sábado, 17 de dezembro de 2011

Entrevista com Prof. Doutor José Manuel Rodrigues Alves - ASCUDT

Nasceu em Varge, concelho de Bragança. Que recordações guarda da sua meninice e da sua juventude?

Eu guardo recordações interessantes. Eu fui miúdo com uma experiência rural de que me orgulho muito porque sentia a liberdade e nem sempre se sente isso e, ao mesmo tempo, procurei no ambiente a realização lúdica, como qualquer criança e, portanto, entendo que dez anos que vivi na aldeia, no fundo, ensinaram-me tudo o que precisei de aprender para a vida.

De que forma o facto de ter nascido na nossa região o marcou?

É difícil responder a uma pergunta dessas. Para isso precisava ter nascido noutra região e comparar as duas mas, no fundo, sinto-me preso a esta região. É aqui que eu me sinto bem e acho que é exactamente a esta região que eu devo dar o meu melhor.

Já foi fotógrafo quando era um rapaz mais novo. Fale-nos desses tempos.

Sim. Quando me perguntou sobre aqueles dez anos de experiência rural, eu próprio fabricava os meus brinquedos porque o meu pai era agricultor e tinha uma oficina múltipla, desde ferreiro, carpinteiro, marceneiro… tinha essas coisas todas e eu fabricava ali os meus brinquedos e isso era importante para além de poder brincar com os outros miúdos, fazer as poças e conhecer a hidráulica a funcionar, os vasos comunicantes com as canos de abóboras essas coisas todas, os jogos de regras, a sociabilidade… tudo isso se aprendeu aí nos dez anos mas, para dizer o quê, que essa oficina paterna me marcou para a vida toda. Acho que ao longo da minha vida tem sido esse sentido da oficina que me marca de várias maneiras e acho que a fotografia aparece aí também, nesse alinhamento, dessa realização pela via do fazer, da técnica, das tecnologias A fotografia entrou na minha vida a partir dos meus dezasseis anos e consegui montar o meu laboratório particular, trabalhava a fotografia a preto e branco. Eu próprio revelava. Recordo-me que para arranjar o meu primeiro ampliador, fui a Andorra comprar um, depois fui mudando de ampliadores e máquinas também e, na altura, trabalhava ligado ao jornal “Mensageiro de Bragança”, onde também trabalhava o Marcolino.
Essa experiência de fotógrafo foi uma experiência gratificante. Reuni mais de cinco, seis mil negativos que ainda tenho dessa época. Realizei também dois salões nacionais de arte fotográfica. O primeiro e o segundo promovidos pelo “Mensageiro de Bragança” mas, éramos nós que estávamos na organização. Foram salões que reuniram as melhores fotografias aqui em Bragança. Fizemos um primeiro, um segundo e era para fazermos um terceiro, já a nível ibérico mas, depois deu-se o 25 de Abril e houve aí uma desmobilização destas coisas. Começaram, as pessoas, a concentrar-se na actividade política partidária e desmobilizou-se um pouco essa dinâmica cultural que os jovens tínhamos nessa altura.

Enveredou pela filosofia. O que o levou a seguir esse caminho?

Eu, até aos meus trinta anos, era funcionário administrativo na saúde. Comecei por trabalhar na maternidade Júlio Dinis no Porto depois, no hospital da Misericórdia de Bragança, no hospital distrital, na administração distrital dos serviços de saúde, na altura chamava-se assim, agora é ARS, depois fui para a psiquiatria. Costumo dizer que primeiro comecei onde se nasce e depois fiquei pirado, digamos assim, na saúde mental, entretanto fiz o curso como estudante trabalhador, o curso de filosofia.
Marcadamente, sou um indivíduo com uma estrutura mental do ramo de ciências. Fiz filosofia dentro do que menos gostava era do que mais gostava e comecei a fazer o curso muito desportivamente. Curiosamente volvido o primeiro semestre do primeiro ano apaixonei-me mesmo pelo curso, passei a gostar e a dedicar-me inteiramente ao curso e, é curioso, no primeiro ano recusei-me a compra um livro que fosse; tirava fotocópias. Fazia aquilo, um pouco, numa linha desportiva; no segundo, terceiro, quarto anos, era capaz de almoçar mal, comer pouco para deixar dinheiro para comprar livros. Esta mudança deve-se, de facto, à estrutura do curso que me motivou, me interessou e me ajudou a descobrir o sentido da filosofia, coisa que não tinha aprendido no secundário.

