, diz com muito acerto e estou inteiramente de acordo com ele, inteiramente de acordo.

Podemos pensar num futuro risonho para o Nordeste Transmontano?

Eu não sei para quem é que o futuro poderá ser risonho. Não sei se para o Nordeste se para o Sudeste, Sul, enfim… não sei. Sei que o passado que era paupérrimo era risonho, como lhe disse. Cantávamos e ríamos quando éramos garotos e, em vez de um brinquedo todo robotizado, ficávamos todos contentes com uma bola de trapo para jogarmos à bola; agora não. Toda a gente tem tudo e anda descontente, de maneira que, por este caminho não sei onde vamos parar… tudo o que nos fazem é pouco e, quando há alguém que quer nivelar as coisas, porque anda tudo numa contínua barafunda, não faz nada.

Agora uma última questão que se repete em cada uma das entrevistas que realizamos. Que personalidade ou personalidades mais o marcaram ao longo da sua vida?

Sei lá, sei lá! Várias… não vou citar nome nenhum, mas pode ser “a” ou “b” que aqui na cidade ou no país fez isto ou aquilo, trabalhou muito, produziu muito escreveu muitas páginas, dedicou-se muito à causa pública mas, também, me marcaram muito os desgraçados que, na aldeia, de sol a sol trabalharam, tratando com carinho um rego de água aqui e acolá e de que ninguém falou. Talvez fossem esses que mais me marcaram, esses tais avós sem nome, que ainda hoje me lembro deles pelo que poderiam ter sido, por aquilo que deles poderiam ter feito e ninguém fez. Foram esses, talvez da minha aldeia os que mais me marcaram, a trabalharem de dia e de noite, a comer uma côdea negra de pão sem ajuda de ninguém.

Muito obrigados por estes momentos. Foi uma honra enorme tê-lo aqui.

Muito obrigado, eu. Foi um prazer estar aqui a conceder uma entrevista que só a amizade de um velho aluno me poderia obrigar. Foi a primeira vez na vida e, talvez, a última, pois não gosto nada destas coisas.

Ficará para a posteridade. Bem haja senhor Doutor.

Sem comentários:

Enviar um comentário