quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Entrevista com Henriqueta Bracons, advogada, natural de Rio Frio, Bragança

Tendo nascido numa pequena aldeia do concelho de Bragança, teve, com certeza, uma infância mais livre do que se tivesse nascido numa cidade. Fale-nos da sua infância.

Teria de falar de tanta coisa! Obriga-me quase ao regresso do mundo rural que hoje pouco existe. Uma infância normal uma família muito nuclear, muito pequena e que eu costumo dizer, que me transporta, quando falo disso, que me transporta para um mundo quase medieval, de que hoje quase não temos memória, mas que é muito grato, quando comparado com a infância que pude dar às minhas filhas, e grato no sentido dos afectos, da solidariedade, do partilhar, da liberdade da brincadeira, que hoje é muito mais restitiva nos meios urbanos.
E, se quer que lhe diga, uma das razões porque estou em Bragança, com um percurso de início de profissão em Lisboa, uma das razões foi a família, a constituição de uma família e, de facto, a educação que poderia proporcionar aos meus filhos, a presença, a possiblidade de os acompanhar o mais possivel.
Foi essa uma das razões que me levou a vir para Bragança, para além dos afectos, para além do regresso as paisagens que são viscerais, e que para mim são fundamentais. Recordo-me de quando vinha a casa e chegava, ao alto de Murça, nem sequer era a Vila Real, era ao alto de Murça, e começava a ver todo aquele alto de Mirandela, quente e, depois, aquela subida para Bragança, isso era o equivalente a “Já estou a ver os meus montes.”, Esta era uma expressão que eu usava que era bastante marcante para os meus colegas em Lisboa, “Já tenho saudades dos meus montes”.

Que nem é para cá do Marão…

Não, não é para cá do Marão. Não é o Marão. Gosto muito do Marão. Acho uma paisagem muito bonita mas, realmente, aquela que me toca, que me apazigua, que me é intrínseca, realmente é aqui. “Os meus montes”, este entourage da cidade de Bragança… é o planalto mirandês também… é todo o aspecto lúdico e telúrico, que eu acho que é fundamental, que é um factor de equilíbrio. Acho que é um pouco presente em todos os transmontanos, é muito marcado. Não faz de nós, nem melhores nem piores, faz-nos, realmente, únicos.

E diferentes…

E diferentes, sim! Mas quem sou eu para o dizer? Subescrevo, integralmente, a afirmação de Miguel Torga, que é, realmente, um transmontano de alma e coração. Fisicamente, a gente olha para o Miguel Torga e não há possibilidade de ele ser alentejano ou minhoto. É transmontano e disse que Portugal são duas realidades, culturalmente, em termos diferenciais. De facto, em Portugal há duas grandes regiões: Trás-os-Montes e o Alentejo.

Onde fez os seus estudos até ir para a faculdade?

Na escola primária em Rio Frio, porque a minha aldeia é Paçó. É uma aldeia muito pequena e creio que tinha professora mas, na altura, eu acompanhava a minha mãe que era professora primária e dava aulas em Rio Frio. Depois disso vim para a escola Augusto Moreno que ainda era ali na Praça da Sé, fiz o primeiro ano, o equivalente ao quinto ano. Depois, tive um periodo de passagem por África, num segundo casamento da minha mãe, em Monçambique, e fiz lá o segundo e o terceiro, o antigo terceiro ano correspondendo hoje ao sétimo.
Foi um período extraordinário para mim por me permitir conhecer novas realidades, sentir outra terra completamente diferente dos meus montes… ver outra realidade diferente muito marcante, foi extraordinário, sem dúvida. Regressei a Bragança em 1972, creio eu. Sei que estavam a construir o hospital, porque fui viver para ali, junto dos prédios de quem desce a avenida Abade Baçal e, portanto, todos os dias passava para ir para o liceu, e via o hospital numa fase final de construção. Fui para o Liceu Nacional de Bragança e foi aí que fiz os meus estudos e concluí o sétimo ano. Depois tive aquele ano de transição, que não sabe quais as faculdades, vai-se para onde? Abre ou não abre? Passei aquele ano chamado propedêutico. Era o serviço cívico. Destacaram-me para Braga, para acções de alfabetização. Tinha, na altura, 17 anos acabados de fazer sem nunca ter saído de casa, um pouco quase filha única, assim muito nuclear e, portanto, ia para Braga… Acabei por não ir porque aquilo era um bocado improvisado e fiquei por cá acabar o ano, porque tinhamos exames. Lá os fiz e depois fiquei à espera que abrisse a faculdade. Lembro-me perfeitamente de a minha mãe dizer “Não! Outro ano em casa não ficas.” Então fui para o magistério primário, onde estive um mês. Entretanto, tinha feito exames para a Católica que abriu em finais de Outubro e aí vou eu. Em janeiro abre o curso de Direito da Universidade de Lisboa e transitei para a Clássica. Segui para Lisboa com o bichinho de me meter em tudo e mais alguma coisa e acabei por, durante dois anos, frequentar um curso de Comunicação Social em paralelo na Faculdade de Letras o que me leva a um desgaste enorme que não me permitiu concluí-lo. Tive que imterromper um ano por motivos de saúde e, entretanto, o curso extinguiu-se. Foi, como costumo dizer, o lugar dos afectos, aquilo que nos atrai e que, por outro lado, é um projecto sério, em que a gente convive com outra realidade, encontramos percepções diferentes, vemos o mundo de maneira diferente. Por exemplo, apercebo-me que em Lisboa a maioria da população investe no futuro de um filho com uma formação prática. A vida é ter um emprego, é estabilizar, independentemente de a pessoa ter depois, uma evolução muito própria, quer a nível cultural, quer a nível da formação. Aqui defendo os lisboetas pela sua praticidade.
Encontrei muita gente que admirava os transmontanos porque, sendo pessoas, sobretudo, agricultores e todos nós sabemos que há muitos anos os rendimentos agrícolas eram paupérrimos, exceptuando as grandes herdades, as grandes quintas na Extremadura e Alentejo. Ou aquela agricultura já vocaccionada para a indústria, o resto é uma agricultura de subsistência e, portanto, era preciso um esforço muito grande, uma ambição, uma tenacidade fantásticas. Realmente, encontrei muitos lisboetas a admirar isso nos transmontanos. “Vocês formam-se tantos em Trás-os-Montes… quase toda a gente estuda.”
Quando regresso a Trás-os-Montes constato isso, ainda mais com um Instituto Politécnico, Universidade de Vila Real tão próxima que, de facto, facilitou muito. Não tenho números de estatística, mas digo que 90% das famílias transmontanas têm um filho formado, com um curso superior e isto é, realmente, uma coisa que é preciso ser dita que é preciso ser pensada, pelo esforço que isso corresponde e depois pela falta de correspondência de instituições, de entidades do próprio país a dar resposta e da própria região.

