sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Entrevista com Doutor Chrys Chrystello


Começo por lhe perguntar Doutor Chrys Chrystello, que recordações guarda da sua infância e adolescência?

Tendo nascido em Portugal, as únicas recordações que eu mantive sempre bem vivas, ao longo dos anos, dando jus à existência da palavra saudade, que, infelizmente, não tem tradução em qualquer outra língua, as recordações que eu guardo, curiosamente, sendo eu um urbano, um citadino, nascido no Porto, as recordações são todas relacionadas com Trás-os-Montes.
Os meus avós maternos eram transmontanos, a minha mãe era transmontana, saiu de Bragança há cerca de 60 anos, e, portanto, as férias acabavam por ser passadas com os meus avós, em aldeias do distrito de Bragança.
Primeiro, a liberdade dos campos, o poder deitar-me à noite nos palheiros a ver as estrelas, coisa que era impossível, já nessa altura, e, já lá vão para aí 40 anos ou mais. Era impossível, já na altura, verem-se estrelas no Porto. O simples facto de poder jogar à bola com os outros miúdos da aldeia, sei lá…, o ranger dos carros de bois, os burricos a irem com os cântaros à fonte da Crichinha na aldeia da Eucísia, os carros de bois no Azinhoso perto do Mogadouro, as idas à igreja e todos os rituais religiosos, totalmente diferentes da cidade, as procissões com rituais ainda muito antigos que já se tinham perdido nas cidades, e, sobretudo, a liberdade dos campos.

Recordações, essencialmente, todas elas, do meio rural…

Bucólicas…

Do meio rural.

Do meio rural. Eu sou do meio rural. As aldeias que, infelizmente, estão a desaparecer porque as pessoas, também, estão a desaparecer, representam aquilo que há de mais vital na cultura tradicional portuguesa. E, lamentavelmente, não se está a fazer o suficiente, para recuperarmos essas aldeias; seja através da própria imigração, por que não trazer gente dos países de Leste que tanto querem ficar cá e radicar-se e encontrar uma nova pátria, assim como eu encontrei na Austrália. Por que não trazê-los para estas aldeias desertas, dar-lhes as casas abandonadas, os campos abandonados, e, assim, revitalizar toda uma economia.
Porque, com a vinda deles haveria escolas, haveria necessidade para médicos, para advogados, para mais serviços públicos.
As aldeias deixariam de ser aquilo que são. Por exemplo, Guadramil, neste momento, tem menos de cem pessoas, todas elas, noventa e tal por cento, com mais de cinquenta anos, e, é esse aspecto desolador de ver as casas a ruir, as pessoas a ruir, é como se eu visse, também, um bocado do Portugal que eu amo, a desaparecer.

E os que não morrem lá, fogem para outros sítios, não é?

E a tentativa de fuga é muito grande. Evidentemente, que as pessoas só se apercebem depois de irem para o Porto, para Lisboa e para as grandes cidades. Só se apercebem que largam este maravilhoso distrito para irem viver no meio de cimento. Quando abrem a janela, começam a ver os vizinhos ou paredes de cimento, a poluição e tudo o mais. Mas, enfim, é a escolha dos jovens.

São escolhas…

E quem sou eu para lhes dizer que estão a fazer uma asneira ao largarem o interior, em busca…

Em detrimento do interior, não é?

Em detrimento de uma utopia que não existe.

A sua vida foi um tudo ou nada de saltimbanco pois, ora estava em Vila Real a apresentar e a produzir programas para a rádio Alto Douro, como tão depressa se encontrava em Lisboa, como editor juvenil da revista “Multidisco” e, mais tarde, na Rádio Renascença com vários programas. Em 1967 ingressou na universidade do Porto para fazer economia. Fale-nos desses tempos.