A sua vida profissional está profundamente ligada ao ensino e à investigação. Fale-nos do seu riquíssimo percurso.

Primeiro fui professor de filosofia na Escola Secundária Emídio Garcia. Depois, fiz estágio e no momento em que fiquei efectivo na Emídio Garcia, fui convidado para a Escola Superior de Bragança. Logo nesse ano entrei para o mestrado em filosofia da educação e é bom que se diga, ainda não se falou nisso, mas a minha deficiência visual obriga-me a adaptar as minhas opções. Isto tem sido uma constante ao longo da minha vida e no mestrado, ocasionalmente, eu teria de escolher autores mais recentes porque os meus colegas iam investigando logo por não terem limitações de visão. Eu tinha que esperar para ter acesso à informação, escolhia sempre autores mais contemporâneos e foi um pouco por aí que se mudou a minha vida.
Eu escolhi um autor, Jacques-Marie Émile Lacan que, era proposto numa cadeira do mestrado, que é um autor que dá continuidade ao ensino de Freud e, então, foi esse o filão que descobri. Gostava da psicanálise e comecei a enveredar exactamente por esse campo teórico aplicando-o, necessariamente, à educação e, então, toda a minha investigação está balizada entre estes dois medos a psicanálise e a educação.

Pelo seu currículo nota-se que cada vez mais envereda pela psicanálise. É filósofo à procura do ser?

Uma vez li num poeta, não posso agora precisar, que não me recordo mas, que apela ao mais profundo de cada ser humano. Isto parece um paradoxo mas, não há duvida nenhuma que a procura do ser como vocês dizem aí, tem muito a ver com o que a psicanálise pode ajudar a esclarecer, uma vez que, de acordo com a evolução, foi posterior a Freud. Foi dada ao corpo teórico da psicanálise que se ocupa dessa problemática do ser e, o ser do homem é sempre o ser da linguagem. Aquilo que caracteriza, fundamentalmente, o homem é o tratar-se de um ser falante. Há um neologismo francês que caracteriza o próprio homem que é o “parletre” que é uma fusão entre o “parle” e o “etre”. Então, o ser do homem é um ser falante. Este “parletre” não tem uma tradução directa para o português uma vez que tanto pode ser falar - ser, falante – ser, falecer, de morte, portanto o ser do homem é o ser que lhe é dado pela linguagem e isso é o que caracteriza essencialmente o corpo teórico que eu estudo, aquilo que é mais essencial em termos dessa mesma definição e aqui, morte, também está associada porque realmente o homem é diferente dos animais e o próprio acto do funeral é qualquer coisa que tem que preservar a memória.
De facto, o preservar dessa memória é resistir à morte. O homem quer-se prolongar no tempo, o ser do homem não se esgota no momento em que ele morre, prolonga-se para lá disso. Fazermos livros, fazermos filhos, deixarmos obra, etc., tudo isso faz parte do ser do homem. Esse ser não termina no momento em que morremos, prolonga-se para lá disso e, no fundo, é como dizia Camões: “Aqueles que para além da morte se vão libertando por actos e feitos valorosos” e outros, se calhar, por actos maus e perversos também se libertam da morte.
Tudo isto se enreda no que se chama ser do homem e anda em torno de ele aceder à palavra, aceder à linguagem, que é aquilo que se poderá chamar no homem a terra natal dos deuses. É qualquer coisa que o homem, às vezes, não tem consciência disto mas, nós quando acedemos à linguagem, acedemos à consciência de nós, à consciência do mundo, à consciência da história e portanto esse aceder à consciência do tempo isso nos é possível através de esta entrada na linguagem na terra natal dos deuses e o homem tem, de facto, esta virtualidade que o distingue, de maneira inequívoca, do plano dos animais.