Existe, também, um esvaziamento de Trás-os-Montes?

Claro que ajuda. Ninguém investe num curso superior para ficar aqui à espera de quê, não é? Colocação aonde? Quer dizer, ou há iniciativa privada ou, de facto, o mercado de trabalho é muito restrito e muito pouco diversificado, não é? Nós assistimos a uma escola de formação de engenheiros agrícolas, mas não temos agricultores com capacidade de pagar a engenheiros agrícolas ou investir num técnico. A pessoa investe e tem diversas espectativas, há um esforço de vida, há um custo pessoal nisso e, portanto, não fica à espera, não vai parar no tempo, vai continuar a lutar por uma satisfação pessoal, uma realização profissional que, de facto, a região não consegue proporcionar, aos oriundos daqui e nem a quem vem de fora. Conheço o caso de pessoas que vêm porque gostam, vêm mais por amor à região, mas eu costumo dizer que é por amor porque pessoas que têm oportunidades na área onde residem, na área onde têm a familia e vêm a Bragança porque não conseguem deixar de vir a Bragança, porque sabem que aqui é preciso e estou a falar, por exemplo, de médicos, de alguns que conheço que acho louvável, porque há oportunidades ao lado onde não despendem duas horas de viagem cansativas, depois de meio dia de trabalho para poder vir fazer umas horas, porque há doentes que precisam, porque aqui não há mais e há, de facto, ainda uma consciência ética fantástica, que os leva a vir e porque gostam de Bragança. Dizem-me assim: “Eu quando passo o alto do Marão sinto uma amplitude de horizontes fantástica.” Há uma comunhão de identidade, digamos assim. A região não é bem tratada, nós não a tratamos bem… os transmontanos que me perdoem mas nós também devemos ter a capacidade de auto critica e temos coisas excelentes, mas não somos capazes de lidar com elas, com o medo, com a vergonha… nem sei se é a vergonha, é uma coisa que me intriga há muitos anos… parece que têm medo de se manifestar tal como são. Ninguém é perfeito todos temos virtudes, todos temos defeitos e aqui não. Acho que esse é o nosso maior pecado. É uma crítica ao outro sem fazermos a nossa autocrítica, sem vermos que o outro é um espelho de nós. Somos todos seres humanos. Somos biologicamente idênticos. Eu costumo dizer que em Trás-os-Montes acabamos todos por ser primos.

Durante alguns anos foi, também, professora do ensino secundário. Fale-nos dessa experiência… Terá contribuído, de algum modo, para a humanização da sua actuação enquanto advogada?