Tempos difíceis! Ainda havia um regime bastante ditatorial, embora, se tenda a dizer que ele era bastante benevolente, eu nunca dei conta embora, nunca tivesse tido a sorte de estar preso, para dizer, agora, que era um grande resistente. Fui resistente de outra forma. Mas, a vida de estudante, na altura, era difícil. Nós nem sequer tínhamos direito a ter uma associação de estudantes. Eu fui um dos fundadores, em Economia, de uma associação pró-estudantes. Foi a artimanha de que nos servimos para criar um sítio onde pudéssemos estar, copiar sebentas, fazer alguns panfletos contra a guerra colonial, e, fazermos protestos contra o célebre ministro Veiga, ainda hoje vivo, Veiga Simão, que, ainda hoje, está a decidir se Bragança há-de ter uma universidade ou não. Infelizmente, eu não mando, porque não tenho grandes recordações do tempo em que ele foi ministro, como estudante. Lembro-me de termos feito alguns abaixo-assinados, relativamente à má qualidade do ensino e, infelizmente, o ensino não melhorou de então para cá.
Mas… estávamos preocupados, nessa altura, com duas coisas, sobretudo com a má qualidade do ensino, o extremo favorecimento que era dado às classes dominantes, sob um ponto de vista sócio-económico.
Eu lembro-me, perfeitamente, de um colega meu, que era contabilista, uns anos mais velho que eu, que trabalhava das 8 às 18 e, que eu encontrava depois dessas horas. Eu tinha umas aulas ao fim da tarde, que eu encontrava depois de um dia de trabalho, e esse homem decerto merecia tirar esse curso muito mais do que eu, que era um menino de boas famílias, sem grandes preocupações económicas, em que a comida me aparecia no prato a horas, e que o dinheiro surgia quando era preciso. E nessa altura, estas eram as pessoas favorecidas e não aquelas que trabalhavam.
Felizmente, houve uma certa democratização a esse nível e esse é um aspecto positivo. Mas há muitas coisas, ainda, que precisam de melhorar.
A outra grande preocupação que nós tínhamos, nessa altura, obviamente, era lutarmos por uma guerra colonial que não nos dizia nada. Eu costumava dizer, nessa altura, que se os espanhóis nos invadissem, eu, decerto, iria defender o Porto onde vivia na altura. Ou, se fossem outros quaisquer, certamente, que iria defender a terra e a grei.

A pátria, não é?

A chamada pátria, uma palavra que eu não gosto muito. Há várias formas de patriotismo, e, normalmente, são todas más.
Mas, sobretudo, preocupou-me ter de defender lugares longínquos, onde tinha alguns primos e achava que, como eles tinham nascido lá, eles é que deviam defender aquilo, que era a terra deles. Mas, minha não era! Eu não tenho afinidades étnicas apesar, como disse, de ter lá família, como Angola ou Moçambique ou mesmo com colónias já perdidas, como o Brasil. Portanto, o problema era deles e dos que lá viviam.

Tinham de defender, por eles e para eles…

E decerto que não era meu. Em nome de noções que me eram totalmente alheias. Além de ser contra a guerra, nunca andei à pancada com ninguém. Portanto, sou basicamente um pacifista. Não me via de canhota em punho, de G3 em punho, e matar o meu irmão, só porque me mandavam matar. Eu, normalmente, tendia a não fazer aquilo que me mandavam, portanto, ia ser difícil e, foi difícil.

Apesar de tudo, chegou a Timor em Setembro de 1973 e, foi prestar serviço no exército colonial português. E, depois dos dois anos lá passados, começou a escrever o livro “Timor-Leste: 1973-1975”.