Magalhães Godinho escreve: “A missão do filósofo é defender a dignidade do homem e de todos os homens. De lhe permitir ser projecto e não apenas resultado.” Foi para cumprir essa missão que dedicou grande parte da sua vida à dignificação de pessoas com deficiências?

Sim. Acho que Magalhães Godinho tem razão. Por detrás dessas palavras esconde-se uma outra coisa que é importante, uma outra dimensão que é a essência de liberdade. O homem é um ser que, ao tornar-se falante, percebe que tem uma margem de liberdade que o liberta dos instintos. Digamos que, se as formigas soldado, as térmitas têm de lutar até morrer e não podem fugir daí, o homem, perante a situação ou imposição de ir para a guerra, pode fugir. Tem uma essência de liberdade e pode realizar-se como projecto, aí, sem dúvida nenhuma e, essa parte de realização do homem, enquanto projecto, tem a ver com a essência de liberdade que tem.
Claro que não é uma liberdade absoluta, não é uma liberdade como se imagina para os deuses. É uma liberdade do homem que implica sempre uma perda mas, de todo o modo, é uma liberdade. Há, portanto, sempre um processo de escolha no caso do homem.
Agora, a questão fundamental que me tem marcado, e dentro do cruzamento teórico que eu lhe disse, da psicanálise com a educação. É responder a esta questão fundamental: Porque é que na idade adulta há gente que é feliz praticando mal e outros encontram-na no bem? O que é que falha aí no plano educativo? Onde está o busílis da questão? Porque é que há pessoas que não têm prazer em praticar o bem mas, têm prazer em praticar o mal? E esta questão tem-me levado, sucessivamente, a recuar nos pontos críticos da ida, no desenvolvimento do ser humano, até à relação com a mãe e, hoje penso: A relação fundamental em termos educativos, se estrutura dos 0 aos dois anos e meio e, é aí que tenho, ultimamente, procurado encontrar as melhores respostas para o plano educativo porque, se se passa aí, alguma fragilidade na relação primitiva da criança com a mãe, jamais essa criança descobrirá esse prazer do bem e pode mesmo enveredar pelo prazer do mal.

A filosofia é a inquietação de pensar. Essa afirmação coadunar-se-á com a maneira de pensar e viver dos transmontanos ou estaremos cada vez mais globalizados e indiferentes?