Humanização não direi. Se calhar, equilíbrio próprio, sim. Digo muitas vezes que tenho muitas saudades do ensino e, se calhar, tinha tanto ou mais rendimento profissional, na altura em que estava no ensino e saía do ensino e ia para o escritório e chegava a estar a trabalhar durante muitas horas. Ia, muitas vezes, jantar às onze da noite. Estava no início de carreira e, portanto, é preciso ter muito investimento pessoal, muito investimento de trabalho, muita investigação na minha profissão, mas acabava por ir com uma outra leveza que hoje, talvez não tenha. Os anos vão passando, a vida também nos marca. Eu costumo dizer que sempre achei, e os senhores professores que me perdoem, não o digo como crítica, mas digo como desgaste profissional normal que eu também tenho na minha profissão. Hoje não tenho a mesma predisposição para, além de advogada, ser psicóloga, ser confidente que tinha há uns anos atrás tudo depende das circunstâncias. A delicadeza do trato e respeito que as pessoas nos merecem… Temos que as ouvir e ser solidários com elas, e vivenciarmos os seus problemas. Eu ouvia muitos professores a queixarem-se, “estou cansado dos miúdos” e, de facto, é aquilo que se faz sempre, sempre e só. Não há termo de comparação. Eu, quando saía de lidar um dia inteiro no escritório, de manhã à noite, com pessoas com problemas e num estado de ansiedade, de nervosismo, que afectava as suas vidas… e esse é o nosso papel racionalizando, não é nada fundamental como é uma questão de saúde, que pode ser decisiva para a vida das pessoas, mas que é muito importante nas suas vidas. Nós lidamos com o estresse emocional, o estresse psicológico, os sentimentos, as explosões de sentimentos e isto, muitas vezes, é muito cansativo. Portanto, quando saio de um dia de escritório e chego à escola e tenho uma turma de adolescentes (Como sabe eu estive no ensino do nono ano ao décimo primeiro, acho que fui privilegiada. Gosto muito dos mais pequenos mas é para brincar, mas quando é para lidar a sério… Eu louvo os professores primários e os que leccionam os sétimos e oitavos anos. São aquelas idades em que não se sabe o que se quer. Explosão da adolescência. Acho que é muito mais cansativo, mas também tive turmas complicadas. Era uma descontracção porque eu estava com gente sem problemas reais. Estava com miúdos cheios de energia, cheios de vida, cheios de piada mesmo quando eles estavam conflituosos. É muito diferente de ser um problema sério. Portanto, para mim era um escape. Achava piada e tinha uma ligação muito grande com os miúdos. Quando lidamos com a juventude lidamos com a vida, estamos a lidar com as descobertas, com aquilo que é novo e conseguimos aprender imenso com eles. Quando lidamos com adultos as coisas são muito mais complicadas e com problemas, não é?

Regina Quintanilha foi a primeira mulher portuguesa a licenciar-se em direito. Ingressou na Faculdade de Direito de Coimbra com apenas dezassete anos, no ano 1910. É caso para dizer que foi uma grande mulher.

Eu ouço falar de Regina Quintanilha, curiosamente, não pelo direito ou pela minha formação jurídica. Ouvi falar da Regina Quintanilha por modo próprio, em termos da formação jurídica, ou em termos da profissão muito recentemente e através da ordem dos advogados e publicações recentes a propósito do papel da mulher na sociedade. Eu ouço falar da Regina Quintanilha na minha infância porque creio que era descendente de Quintanilha e o meu avô era de Quintanilha e trabalhou na casa ou dos pais ou dos avós não posso precisar, porque é uma memória da minha infância até aos 8/9 anos. Aquelas histórias que eu ouvia contar e o meu avô me dizia que a primeira advogada em Portugal era de Quintanilha era a menina Regininha, a dona Regina e desse facto conheço muito pouco. Apenas conheço referências em artigos ou publicações sobre a doutora Regina Quintanilha. Não tenho dúvidas de que foi uma pioneira e foi uma mulher que lutou por se afirmar em 1910, no princípio do século, numa profissão que, na prática, era vedada às mulheres. Acho que o grande “boom” das mulheres na justiça aconteceu na minha geração porque me recordo de ir para a faculdade de Direito em Lisboa, e ainda estar no primeiro ano e já éramos mais mulheres que homens. Foi a abertura do pós 25 Abril. Os cursos anteriores, os quarto e quinto anos anteriores, eram maioritariamente homens. Penso que a partir de 67/68 havia já uma presença siginificativa de mulheres no curso de Direito. A doutora Regina foi uma mulher inovadora, uma mulher que exerceu pouco a advocacia pelo que sei, mas no domínio dos registos, das conservatórias e notariado, que era ainda no meu tempo, a área preferida pelas colegas e aconselhada às senhoras e compreende-se, porque há um horário a cumprir, há toda uma estrutura montada, sabe-se com o que se conta. Eu não tenho horas para chegar a casa, não tenho horas para sair, há dias em que saio para fora e não sei a que horas regresso. (Recordo-me de ver a minha filha a dormir, pois quando saía de casa ela estava a dormir e entrava em casa e ela já dormia). É muito mais exigente, muito mais incontrolável quando se é mãe e, portanto, como mulher, sobretudo quando há familia é muito mais incontrolável. Nas funções mais tradicionais há horários. Sabe-se com o que se conta, estabelece-se um padrão, um ritmo de vida e daí a preferência por isso. Hoje, já não é assim. Temos uma presença muito significativa e muito interessante das mulheres na magistratura, no notariado e na advocacia.

O que a levou a deixar o ensino e a dedicar-se apenas à advocacia?