A minha saga em Timor foi muito curiosa. Acabei por ir para Timor, por sorte. Aconteceu-me uma coisa inacreditável! Houve um oficial, em Timor, que se ofereceu para voluntário para Angola. E, eu, que uns dias antes, tinha estado pronto para arrancar para a Guiné, numa altura em que as mulheres dos oficiais já estavam a ser evacuadas para os barcos ao largo da costa, isto, portanto, passa-se em meados de 73, acabo por ir para Timor. Toda a gente me dava os parabéns, visto que em Timor não havia guerra.
Como poderemos constatar a seguir, há sítios em que sem guerra é pior do que se houvesse guerra. Primeiro, porque os militares estavam frustrados e descarregavam em nós, pobres milicianos, as suas frustrações de toda a ordem. Depois, porque tive o azar e a sorte de estar em Timor quando se deu em Portugal o 25 de Abril. Infelizmente, o barco que levava o 25 de Abril para Timor ainda não chegou lá. E, graças a isso, aconteceu em Timor aquilo que todos nós sabemos, tal como relato no livro “Timor-Leste: Dossier Secreto 73-75”. Foram dois anos duros, porque me convenci de que tendo acabado a censura em Portugal, seria possível lá publicar (eu estava à frente de um jornal local) as notícias daquilo que se passava em Portugal. E a grande parte das notícias era proibida. O Chefe de Estado-Maior e o comandante da Marinha e outros, todos se arvoravam em representantes da Junta Nacional. Cada um tinha a sua agenda política, uns pró-Indonésia, outros pró-isto, outros pró-aquilo, … Basicamente, eram todos anti-liberdade. Foram tempos difíceis. Chegaram a expulsar vinte e oito oficiais, um juiz, incluindo um tenente-coronel e eu acabei por ter sorte, porque tinha trabalhado com o engenheiro Melo Antunes em Leiria, um dos grandes homens da revolução de Abril e passava a vida a escrever-lhe cartas, a fazer queixa, e eles convenceram-se de que eu tinha uma relação óptima com o engenheiro Melo Antunes e acabaram por me pôr fora de lá. Suspeito que ele morreu sem ter lido nenhuma das minhas cartas e isso, talvez, me tenha servido para não ter ido conhecer Moçambique, tal como esses vinte e oito camaradas de armas que, já depois do 25 de Abril, foram desterrados, foram exilados de Timor para fora.
Essa experiência foi bastante profícua. Conheci homens, não conheci o Xanana, que é mais velho que eu dois anos, mas conheci homens como José Ramos Horta, e como tantos outros. Da resistência, João Carrascalão, com quem tive oportunidade de lidar ao longo dos últimos 30 anos e foi giro ver nascer a FRETILIN. Os partidos nasciam de espontânea geração, perfeitamente espontânea. Todos eles, do dia para a noite. Criou-se um sentimento democrático onde não havia, basicamente, bases nenhumas. Isso precipitou algumas coisas e a origem do livro é exactamente uma narrativa de algumas cenas surrealistas daquilo que se passou nesses dois anos, lá. Eu achei que era importante agora que Timor está totalmente destruído em termos de arquivos históricos. Vou repescar poucas coisas que ainda tenho. O livro foi lançado em 99, portanto, cobre o período de 73-75 e é uma experiência não contada na primeira pessoa. Servi-me de documentação que eu tenho e da minha vivência ao longo desses dois anos.
Neste momento, estou a completar isso com todas as notícias que mandei ao longo dos anos, numa altura em que ninguém publicava rigorosamente nada sobre Timor, quer em Portugal quer na Austrália, quer noutros países. E era muito difícil convencer os delatores e os governos que estavam aqui no poder, em Lisboa, de que valia a pena publicar, fosse o que fosse sobre Timor. Portanto, já vai em oitocentas e tal páginas. O livro está praticamente concluído… será muito giro para as pessoas verem…

É um grande livro…

…o que foi a guerra da resistência.

É um grande livro com muitas histórias.

Muitas histórias, muitos documentos manuscritos do Xanana, do bispo, muita coisa que se perdeu e, portanto, tenho a sorte de ter as cópias que, na altura, me chegaram às mãos. Por exemplo, lembro-me, perfeitamente, que o bispo Ximenes Belo, a carta em que ele pedia um referendo à ONU, ao Conselho de Segurança da ONU, fui eu o primeiro a ter acesso a ela e a divulgá-la para o resto do Mundo. Foi notícia de primeira página no “New York Times” e noutros jornais, e veio através de mim. Portanto, eu tinha os canais privilegiados, dado o meu envolvimento, digamos, queria fazer alguma coisa pelo povo de Timor. Não tenho nada a ver com os políticos, nem com as pessoas que estão no poleiro.

Mas pelo povo…

Eu gosto do povo de Timor.

Não só por isto mas, por muitas outras coisas, o seu currículo é de tirar o fôlego. A sua vida foi um deambular por vários amores, cada um maior e mais importante que o outro, desde o jornalismo político, a colaborador de vários ministérios australianos, linguista, tradutor, intérprete, escritor… Foi realmente uma vida muito preenchida.

E continua a ser. Neste momento, além de ser tradutor e de leccionar, continuo muito ligado aos colóquios anuais de lusofonia que tive a sorte de iniciar com o grande apoio do recentemente falecido Prof. Embaixador, Dr. José Augusto Seabra, foi um homem que, há oito ou nove anos, quando eu cheguei a Portugal, me incentivou a fazer coisas que eu julgava que eram impossíveis…

Ou que achava que eram impossíveis…

É, ele achou que valia a pena tentar e, os próprios manuais de lusofonia estão a provar que é possível fazê-las. Lembro-me que antes de vir para Bragança, há cerca de 2 anos, diziam que era impossível organizar cá um colóquio daquela envergadura. O primeiro já foi feito no ano passado. A partir deste ano, os colóquios têm o apoio total da Câmara Municipal de Bragança e irão prosseguir. O programa deste ano está bastante mais vasto com concursos de fotografia, pintura, escultura e exposições, uma mini-feira do livro com amostras de livros sobre a lusofonia, portanto, além da componente linguística de 3 dias, temos muitas mais coisas.