Se quer que lhe diga, o que está mal nos transmontanos não nasceu aqui. Veio de fora. São essas influências que realmente vão reduzindo essa inquietação de pensar. Acho que a inquietação de pensar encontramo-la se virmos um velhote a olhar as cachoeiras, a sentir a brisa da tarde… de certeza que ele tem essa inquietação de pensar e de perceber melhor o que o está a rodear e, se calhar, fala-lhe de coisas interessantes.
O que é preciso, acho que essa gente ainda tem isso na sua alma, é sentir o maravilhar-se com o saber, com o conhecimento, com as coisas. Claro que nós temos uma influência da globalização e de massificaçao que nos advém dos mass média, que nos advém de um sistema educativo, provavelmente falido, em termos de não despertar para essa inquietação do pensar. Eu acho que é essa curiosidade, essa inquietação do pensar que, no fundo, caracteriza de maneira mais forte e mais radical o ser humano.
Quando nós deixamos de ter crianças curiosas, crianças que não querem aprender, crianças que têm tudo feito, tudo por medida, tudo disponível nas prateleiras dos hipermercados, essas crianças nãos se encontram com pessoas criativas e é essa criatividade que nos pode levar à realização tão expressiva de cada um de nós, cada um no seu campo. Uns na música, na expressão dramática, na expressão visual, poética, literária etc. Cada pessoa tem que dar de si, aquilo que gosta realmente de fazer e, essa inquietação de pensar… acho que, perdendo-se isso, perde-se tudo.
Agora, a questão da problemática da deficiência. Sem dúvida que para mim, e esta é a posição que sempre assumi em relação à pessoa deficiente, sendo eu próprio uma pessoa deficiente visual, vivi a experiência da deficiência por dentro mas, nunca me deixei vencer pela própria deficiência e, isto é importante, porque será essa oficina de que falei no início. Será essa inquietação do pensar, será uma vontade que a gente tem por dentro de nunca se deixar vencer, nunca se conformar com o que já está. Será o sentir o desejo que nos atravessa, querer sempre algo mais, mesmo para lá de nós e para lá dos outros, não sei.
Tem sido isso que me anima e o facto de ser deficiente, de que me honro, digo-lhe já. Estou numa fase em que a deficiência para mim cumpre uma função de mestria. Para mim foi um mestre que me ensinou muita coisa ao longo da vida e cada vez me está a ensinar mais, por isso, para mim, a deficiência é algo de que me honro e, então pensei que também poderia ajudar os outros nessa linha, outros deficientes como eu que também tiveram uma limitação qualquer, uma perda real.
Porque ser deficiente não é qualquer coisa que se pode comunicar às pessoas. Por exemplo, se eu sou cego, outra pessoa também pode identificar-se comigo. Vou imaginar que sou cego, ponho uma venda nos olhos. Isso é totalmente diferente. Isso é uma experiência intransmissível, porque essa pessoa sabe que pode tirar a venda dos olhos e, portanto, não é uma perda real é uma perda imaginária, circunstanciada a uma determinada duração no tempo.
Nós, quando somos deficientes, assumimos no real uma perda para sempre e depois é preciso viver com essa perda. Primeiro aceitá-la, perceber que a vida tem que se ir vivendo com aquele problema até que, depois de se superar, se pode chegar a um ponto em que essa falta, essa perda, nos pode servir de mestre.
O homem no fundo, e isto é característico de todo o ser humano, às vezes não é feliz porque não sabe viver com a perda. E o que é a perda? Nós fazemos, na psicanálise, essa identificação com a expulsão do paraíso, já que comeste a maça. Isto significa a árvore da ciência, significa o acesso à linguagem, a consciência de muita coisa… vocês roubaram o fruto sagrado aos deuses, roubaram as palavras, homens saí do paraíso, estais condenados à geração e à morte! Então, a perda é sabermos que não somos eternos, que um dia morremos e então temos que desenhar a nossa vida, encontrar o sentido de viver confrontando-nos com essa perda.
A deficiência é a consciência exacta de uma perda antecipada e a gente tem que aprender a viver com essa perda e não é por acaso que eu ultrapassei melhor a deficiência quando também aprendi a aceitar melhor o problema da morte que é essa perda fundamental e última, ou mais ou menos última.

Mas pode servir dois campos. Os mais fortes e os mais fracos.

Eu não acho assim, sinceramente. Mesmo na experiência clínica que tenho, muita gente não vive bem porque não sabe lidar com a finitude, e este é um problema filosófico de há muito tempo. Os filósofos chamam-lhe finitude, os psicanalistas chamam-lhe castração, consciência da morte mas, no fundo é a mesma coisa, é o homem que é filósofo e ele sabe que está condenado à finitude, que não é eterno. E isso, quando nós percebermos, na sua dimensão mais profunda, é para nós um desafio, para nos projectarmos, para realizar os tais projectos de vida que nos possam guiar para lá da própria morte, nos possa resolver a morte do esquecimento.

A vida não é eterna…

A vida não é eterna, é verdade. Mas pode ser eterna a recordação que deixamos e que fazemos à humanidade.

Sendo professor no Instituto Politécnico de Bragança, o que pensa de toda esta polémica em relação à passagem ou não a Universidade?