Eu não deixei o ensino antes, “por amor à camisola”. Tive muita dificuldade em deixar o ensino. Tive anos para fazer a profissionalização e nunca a fiz porque não queria sair de Bragança. Por fim, fui colocada fora de Bragança e acabo por deixar o ensino, precisamente, pela dificuldade de conciliação entre uma coisa e a outra, isso aliado a problemas pessoais de saúde de familiares, de ter uma filha em idade pré-escolar que me exigia algum acompanamento e horários que poderia cumprir. Enfim, andei ainda um ano um ano e pouco no corre-corre da estrada. Também não queria largar a advocacia por ser um bichinho viciante e acabei por optar.
As grandes opções da minha vida foram sempre privilegiar a família, a educação dos filhos, os valores, a realização humana, o equilíbrio de sentimentos e afectos. Isso é para mim, fundamentalmente, primordial. As ambições, a realização, o dinheiro e o património são, na medida do essencial, aquilo que é essencial para vivermos uma vida de satisfação mínima. Precisamente por isso, eu vim para Bragança e acabei por privilegiar isso depois de ter abdicado de uma carreira profissional com outras perspectivas e outros horizontes por ter vindo para Bragança, não só por amor à terra mas, também, porque entendi que era o lugar dos afectos e onde eles se poderiam desenvolver em termos de família de uma forma mais coesa, de uma forma mais presente. Não vou agora andar a correr e não estar presente e estar na estrada e ser colocada hoje aqui e amanhã noutro lugar e a separação da família. Foi isso que me levou a deixar o ensino de que tenho uma grata memória e que guardarei sempre com muita saudade.

Fale-nos do seu seu dia a dia de trabalho como advogada.

Normalíssimo. É um dia de trabalho como em todas as profissões, com dias de estresse, de uma grande correria e outros de satisfação, de realização… Na advocacia é sempre momento a momento que se constrói, que se participa na justiça. No fundo, sobretudo com essa consciência de que essa procura também, dentro do possível, daquilo que posso, do que sou capaz e de que sou capaz, de facto, de ajudar as pessoas, de resolver os problemas… isso traz uma grande gratificação pessoal.
Em termos formais, depende. Há dias em que sou capaz de entrar no escritório mais tarde, porque há dias que me permitem isso e a outros em que entro de manhã e passo até ao dia seguinte lá. Depois, temos aquele pavor, que toda a gente sabe que são os prazos. Temos prazos para cumprir e dos quais dependem os direitos dos clientes. Significa perder ou não um processo e traduz-se numa grande responsabilidade profissional e, também, uma responsabilidade de consciência profissional, de ética, de etiologia que nos obriga, muitas vezes, a um trabalho estressante, num clima que, de facto, às vezes não é igual àquilo que gostaríamos de fazer, mas que tem de ser feito e temos de estar prepardos para tudo, mas isso é próprio da advocacia, é próprio da magistratura. Todas as pofissões jurídicas trabalham um pouco sobre pressão, digamos assim. Não quer dizer que seja sempre, mas há situações em que tem de ser.

Quais são os principais problemas da justiça portuguesa?