E datas?

21 a 23 de Outubro e ressalto, sobretudo, um aspecto importante que tem sido muito descurado. Nós, em Portugal, temos duas línguas e raramente, alguém se lembra da segunda língua. Pois bem, o primeiro dia é totalmente dedicado às línguas minoritárias, com lugar de honra para o mirandês…

O mirandês…

Ainda não arranjámos, queríamos um representante que nos pudesse falar, actualmente, da situação desesperante do rionorês em vias de extinção. Ainda, não conseguimos obter alguém que tenha material actualizado em relação a esse tema que achamos que é importante. As línguas estão a desaparecer! Desaparecem cerca de duzentas e cinquenta línguas, no mínimo, em cada ano. Considerando que só existem seis mil e quinhentas, neste momento, daqui a uns tempos, toda a gente está a falar inglês ou outra língua qualquer, ou chinês…

Ficam os dialectos…

Ficarão alguns dialectos nacionalistas, e pouco mais.

De Portugal a Macau, onde foi tradutor oficial do governo de 76 a 83, seguindo-se o país continente, onde, finalmente, se fixou e naturalizou. Porquê a Austrália?

Primeiro, porque estava perto de Timor (essa é uma das grandes razões). Segundo, porque eu tinha lá estado em 73-74 e tinha gostado do país. Tive a oportunidade que a maioria daqueles que emigram por razões políticas ou económicas não tem. Pude escolher o país onde queria viver e a Austrália foi esse país. Eu já conhecia a maior parte dos países da Europa, tive essa sorte em criança. A Austrália representava tudo aquilo que não encontrava na velha Europa. Era um país novo com poucas tradições, pouca cultura ou por outra, muitas tradições aborígenes e pouca cultura branca, muito recente. Um país de oportunidades, um país para pessoas ousadas, para pessoas que quisessem arriscar, para pessoas que quisessem fazer, sem os espartilhos das sociedades tradicionais, imbuídas de sentimentos judaico-cristãos, como Portugal e Espanha, entre tantos outros.
Essa foi a atracção principal. Foi esse sentimento de liberdade, aquela liberdade de que eu falava, que encontrava nas aldeias transmontanas, na minha infância, vim encontrá-la na vastidão monumental da Austrália.

O país é enorme…

Uma viagem de um sítio qualquer, basta pensarmos, se pusermos os mapas de Sydney e Melbourne, um em cima do outro, dá-nos uma área maior que Portugal e, ainda, vamos buscar um bocadinho à Galiza e, portanto, estamos a falar de duas cidades…

Depois de várias décadas longe de Portugal, mas sempre ligado ao nosso país, resolveu regressar. Porquê, Bragança?

Bragança surgiu como podia ter surgido outro sítio qualquer. Eu não acredito no destino mas, que “lo hay, lo hay”, como diziam os outros em relação às bruxas. Isto é o fechar de um círculo. Talvez nunca tenha prestado demasiada atenção à herança transmontana da minha mãe e ao lado materno, e isto talvez, seja a vingança de eu ter andado a vida toda fora. Portanto, vim encerrar o ciclo que ela interrompeu há 60 anos, quando saiu daqui, da rua Direita, tal como muitos jovens, hoje, saem para prosseguir os seus estudos, levando atrás os pais. O meu avô era escrivão de direito, aqui, no Tribunal, na rua de Trás (antigamente) e a minha mãe estudou, aqui, no liceu onde hoje, é o Centro Cultural, ali, na Praça da Sé. E saiu daqui para estudar. O facto de ela ter ido estudar para fora, implicou que os meus avós acabassem por deixar Bragança, também, e fossem atrás dela. Não fosse a menina perder-se!...
Ela não cortou, verdadeiramente, os laços com isto, mas devo dizer que, desde que eu estou em Bragança, apesar de já ter 81 anos, já cá veio mais vezes, nestes dois anos, do que nos últimos sessenta. Portanto, isto é o encerrar de um ciclo.
Eu, há dois ou três anos, buscava, de facto, uma colocação no interior. A minha mulher ficou colocada na Escola Superior de Educação e, enquanto o contrato dela durar, ficaremos aqui. Aliás, eu gostaria de ficar aqui para sempre. A ideia era, de facto, irmos para o interior. Qualquer região do interior, fosse Beira ou Trás-os-Montes ou Minho, me atraía, exactamente por ter uma qualidade de vida, qualidade do ar que não se encontra naquelas grandes aldeias a que chamamos cidades, de Lisboa e Porto. Para mim, continuam a ser aldeias para quem viveu em sítios como Macau e Hong Kong, com densidades populacionais inacreditáveis, ou em Sydney e Melbourne, portanto, Porto e Lisboa são cidades provincianas com pretensões, sem a qualidade de vida.
Lembro-me de, em Sydney, estar a 10 minutos da baixa, viver numa zona do condomínio que não era totalmente fechada, com um ribeiro, com árvores centenárias, com centenas de pássaros diferentes, a ver Bundy Beach, a praia mais célebre de Sydney, ao longe, e, estar ali ou estar no meio da selva era praticamente a mesma coisa! Eu estava dentro da cidade, e isto não é único. Havia várias pessoas, em vários nichos destes, dentro da grande metrópole que é Sydney, a terem esta qualidade de vida. Em cada esquina existe um campo para as crianças brincarem, uma relva…