Eu sou um pouco crítico em relação a essa situação. Entendo que essa é uma questão hominalista, ou seja é uma questão do homem. Eu entendo que o Instituto tem crescido com uma massa crítica interessante. Há muita investigação e eu acho que independentemente de se chamar Instituto ou Universidade deve cumprir a missão para que foi criado que, tem a ver com a aplicação desse conhecimento todo ao desenvolvimento regional e local e nacional também. De resto eu abstinha-me de ser mais crítico e de comentar essa polémica.

O que se pode fazer para melhorar a vida das pessoas com deficiência?

Ora bem, cada caso é um caso. Na problemática da deficiência a individualização é absolutamente essencial. Entendo que não há uma teoria geral, há situações gerais. Entendo que o que é comum a uma pessoa deficiente, também é comum a uma pessoa não deficiente. Por exemplo, a adesão à autonomia, à realização da autonomia de cada indivíduo. Cada individuo consegue operar, consegue ser indivíduo, consegue sentir-se bem se for autónomo, o mais autónomo possível, isto tanto é válido para uma pessoa com deficiência como sem deficiência, continuamos a apostar nisso.
Há outra trave que me parece aí importante, que é a questão da aceitação por parte da sociedade do diferente, porque isto é importante.
Repare, se da sociedade não houver uma exclusão do diferente, houver tolerância para o diferente, acho que a deficiência não tem lugar, portanto, é preciso perceber isso. As sociedades são cada vez mais multiculturais e cada vez mais tolerantes mas, também, há expressões de intolerância ao nível do racismo, xenofobia, radicalismos religiosos e etc. Sabe que há muita intolerância no mundo de hoje. Julgo que as sociedades também, devem abrir uma porta para a deficiência e a porta para a deficiência que é possível abrir é a porta da diferença.
Penso também, que o desenvolvimento tecnológico é muito importante para ajudar a pessoa com deficiência e, depois, há um aspecto muito importante que foi aquele a que eu cheguei mais tardiamente que é a reconversão positiva da deficiência. Quer dizer, a deficiência normalmente funciona como uma carga negativa nas representações sociais então, se nós pudéssemos reconverter positivamente essa carga que é negativa, torná-la positiva e isso só se pode fazer, por aquilo que eu chamo via estética, pela via do belo, de alguma mudança ao nível dos valores que as pessoas têm mesmo ao nível do belo e têm em relação ao mundo.
Um professor deficiente, qual é o problema? Se associarmos a isso uma certa dignificação estética que torne possível a aceitação, temos o problema da deficiência resolvido. Qualquer coisa que tem de se suportar mas, que até pode ser interessante para a vida social, no sentido de enriquecer a multiculturalidade, enriquecer a diversidade, porque as sociedades são tanto mais ricas, quanto mais abrirem as portas à diversidade.

Compreendê-los como fazendo parte da sociedade.

Fazerem parte da sociedade mas, repare bem, numa linha positiva de prestação de qualquer coisa, não só como qualquer coisa que se põe ali mas, como qualquer coisa que é interessante fazer parte da sociedade. Eles podem trazer esse contributo, visões que enriquecem a diversidade, porque uma sociedade, quanto mais integrar a diversidade mais rica ela é. Iguais e diferentes, deve ser o lema.

Olhando agora outros problemas da região. Fala-se muito da falta de acessibilidades e da desertificação da nossa região. O que poderemos fazer, nós transmontanos, para tentar resolver estes graves problemas?