Bom, isso, estaríamos…

Para mais de 48 horas…

Provavelmente. Eu costumo dizer que os problemas da Justiça Portuguesa dependem da maneira como analisarmos as coisas. São como muitos problemas que existem em Portugal. Problemas estruturais que se acumulam e se arrastam há bastante tempo. Se calhar, não são tão graves como se transmite para a opinião pública, mas que ganharam um peso, ultimamente, que não se justifica. Eu costumo dizer e digo às pessoas que, muitas vezes, quando nós mudamos de casa e vai um amigo visitar-nos e encontra tudo fora de ordem e nem há uma cadeira no sítio para as pessoas se sentarem, há uma compreensão. Hoje, se calhar, não há.
Estamos numa época de grandes mudanças na Justiça e mudanças estruturais que as pessoas não sabem. Não têm conhecimento da importância delas e aquilo que se exige dos agentes judiciários é celeridade, celeridade, rapidez, rapidez… Esse, para mim, é o pior inimigo da Justiça, da realização da Justiça, da concretização dos direitos. Não é humanamente possivel exigir a um juiz que dê uma sentença fora de horas, durante o fim de semana e, se calhar, ter que despachar quinze, vinte ou mais processos num dia. Se há coisas que são meramente formais, fala-se muito que a Justiça Portuguesa é muito formal, muito burocrática, e se calhar é… se há coisas que são formais, há de facto uma análise da materialidade, de decisão que não é fácil e que tem de ser ponderada e, muitas vezes, tem de ser amadurecida. Connosco, advogados, sinto e penso, como muitos colegas com quem falo e outros que não têm uma posição diferente. Pessoalmente, sinto que o cliente que vem ter comigo num dia gostaria o processo estivesse no dia seguinte em tribunal. Falta qualquer coisa ali, e falta o dormir sobre a questão. Há qualquer coisa que não vem ao de cima, que nos falta. Não é coerente e temos de ir procurar isso, sentir que de facto, pelo menos, dominamos a situação porque ela é sempre uma surpresa para nós. Não é em todos os processos mas, muitas vezes, o processo avança, nós temos uma versão, a nossa própria visão. Eu não estou a falar como advogada, mas como pessoa, como cidadã. O cidadão vem ter connosco tem uma visão do seu problema e essa visão, muitas vezes, ofusca a objectividade sobre a dimensão real do problema e, portanto, nós temos que objectivar e temos que objectar com dados objectivos trasmitidos pelo cliente, e claro, quando vem a resposta da outra parte as coisas têm que se reequacionar. Todo o processo, a posição das partes, toda a dialéctica do processo é reequacionada. Não é. Há o contraditório e temos que reponderar. Ora, eu entendo e tenho a minha maneira de trabalhar com coesão. Quer dizer: ouvir uma vez, ouvir duas, há pormenores que nos faltam, há pormenores que o cliente não valoriza e é curioso, já me aconteceu uma vez ou duas, o pormenor mais importante para a decisão daquele processo e que eu andava à procura e não tinha elementos nenhuns do que o cliente me transmitia para poder afirmar e fazer prova. Não é na véspera do julgamento, no dia do julgamento que o cliente diz mas, também aconteceu isto e não se pode fazer nada. Podemos ter a sorte com a testemunha que vem, se for possivel ainda equacionar e enquadrar tal facto no processo. Todo o processo, tendo aquela informação teria sido equacionado de modo diferente.
Perdi um bocadinho a objectividade na sua pergunta, mas os problemas da Justiça hoje, não se resumem à celeridade. Para mim não é isso que faz Justiça. Não interessa só uma Justiça célere. Interessa uma Justiça justa, uma Justiça equatitativa, uma Justiça que dê resposta àquilo que as pessoas vão procurar aos tribunais, que é a resolução de conflitos, que é um consenso, porque os tribunais são instituições sociais que tem uma finalidade que é estabelecer a coesão social, pacificar. Não é gerar mais conflitos. Aquilo a que hoje estamos a assistir e que me parece, em detrimento da boa justiça, é uma pressão demasiada, se calhar, do poder político e da comunicação social sobre o que é a magistratura, sobre advocacia, sobre os agentes judiciários no sentido da celeridade e, isto, porque os processos demoram, pois demoram, há casos de facto que demoram bastante.
De facto, é uma coisa que me incomoda. Incomoda-me bastante, não de agora mas desde há uns anos atrás. A partir de um determinado momento, nós vamos encontrar escolas de formação de juízes mais novos; as bagatelas; os casos que vão para os tribunais, que não são dignos de ir para o tribunal. Isto é grave do meu ponto de vista, compreendo que dado o volume de processos, o magistrado não tenha capacidade de resposta ao aumento de serviço, os tribunais, os funcionários. Mas, não é eliminando direitos dos cidadãos, não é restringindo o direito ao recurso, não é retirando processos dos tribunais que se faz Justiça, que se pacifica a sociedade e nós precisamos de uma sociedade segura, com confiança nas instituições.
Há correntes que defendem que um juiz deve ter multiculturalidade, e multidisciplinaridade que a própria justiça, o julgador, admite-se a ideia de que os processos sejam julgados por juízes de carreira jurídica. Eu não questiono a bondade de tais ideias, de tal hipótese. A questão que coloco é se a nossa sociedade tem um perfil adequado, e se estará preparada para termos uma cultura de cidadania que permita que o modelo funcione nesses termos. Não quero ser o Velho do Restelo. As profissões jurídicas estão aptas a julgar. No entanto, eu não me sentiria à vontade para executar uma cirurgia, quer dizer, não tenho nada a ver com isso, não percebo nada daquilo.
Parece-me a mim, também, um pouco contraditório que cada vez mais se exija um conhecimento técnico, uma especialização. Na área de Direito, há uma formação base de técnica jurídica e eu digo isto muitas vezes… as leis portuguesas, são feitas em português, às vezes mal, que também existe, mas são feitas em português, nós somos portugueses e sabemos ler e escrever. Portanto, toda a gente, em Portugal sabe interpretar leis. Tenho dito, às vezes, a clientes que não é assim, digo uma, duas, três vezes, mas ouviram na BBC e ouviram um conselheiro na rua, uma pessoa que não tem formação jurídica. “Mas olhe que é assim, porque houve um caso…”. Nenhum caso é similar ao outro. Há regras de interpretação jurídica, há toda uma sistemática, há a conjugação de uma lei com a outra que é preciso ter em conta quando se aplica a um caso e, portanto, tem que haver uma formação jurídica, técnica de base. Depois é pode haver uma especialização.
Sempre defendi, curiosamente, porque o direito vinha da área de letras, que é necessário, importantíssimo que as pessoas tenham formação na área de matemática. Não digo da matemática de fazer aquelas contas muito complicadas, mas da lógica, o raciocínio lógico é fundamental. Quando fui para a faculdade de direito ia com uma visão romântica do curso e garanto-lhe que foi um banho de água fria no primeiro ano e no segundo, porque para um jovem adolescente cheio de ideias bonitas, um bocado utópicas, ter caído na realidade, com uma análise técnica muito objectiva e muito fria, muito lógica e racional, é difícil para determinadas idades. É mais fácil quando uma pessoa chega aos últimos anos do curso, não só pela aprendizagem que já teve mas também com a maturidade normal que a pessoa vai adquirindo, essa é a formação base. Defendo a necessidade de conhecimentos matemáticos. Lembro-me que tive economia com um professor licenciado em economia nos exigia cálculos. Éramos uma turma de trezentos alunos, e eu não fiz economia nem sequer em julho. Pus de lado, e vim para aí com os calhamaços e só fiz no ano seguinte porque tive Finanças Públicas com o Dr. Sousa Franco e professor Saldanha Sanches que eram pessoas que trabalhavam nas turmas, e já tinham uma formação jurídica, especializados na área das finanças, já sabiam como haviam de chegar. O outro professor era economista. Em trezentos alunos fizeram a disciplina dez. Eu fiz no segundo ano e fiz com uma óptima nota e acho que é uma disciplina importantissima no curso de direito como acho que era fundamental termos mais noções de contabilidade.
O problema da Justiça, hoje, é a falta de agentes judiciários. É um problema do sistema, de modernização.