Há preocupação com a qualidade de vida…

Há uma preocupação muito grande com a qualidade de vida e, isso não se encontra em Portugal, onde, normalmente, os parques infantis são cimentados para se poder construir mais uma coisinha qualquer… sempre dá mais algum.

A sua vida profissional está, intimamente, ligada ao jornalismo a que se dedicou durante décadas, em todas as suas vertentes, sente-se realizado?

Sim, como jornalista que, foi o grande sonho da minha vida. Eu deixei as lides economistas quando saí de Macau, felizmente, não tenho nada a ver com números, não tenho vida para aquilo. O jornalismo foi um dos grandes sonhos da minha infância. Lembro-me que aos treze anos tinha duas carreiras em mente: uma, diplomacia, seguir direito, outra jornalismo. Tive a sorte de poder entrar para fazer uns programinhas de rádio para a juventude na rádio Alto Douro. Depois, por um dos muitos acasos, a vida é cheia de coisas fortuitas e eu tenho sido bafejado com muitas delas, estava no circuito de Vila Real, no tempo em que, ainda, se disputavam grandes provas de automobilismo, um tio meu era o director clínico na altura e houve um grande acidente.
Há um piloto inglês, Tim Cash, que foi parar ao Hospital. O meu tio teve de ir lá, eu acompanhei-o, andava sempre com um gravador, que era uma coisa que não era como hoje, como os discman. Na altura, poucas eram as pessoas que se davam ao luxo de andar com gravador; fui com o gravador, tinha uma cassete dentro, e entrevistei o Tim Cash, saí cá para fora, vendi a entrevista e, passados uns meses, fiz uma proposta para criar uma secção de automobilismo na Renascença.
E foi, assim, que nasceu, no já longínquo ano de 67, se a memória não me falha, um grande programa de automobilismo que, depois, as outras estações copiaram. Nós, durante anos fizemos reportagens de automobilismo, ainda no velhinho estádio das Antas. Pela primeira vez, na história do automobilismo, tivemos um grande homem, que era o Francisco Santos (o Chico Santos) a ter um transmissor dentro do carro para descrever a corrida, uma coisa que, hoje, consideramos perfeitamente banal.
Depois, nos ralis, quando nos apareceram alguns homens de caçadeira, porque queríamos tentar ter acesso ao telefone, resolvemos instalar telefones de campanha, no princípio e no fim dos troços cronometrados e passámos a ter meios de transmissão dentro dos carros. Se pensarmos que isto se passou há quase 40 anos… É notável como se conseguiu fazer uma coisa que o resto do Mundo nunca tinha pensado. Hoje há câmaras debaixo de estradas, dentro dos carros, dentro dos motores mas, naquela altura, nunca nada tinha sido feito… e eu tive essa sorte. A partir daí, tive outro colega que continuou no automobilismo até hoje, um grande homem, o Pedro Roriz, dediquei-me cinco anos a fazer ralis e a cobrir ralis e dediquei-me, depois, à política. A política foi-me imposta pela vida e não foi uma coisa de jornalismo. O jornalismo político foi-me imposto pela vida e não por uma coisa que tenha buscado.
Mas, com um certo tom de poeta, um certo tom utópico, eu achava que havia muita coisa que estava mal no Mundo, e, era preciso que alguém falasse… como naquele tempo não se podia falar e, raramente, se podia falar, resolvi falar. E uma das formas que eu tinha para falar era escrever. Publiquei o meu primeiro livro de poesia, em 1972, tinha cerca de cem páginas mas, como eu conhecia uma senhora na censura, consegui que ele passasse com trinta e seis páginas. O que não foi nada mau! Lamentavelmente, um dos poemas chamava-se Angola e tive que mudar Angola para Vietname, para ele conseguir passar. Ainda hoje, o leio, e já está lá Vietname mas, eu leio Angola. Uma coisa curiosa, mas passou, passou! Nem todos os censores eram inteligentes, a maior parte deles não o era, era preciso a gente saber dar-lhes a volta.
Ainda, em relação à sua pergunta, só para terminar, considero-me extremamente feliz, porque pertenço a uma minoria de jornalistas que trabalhou décadas em jornalismo, e, fui muitas vezes saneado e fui muitas vezes suspenso, fui muitas vezes admoestado, punido, com contratos terminados, mas tive, sempre, a sorte de escrever aquilo que queria, como queria e sobre aquilo que eu achava que era importante.
E o caso de Timor para mim, foi um grande peso que eu arquei durante vinte anos mas, estou finalmente, a libertar-me com a publicação destes dois livros. Acho que já chega de (estou a exorcizar os meus velhos fantasmas!) carregar o povo de Timor todo às costas sem ninguém dar conta! E a coisa mais importante para mim, é que os futuros dirigentes timorenses possam saber aquilo que se passou, como foi a história deles, porque, raramente, encontrarão um manancial de notícias e de dados, como depois da destruição total que eles sofreram com aquilo tudo.