 Bem, você sabe que eu não sou político nem enveredei por essa via e essa questão toca, de facto, as responsabilidades do cidadão comum e mais ainda as responsabilidades dos políticos e daqueles que assumem gerir os destinos das regiões e das populações. Agora, como cidadão comum, posso dizer-lhe que é algo que pode ser melhorado. Se aqui tivéssemos melhores condições em termos de relação uns com os outros, um melhor investimento cultural…
Talvez eu possa sintetizar isto, o que eu penso como cidadão, dentro de três atitudes que eu considero fundamentais: uma primeira atitude das pessoas em relação aos bens e aqui vejo dois pilares fundamentais. Acho que o cidadão aqui, de Trás-os-Montes deveria ter uma ideia de ser parcimonioso no consumo, dada a gravidade que o país atravessa. Nós sabemos isso, os problemas que está a atravessar e o caminho onde chegou. Teremos de pensar seriamente em ser parcimoniosos na questão do consumo mas, esta atitude, ligada com uma outra que é como eu posso contribuir para a produtividade, ou seja, para a produção de riqueza. Entendo que estas duas ideias são essenciais, não só para o cidadão de Trás-os-Montes, como para o cidadão do país em geral.
Depois, há aqui uma segunda atitude que, para mim, parece também, fundamental que, é a atitude de inovação e criatividade e, isso foi, mais ou menos, aqui abordado ao longo da entrevista. Penso que é da responsabilidade do sistema educativo e que a educação não pode ser uma paixão porque as paixões são cegas. As paixões fecham-nos numa dupla e depois não vemos nada. Aí é que somos os verdadeiros ceguinhos. Uma pessoa apaixonada não vê mais nada do que isso, ora, a educação não tem nada a ver com a paixão, a educação deve ser um imperativo, uma obrigação e eu acho que a inovação da criatividade é qualquer coisa que, desde que se nasce, se pode desenvolver, implementar. É por isso que eu acho que é útil a filosofia, naquela inquietação de que me falava. Se tivermos pessoas que sejam capazes de inovar e de criar temos gente que é capaz de inventar as soluções para o futuro e julgo que aqui falhamos, um pouco, nesta dimensão. Compramos tudo feito, está tudo feito, as pessoas não precisam de inventar coisa nova e eu acho que temos que motivar as pessoas ao contrário.
E agora, uma terceira atitude. Se a primeira era a relação com os bens, com os aspectos materiais, esta terceira atitude é uma relação com o bem, bem no singular. A nossa língua só tem bem e bens, por exemplo o Alemão tem duas palavras totalmente diferentes dasvol e dasgoot que significa o bem e são palavras radicalmente diferentes. Só para lhe dizer que bem e bens são coisas diferentes e aqui nesta relação com o bem implica a descoberta de um certo prazer de cooperar e de entrar na reciprocidade uns com os outros. O género humano não pode actuar com certo generalismo mas, deve aprender a dar as mãos uns com os outros para resolvermos os problemas de forma colectiva porque assim a eficácia é maior e, digamos que, esta terceira atitude, que é para mim das mais difíceis de conseguir mas, é absolutamente necessária. O normal é, por exemplo, quando um indivíduo inventa qualquer coisa e o outro copia, não cria e não goza com o produto que o outro pôs ao dispor da comunidade. Devemos aprender a ter prazer com alguém que é capaz de produzir riqueza, porque ele não a leva para o outro mundo ele deixa-a cá mas, o normal é proliferar a inveja. Se tu tens eu também quero ter e, aqui permanecemos na estrutura do ter, ou seja, naquela primeira atitude dos bens que também é necessário ter mas, depois, é preciso entrar nesta outra atitude que é a atitude do bem, da relação com o bem, do eu ser capaz de me relacionar com outro ser humano para a construção da humanidade.

E em relação ao voltar de costas das duas capitais de distrito da província de Trás-os-Montes e Alto Douro e de toda a politica que as envolve?

Voltamos à mesma ideia de bairrismo. Dá-me a impressão que nós, Portugal quando um país maior fala de Portugal… “mas Portugal tem assimetrias? Litoral e interior? Eu, no mapa, vejo um filete tão fininho ali, junto ao mar! Como é que há assimetrias?” “Como é que há assimetrias dentro da própria região?” Para cá do Marão mandam os que cá estão, de Vila Real e Bragança. Acho que aí não há dúvida nenhuma que a separação enfraquece, a união faria a força, eu entendo isso. Não acho que deva haver bairrismo tem que haver um certo crescimento das pessoas para nós, no fundo, sentirmos prazer com o crescimento dos outros porque, no fundo, também é um crescimento nosso. Alinho mais pela partilha, pela troca, pela permuta, pela construção, pela união do que pela realização do bairrismo em relação a Bragança ou em relação a Vila Real.