São vários e vão demorar bastante a ser resolvidos?

Não. É preciso pensá-los. Não é fazê-lo em cima de lei já que uma pessoa chega a um ponto em que já não sabe qual está em vigor. O direito é a cristalização das normas socias, é preciso que a sociedade evolua, aceite os valores para que depois esses valores possam passar a normas. Não é inventar uma norma.

Vamos avançar agora.

Gostaria só de dizer em relação à crise da Justiça que existe um esforço enorme de todos os agentes judiciários, de trabalho e empenho, inclusivamente os magistrados, no sentido de dar resposta. Agora, a resposta essencial dentro do sistema como ele está é mais pessoas a decidirem, para já e, depois sim, uma reforma estrutural, pensada, reflectida, dialogada, agora não imposta para calar a comunicação social, para calar a opinião pública, uma opinião pública formada muitas vezes em pressupostos errados que leva as pessoas a uma pressa que não lhes é útil, não lhes é proveitosa e nem defende os seus interesses. O perigo maior disto é vermos diminuir os direitos dos cidadãos.

A situação da mulher no mundo, com uma pequena excepção de mulheres ocidentais, pouco mudou ao longo dos tempos. Como se poderá alterar esta situação?

Nós, quando falamos da posição da mulher no mundo, vemos uma perspetiva histórica e apercebemo-nos da pouca intervenção da mulher, ou pelo menos de uma intervenção muito discreta, muito pouco relevante. Não quer dizer que ela não tenha existido nos bastidores. Assistimos ao questionar dessas posições de há cinquenta anos para cá, penso eu, de uma forma generalista, global… não entendo isto do ponto de vista da luta dos homens contra as mulheres. São factores culturais, são factores civilizacionais que foram aceites por ambas as partes. Hoje as mulheres estão muito mais reivindicativas. São pessoas que, acima de tudo, tiveram acesso à educação e que se sentem capazes em termos de igualdade, de acesso, de resposta sobretudo no domínio intelectual e hoje vemos que a maior parte das licenciaturas são femininas…

Na Europa, na América, nos países nórdicos não é bem assim…

Nós não podemos falar nisto, lá está, fora de um contexto civilizacional e cultural. Portanto, nós estamos a falar do problema da posição das mulheres em África ou na América Latina como estaríamos a equacionar esse problema na Europa há doze anos atrás. Há, de facto, um fosso de civilizacionismo muito grande. O desenvolvimento económico, teve a ver com o facto de a mulher ter o conhecimento de ser também cidadão, e é cidadão quando passa a ser um agente económico de peso, relevante ou por diminuição da população nos países industrializados, ou pelo facto da necessidade de intervenção da mulher na sociedade, quer em termos económicos na economia doméstica, quer no exercício de uma profissão e isso começa com a revolução industrial. Até aí as mulheres eram muito mais passivas. Tinham culturalmente uma posição social muito marcada, um estatuto muito definido. Hoje já assim não é e, portanto, isto vai evoluindo e tem evoluído imenso.
Também um aumento da necessidade de mão-de-obra para a indústria…

Exactamente. Penso que terão sido factores económicos, a necessidade que a sociedade teve para o seu desenvolvimento, do contributo da mulher e, portanto, a partir daí, a mulher tende a aprender ou ter mais acesso a tarefas que até ai lhe eram vedadas. Não vejo isto como uma regra entre homens e mulheres. Acho que não se pode analisar o problema desse ponto de vista, mas sim, culturalmente. Existem outros factores, por exemplo, o papel da mulher no mundo árabe e as restrições que a mulher sente no mundo árabe e, digamos, que não são factores de desenvolvimento. É evidente que uma coisa está ligada à outra mas aí são, sobretudo, factores com peso cultural extraordinário e que marcam, que determinam a posição das mulheres em metade de África, nos países árabes e em grande parte da Ásia. Já nos países latinos existe uma cultura diferente, mais de tradição e de falta de oportunidades em questão de desenvolvimento económico. Penso que a abertura e o acesso da mulher à intervenção cívica, participação cívica e condições de igualdade vai acontecer. Já está a acontecer mais rapidamente na América Latina do que, propriamente, nos países de cultura mulçumana e em África, onde havia uma cultura muito tribal, onde o peso da mulher, não se manifesta na chefia, mas a maior parte das decisões e a transmissão da cultura são asseguradas pela mulher como era em Trás-os-Montes.
Acho que em Trás-os-Montes a mulher sempre teve um papel fundamental na casa, embora quem mande seja o marido, mas a mulher era o secretário, era o administrador, era o tesoureiro da casa, era o educador dos filhos, era quem transmitia os valores sociais e culturais, enquanto que o homem era o garante do funcionamento económico, com a função de fiscalização de toda a actividade da mulher. Agora, a mulher não tem o mesmo peso que teve. Teve um peso extraordinário, não teve nome, mas não deixa por isso de ter um contributo fantástico na história.