Quando é que estará previsto?

Estou, neste momento, a enviá-lo para editores a ver quem estará interessado em publicar o livro. Está mesmo na fase final. Falta-me só compor o último ano de 92, já vai em oitocentas e vinte páginas. Mas, estou só a acrescentar mais documentação que, entretanto, descobri relativa a esses períodos, período de Santa Cruz, que foi onde Timor passou a estar nas bocas do Mundo, Santa Cruz, … houve muitos antes disso. Tem que se falar deles!

Também, a língua portuguesa e a sua influência no Mundo, ocuparam e ocupam a sua vida. Que gosto tem a língua portuguesa nesta Torre de Babel em que vivemos?

Deve ser mais uma das minhas utopias. Eu acredito que a única coisa que me liga a Portugal além das boas recordações de Trás-os-Montes, é a língua. E, embora, eu me expresse mais em inglês do que em português, eu acho que a herança desses primeiros vinte e poucos anos, que vivi em Portugal, permaneceu comigo. A vontade de eu continuar a escrever em português, para esses órgãos de informação todos, a maior parte deles eram portugueses, incluindo rádios, televisões, jornais, permitiu-me continuar a praticar a língua portuguesa. E fiquei admirado como em Timor não havia língua escrita até aos anos 60. O tétum nem sequer tinha sido transformado numa língua escrita. Os outros dialectos eram orais e, eles tinham sobrevivido, até essa altura, com traduções orais.
Quando cheguei à Austrália, descobri que os aborígenes estavam lá há sessenta mil anos… não tinham, praticamente, nenhuma língua escrita. As línguas escritas na Austrália são uma invenção dos últimos cinquenta anos. Eu convenci-me, talvez, que a língua fosse um dos bens mais preciosos que nós temos, além de uma paisagem riquíssima e maravilhosa que temos em Portugal. Não sabemos aproveitar mas… seria conversa para outra ocasião.
A língua é aquilo que nos une. Mesmo, quando falamos mal. Mesmo quando ouvimos os emigrantes, na Austrália, a misturarem inglês com português. Porque esses já não falam nem português nem inglês. Falam um misto, uma mescla… E quem diz os da Austrália, diz os da Suiça, da França, do Luxemburgo e, tantos outros, que tiveram que se adaptar e, muitas vezes, sem terem conhecimentos de base, não por culpa deles mas, por culpa do sistema de que tanto se fala. E este sistema não tem nada a ver com o futebol. Um sistema que não lhes permitiu que tivessem educação e, por isso, tiveram que sair daqui, de Portugal, a salto, grande parte, nos anos 60 e, tiveram que sair daqui, porque não havia condições neste país para as pessoas viverem. E é preciso termos muito carinho por aqueles que estão lá fora.
Mesmo que não gostemos deles ou dos comportamentos deles. Portanto, a língua é aquilo que os mantém ligados a Portugal. E é lá fora que se nota, exactamente, que a língua é o elemento comum. Eu encontrei pessoas descendentes de goeses, em países tão distintos como nas Bahamas que, ainda, se sentem muito orgulhosos da língua e da cultura portuguesas. Na velha Malaca onde não se fala português, há mais de 300 anos, ainda há pessoas que falam algum português, porque têm descendentes portugueses. Em Macau, havia um crioulo, o papia de Macau, muito semelhante ao papia cristão de Malaca, em que as pessoas tinham orgulho de falar à moda antiga, das velhas misturas entre os macaenses e os portugueses. Portanto, a língua é um elemento absolutamente vital. E é uma coisa que está em constante mudança. Se nós não mantivermos a língua bem viva, perdemos grande parte da nossa cultura, da nossa oralidade, das nossas tradições.