Podemos pensar num futuro risonho para o nordeste transmontano?

Depende muito da capacidade que o Nordeste tiver de criar essas novas atitudes de que falei em relação aos nossos jovens. Penso que é mais importante os jovens que deixarmos ao nosso mundo, do que o mundo que deixarmos aos nossos jovens.

Doutor José Alves, para terminar, que personalidade ou personalidades o marcaram mais ao longo da sua vida?

Não me recordo bem mas, tive professores que me marcaram a vários níveis, a vários níveis de ensino, sobretudo pensadores. Todo aquele leque de pensadores que me ajudaram a estruturar o meu pensamento, os filósofos conhecidos desde o velho Sócrates, Platão, Descartes, Hegel, Cante, Heidegger, Freud, ajudaram-me a estruturar e depois personalidades que, sempre, de maneira simples, me ajudaram a perceber o que o homem é na sua relação simples com o mundo. Às vezes, só é preciso abrirmo-nos, escutar o outro e eu aí aprender com toda a gente. Não sei eleger. Há pessoas que são simples; são essas pessoas que me ensinam mais porque eu entendo, faço uma grande distinção entre o saber e a sabedoria e há muita gente que tem o saber e esse saber é despido na sabedoria. Para mim a sabedoria incorpora um saber com prudência, com sentido humano, com ética, com justiça, com liberdade. A sabedoria, hoje nós sabemos que a ciência não evolui pelo lado da verdade, nós sabemos que a verdade é o valor fundamental da ciência mas, nem sempre a ciência está do lado do bem pois, sabe-se que há um divórcio entre verdade e bem e o homem não é capaz de fazer esta junção entre a verdade e o bem, por isso é que, muitas vezes, muitas pessoas ficam só no plano do saber e esquecem-se do plano da sabedoria, e o plano da sabedoria entrega essa noção do bem.
Ora bem, as pessoas que mais me marcam são as que são capazes de fazer esta junção e, se for por essas aldeias, ainda encontra gente que faz isso. Há amigos que conversam connosco que também têm essa dimensão. Eu acho que toda essa gente que me marca e a quem eu dou valor, são pessoas que não perdem esta dimensão do bem, do valor da dimensão humana acima de tudo e é da simplicidade que isso me advém.

2 comentários:

  1. Gostei muito de ler a entrevista do Zé Manuel. Há tantos tantos anos que o não vejo! Conheci-o por intermédio do António Tiza, também de Varge, e o irmão o Francisco (que também não vejo há muito) foi meu colega no seminário. Em casa dele cheguei a ouvir alguns discos do Zeca Afonso antes do 25 de Abril, ele possivelmente já no se lembrará. Tinha uma grande admiração por ele.
    É bom saber dele. Daqui lhe envio um grande abraço.
    Obrigado Mara e Marcolino, por estes pequenos milagres.
    Amadeu

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  2. Agradecemos a tua constância Amadeu, e ficamos felizes por te "surpreender".
    O Zé Manuel é, e pelo jeito, foi, um bocadinho revolucionário. Zeca Afonso antes do 25 de Abril, só os que tinham coragem...
    O Marcolino e o Zé Manuel são amigos, eu não o conhecia e foi, para mim, uma grata suspresa descobri-lo.
    A entrevista continua atualíssima, parece que foi feita ontem à noite.
    Considero o Zé Manuel um exemplo a seguir e admiro muito a sua força, assim como a do irmão que mal conheço.
    O mundo é uma pequena aldeia onde todos estamos ligados por fios indeléveis e invisíveis. Pena é que não tenhamos tempo para nos descobrir.

    Nós é que agradecemos Amadeu
    Mara e Marcolino

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