Por trás de um grande homem há sempre uma grande mulher.

E por trás de uma grande mulher também há um grande homem. Acho que há um equilíbrio. Isto não é uma luta é, de facto, aceitar um estatuto e um papel e com todas as transformações da sociedade, os papéis e os estatutos inverteram-se. Isto não é só entre as mulheres e os homens. O papel da juventude, a importância que tem hoje a juventude, a maturidade, a idade madura dos 40/50 é-se jovem. Aos 40 anos, na minha memória de infância, as pessoas eram velhas, fisicamente velhas porque a esperança de vida era menor mas, era só aos 50 é que acedia ao poder. Havia já um estatuto de poder e autoridade inerente. Hoje, uma pessoa com 30 anos, uma mulher com 30 anos é velha, cada vez mais se recua. É velha nos anúncios publicitários. Só a juventude é que interessa, o aproveitamento em termos comerciais, de uma sociedade de consumo, há aqui uma inversão dos papéis, uma alteração dos papéis, em função das idades, como também dos sexos. Isto é só uma questão de evolução social, transformação das sociedades, da globilização e da importação de modelos. O modelo ocidental foi adoptado em países de terceiro mundo e há de facto uma consciência nas mulheres de terceiro mundo da sua condição feminina que vai despoletar todas as alterações culturais inerentes.

Continuando… O papel da mulher na política ainda é secundário. A que se deve esta situação?

Você coloca uma questão para qual eu tenho uma resposta muito própria. A igualdade entre homens e mulheres não é uma igualdade em todos os sentidos. Eu acho que tem de ser entendida como igualdade de direitos, de deveres e de oportunidades, é óbvio. Não é por acaso que desde que o mundo é mundo, que os homens são homens e as mulheres são mulheres, que têm mundos muito diferentes e que há um choque entre eles. Há uma atracção é há um choque e há um choque porquê? Porque, de facto, acho que há esquemas mentais muito próprios e eu acho que isto é biológico. Defendo isto há muito tempo o que me levou a ganhar uma inamizade feroz aos movimentos feministas, porque eu, pura e simplesmente, aboliria, porque acho que é redutor para as mulheres. O Dia da Mulher. A mulher não tem necessidade de ser festejada, porque não é única, não é uma espécie rara. É um ser humano com a presença, com direitos e deveres. O Dia da Mulher é quando cada mulher lutar por se afirmar e afirmar-se com independência, com trabalho. Não é estar à espera de que se resolva e de que ninguém pense por ela. Ter capacidade de pensar por si e correr riscos, porque isso também implica correr riscos, fazer sacrifícios, aceitar desafios, aceitar derrotas. Também não é fácil e não é fácil devido à educação que continua a ser transmitida. A mulher, que é quem educa os filhos, educa uma filha de uma forma diferente do que educa um filho. Isso lhe garanto! É uma questão de analisarmos, caso a caso, concreto. A filha tem obrigações desde pequena e o filho começa a tê-las quando já é homem. Agora, e acho muito bem que não se tolere às meninas determinadas coisas porque são meninas. Começa na educação com um grau de exigência, de responsabilização que, se calhar, é mais fácil ser-se mulher num conceito tradicional. Tem-se muitas mais vantagens. Olhe que a libertação das mulheres, não foi libertação nenhuma. Foi antes um aumento da carga de trabalhos. Enquanto o marido tinha a obrigação de subsistência, a mulher ficava em casa para educar os filhos. Mas que maravilha! Agora, tem essas mesmas tarefas e muito mais.
A generalização das coisas é que a mulher, é um agente económico activo, igual ou praticamente igual ao marido. Tem um horário de trabalho, que chega a casa com a mesma carga, cansada e esgotada, com toda a responsabilidade com que chega o marido, e chega a casa e tem ainda a gestão da casa, a supervisão dos filhos, embora hoje o marido, por força das circunstâncias também contribua, mas ainda estamos num patamar médio em que há uma sobrecarga tendencial da mulher. Até atingir o outro, e isso seria o tal estado de igualdade de tarefas, de igualdade de direitos e de deveres, penso que ainda vai demorar, porque é uma questão cultural e educacional e é uma questão das próprias mulheres não privilegiarem os filhos nos valores tradicionais, e privilegiarem na educação das filhas, uma cultura de responsabilização. Não podem estar à espera de um marido rico que as governe. Isso é um vício de educação terrível, nem cultivar na filha a mulher submissa que obedeça a tudo. Portanto, é uma questão de entendermos que somos seres humanos biologicamente diferentes dos homens. Defendo isto há muitos anos e parece-me que alguém me veio dar razão. O António Damásio diz que há factores biológicos determinantes de esquemas de raciocínio e, de facto, há um raciocínio biológico que, nas mulheres, é diferente dos homens o que leva, de facto, que elas não intervenham na política com a mesma racionalidade, com a mesma frieza, com a mesma programação de objectivos. As mulheres tendem a perder-se mais em pequenos labirintos a analisar o pormenor e, portanto, há uma complementaridade que é fundamental na política com a presença da mulher.
Agora, também, não poderemos exigir que, de repente, uma cultura em que a mulher não tinha um papel social, que passe a ser protagonista de um palco político e estabelecer quotas. Nós precisamos é de competências e acho que uma mulher consciente tem que ter a consciência de saber esperar, e saber construir, como tem construído. Acho que isso é o grande mérito das mulheres, que não é falado. Têm construído ao longo dos séculos com uma discrição fantástica. Não é preciso que seja a Maria ou a Fernanda, mas que é muito importante que existam como forças motoras, como exemplos, como símbolos, mas, também, há toda a mulher anónima e a luta extraordinária para manter a dignidade, por dar uma formação, criar essa consciência de cultura e de educação que leva a que a mulher esteja a caminhar para agir e ser um ser social pleno como é o homem ou alguns homens, já que também há homens perfeitamente incapazes, não é?