Foi um pouco responsável por espalhar a língua portuguesa um pouco por todo o lado bem como a sua obra que está espalhada pelo Mundo em vários jornais, revistas… Sente-se confortado e acarinhado pelo Governo português?

Eu, felizmente, não tenho nada a ver nem com o Governo português nem com outro Governo. Por exemplo, os colóquios anuais da Lusofonia têm tido uma particularidade. Apesar de termos um grande apoio da Câmara Municipal de Bragança, que é de enaltecer, os colóquios em si, são auto-suficientes. As contribuições de cada participante custeiam a grande parte do colóquio. Isto é uma noção nova em Portugal, onde existe muita subsídio-dependência.
Eu vim da Austrália onde não estamos habituados a viver nesta subsídio-dependência. Achei por bem tentar criar, aqui, um colóquio em que as próprias contribuições dos oradores e dos participantes presenciais pudessem custear as despesas do Secretariado. Portanto, evidentemente, que precisamos de uma organização por trás. Neste momento, temos a Câmara Municipal de Bragança a dar-nos o apoio logístico e não só, e a tornar e a criar outras actividades paralelas para enriquecer o colóquio, e dar-lhe uma dimensão que eu, obviamente, não poderia fazê-la de outra forma.
Mas, creio, que nós não precisamos de esperar nada, nem do Estado português nem do Estado brasileiro nem dos Estados dos PALOP’S, para fazermos algo pela língua. Acho que isto depende de cada um de nós. A revolução faz-se em nossa casa. Pondo os nossos filhos a falar bem português, lutando para a preservação da língua portuguesa. Portanto, acho que aí não compete a nenhum Governo meter-se na língua. A única coisa que o Governo devia fazer, era criar uma política da língua, como já muitos países têm, e isso falta, obviamente, mas isso falta para as gerações vindouras.

Ao ser confrontado com mais de trinta dialectos, em Timor, descobriu que, na Austrália, há provas da chegada dos portugueses há mais de duzentos e cinquenta anos e da existência de tribos aborígenes, que falavam o crioulo-português. Esta descoberta foi um marco importante na sua vida?  

Foi. Eu conheci um filólogo, o Professor Von Brandenstein, de origem alemã, que tinha passado vinte e cinco anos no mato, a estudar dialectos aborígenes. A determinada altura da sua carreira, na década de 60, descobriu um dialecto que não tinha rigorosamente nada a ver com nenhumas das outras dezenas de dialectos que ele já tinha estudado. Tentou encontrar traços de referência com outros dialectos falados noutras regiões, portanto, podiam ser tribos não-relacionáveis, e, encontrou maneiras de falar e de construção da língua, totalmente diferentes.
Tentou descobrir, depois, donde viria a diferença, e à medida que começou a analisar as palavras, começou a achar que elas tinham algo do velho latim que ele tinha aprendido.
Não havia grande influência do latim na Austrália, nos últimos trezentos anos; os espanhóis, também, não colonizaram a Austrália, embora estivessem perto, estiveram nas Filipinas mas, não são muito conhecidos por aquelas paragens da Australásia, portanto, ele chegou à conclusão que só poderia ser português. Meteu-se a aprender português, estudou português.
Um outro grande homem, Sir Kenneth MacIntyre, comendador da Ordem do Infante que, em 1964, publicou um livro sobre a descoberta secreta da Austrália, tendo reinventado os mapas e a cartografia portuguesa, tendo estudado Pedro Nunes, para poder decifrar esses mapas. Também, o Professor Brandenstein, resolveu fazer o mesmo em relação a esses aspectos linguísticos. E, enquanto, um se serve dos mapas e de monumentos arqueológicos, portanto, de restos que existem para provar que os portugueses lá estiveram, este serviu-se da preservação de uma língua, dialecto aborígene, com centenas de palavras que são de português arcaico: “ferreira”, “bucará”, são muitas…, “xarma” para chama e, a similitude entre as palavras desta tribo e as palavras de crioulo-português, era absolutamente assustadora.
É arrepiante imaginar que, até 1989, data em que morreu o último membro desta tribo de… portanto, quando dizemos que morreu o último membro da tribo, era totalmente de sangue aborígene, portanto, os restantes já têm outras misturas e, é impressionante pensar como é que a língua portuguesa sobreviveu isolada numa região remota do Noroeste da Austrália em plena cordilheira montanhosa dos Kimberley, quatrocentos anos, portanto, resistindo a todas as influências das outras tribos vizinhas. Eles mantiveram um sentimento de segredo da própria língua que, supostamente, lhes teria sido imposto pelos portugueses que ali viveram oitenta anos e, quando se retiraram, os obrigaram a um voto de segredo que eles preservaram durante estes séculos todos.

Acha que deve existir uma Universidade em Bragança?

Creio que sim. Toda esta guerra para mim, faz-me muita confusão. Eu lembro-me que a minha “alma mater”, em Sydney, a Universidade de tecnologia, até há poucos anos, era um politécnico. E não houve nenhuma guerra, nem tivemos manifestações de outras universidades, em Sydney, a protestarem quando passámos de politécnico para universidade. Não entendo esta discriminação. Talvez, isto tenha a ver com alguns poderes e algumas benesses que foram, entretanto, atribuídos e que as pessoas temem perdê-los por haver uma universidade aqui. Todas as universidades são importantes, desde que tenham currículos, suficientemente atraentes, desde que tenham um corpo de docentes capaz e, desde que estejam em perfeita coordenação com o mercado. E as nossas universidades, infelizmente, continuam a criar doutores que, provavelmente, irão trabalhar em supermercados ou condutores de táxis. Como já se vê em muitos outros países. O problema será esse, portanto, e não será por haver mais uma universidade em Bragança que iremos formar mais doutores para trabalhar em supermercados.
Eu creio que, por aquilo que tenho visto pelo Professor Dionísio, o que existe é um corpo docente capaz. Que o Instituto Politécnico tem capacidade, neste momento, para se transformar numa universidade.
Num Mundo ideal, haveria uma união entre Vila Real e Bragança. Sabendo que o Mundo não é assim, tomei há dias conhecimento de que, já circulam petições na UTAD contra a universidade de Bragança. Parece-me uma perda de sinergias quando a união seria o lógico em qualquer país mas, estamos em Portugal.

Fala-se muito da falta de acessibilidade e da “desertificação” desta região. Estaremos condenados a desaparecer do mapa? Mesmo, estando, ainda, bem localizados frente à Europa Comunitária?

Creio que não. A abertura para Espanha e, em relação a Espanha e ao resto da Europa, permite-nos criar sinergias a nível económico, permite-nos criar novos campos de atracção e de investimento. E esquecemos um bocado Portugal. Eu acho que temos estado virados demasiado a Lisboa. Se nos virarmos para o outro lado, decerto, que entraremos muito mais depressa na Europa do que se estivermos à espera das benesses do Governo de Lisboa. E creio que será por aí e, já existem alguns acordos, nomeadamente, com a Fundação Afonso Henriques, e outros, com a Plataforma de Zamora, que nos permitirão avançar por aí.
Creio que seria de apostar nessa abertura. E, repito, aquilo que disse no princípio: trazer mais gente para aqui. Nós sem gente não conseguimos sobreviver e, numa altura, eu lembro-me que, … só a Austrália, neste momento, tem 20 milhões de pessoas. Há vinte anos nem dez milhões éramos. A Austrália continua com uma vitalidade, com uma taxa de crescimento interno de 4,7 há três anos seguidos. Tivemos as nossas crises mas, o nosso crescimento foi só devido ao influxo anual de cerca de cem mil pessoas, até há cerca de três ou quatro anos atrás, entravam cem mil pessoas por ano. Essas pessoas eram o dínamo, eram o motor da economia. E é isso que temos que fazer em Trás-os-Montes para que as casas não caiam, para que a saúde não se deteriore, mais, para que haja estradas, para que haja médicos, para que haja professores.

O que se poderá fazer para que o futuro desta região seja mais risonho?

As pessoas acreditarem. As pessoas não sabem a qualidade de vida que aqui têm, não sabem o que é bom viver aqui. E só quem viveu em tantas outras cidades, é que pode perceber quando eu digo que esta é a minha segunda Austrália. Eu nunca gostei de viver em sítio nenhum, a não ser em Sydney e em Bragança.

Agora, para terminar, que personalidade ou personalidades o marcaram ao longo da sua vida?

Xanana Gusmão, de longe.  

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