Para terminar, que personalidade ou personalidades mais a marcaram ao longo da sua vida?


Para mim é muito difícil escolher um modelo. É muito difícil dizer, isto é que é bonito. Eu acho que tudo tem a sua beleza, tudo tem a sua importância, mas vou tentar. Inúmeras, inúmeras, personalidades, pessoas com quem cruzei alguma vez na vida, com quem troquei cinco ou dez minutos de conversa e que me revelaram a realidade do outro mundo do qual eu fui à descoberta. Pessoas anónimas que me questionaram a minha própria maneira de ser, de estar e de pensar. De facto, aquilo que realmente me marcou mais, para além dos afectos de uma familia nuclear, do carinho, do curso, dos meus avós com quem eu sempre vivi, aquela segurança sempre presente, absolutamente intocável, transmitida pela minha mãe. De facto, o peso da mulher é único numa família. Eu não conheci o meu pai e, para além disso, a formação, valores, cultura, do intelecto… Lembro-me que com doze, treze anos, passava as noites a ler. O meu pai deixou-me como herança, um pai que eu não conheci, que era uma pessoa na área da engenharia, era engenheiro, deixou-me como herança uma arca cheia de livros, que ele não meteu na arca mas que a minha avó meteu, para que a minha mãe não visse, porque era uma mágoa presente. Então, essa arca estava guardada lá em casa e eu descobri-a com essa idade, quando fiquei sozinha com os meus avós e passava as noites a ler. Li tudo que era prémio Nobel porque seria um critério de selecção que ele tinha. Naquela altura era, também, a literatura americana emergente, depois o Jorge Amado, curiosamente, o Érico Veríssimo, brasileiros, e eu fui lendo isso tudo. Fui lendo como quem parte para uma descoberta, não entendendo bem, com algumas dificuldades, mas fui lendo e relendo e lembro-me perfeitamente de uma obra absolutamente marcante que foi o “D. Quixote de la Mancha”. Eu não dormia. Li o “D. Quixote” numa semana. Li e reli. Eu ria à gargalhada e só apagava a luz quando a minha avó acordava porque me ouvia rir e ia lá “Tu ainda estás acordada?” Devorava os livros, talvez, por ser muito sozinha, por ter pouca companhia para a brincadeira e canalizei mais para a leitura para criar um outro mundo. Depois a obra de Torga, fantástico! Depois disso o Borges, o Eça, Camões… tive a dose de não gostar quando todos dávamos a sua obra na escola, sobretudo o Borges, o Jorge Luís Borges que é para mim uma obra marcante em termos literários. Na música, a Piaff, o José Afonso pelo lirismo das canções, a voz da Amália, Sinatra e muita gente nova que ouço hoje esporadicamente. Não me pergunte nomes porque isso é para a minha filha, porque a minha memória também já vai esgotando. Agora, acho que há coisas lindíssimas, há uma inovação. Mais tarde, aprendi a gostar da música clássica. Só se aprende a uma certa idade, ou se gosta mesmo de nascença ou se aprende numa certa idade, depois de ouvir ao vivo nos concertos na Gulbenkian. Acho que se tivesse ido a um estádio seguramente ficava adepta do futebol. Só fiquei adepta da música clássica depois de ouvir ao vivo. Admiro muito, gosto, não perco, e para os responsáveis que, eventualmente, me leiam, peço que tragam mais vezes o Domingos António ao piano que é um transmontano, e um Adriano Correia de Oliveira que, embora não seja da música clássica, é um transmontano e que tem uma voz maravilhosa e canta uns fados de Coimbra como ninguém.

Entrevista produzida por Maria de Jesus e Marcolino Cepeda

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