sexta-feira, 17 de junho de 2016

Outros tempos

Ainda ontem, filha, como não conseguia dormir, tu sabes que eu durmo mal, pus-me a recordar a minha infância.
Quando, insistentemente, me perguntas pelos meus tempos de menina e moça, com essa tua saudável e inteligente curiosidade, confesso que tenho algum pejo em falar-te deles por terem sido tão felizes e, ao mesmo tempo, tão maus, tão difíceis.
Nem sei se acreditarás no que, agora, decidi contar-te. Pareces estar preparada para conhecer outro mundo que não o teu.
Como sabes, nasci em 1903, numa pequena aldeia transmontana. Franzina, loura e de olhos azuis, diziam que era um bebé bonito. Não te sei dizer se era verdade. Não há fotografia que o comprove. Sei que era a mais nova dos meus irmãos, a oitava filha do casal formado pelo senhor António e pela senhora Conceição, agricultores com algumas posses e muito trabalho.
Comecei a andar cedo. Mais uma preocupação para a minha mãe que não tinha mãos a medir atrás de mim, não fosse eu cair para uma das lojas dos animais. Sempre fui muito traquina e irrequieta e cedo comecei a medir as situações perigosas. Não tinha grandes medos e, por vezes, era temerária.   
Quando comecei a gozar de alguma independência, apenas me importava o suceder dos dias e noites, as brincadeiras, as tropelias próprias de uma menina nascida naqueles tempos,  Não posso dizer que fui infeliz. Nunca. Fui muito afortunada e acarinhada pelos meus pais, irmãos, avós e restante família.
Era livre como um pássaro que bebe água em todas as ribeiras e depenica todas as cerejas que consegue alcançar.
A vida era muito simples. Os meus pais e irmãos tinham muito trabalho para dar sustento à nossa grande família. Todos tinham tarefas a desempenhar e cada um cumpria a sua da melhor forma possível.  
Como a maioria do povo português de então, nunca fui à escola.
"Mas avó! A senhora sabe ler e escrever!"
"A necessidade obrigou-me a aprender, filha... Mas esse é assunto para mais tarde."
"O trabalho do menino é pouco, mas quem o despreza é louco." Este ditado, filha, reflete o que se passava no meu tempo e cumpriu-se comigo e com todas as crianças. Todos nós executávamos pequenas tarefas que se iam complicando à medida que crescíamos.
A minha vida foi uma vida de trabalho. Enquanto menina, vivi a ilusão da natureza e da simplicidade da vida. As estações sucediam-se sem que eu tivesse nenhuma influência nesse facto.
Fui pastora. Corri montes e vales com um grande rebanho de cabras que nos proporcionavam, para além da carne, do leite e dos queijos que a minha mãe e as minhas irmãs faziam, também a venda dos cabritos que permitiam amealhar algum dinheiro em tempos tão escassos.
Com 11 anos, depois de passar pelo assassinato do rei e do príncipe herdeiro e, consequente fim da monarquia, pela implantação da república, pela quase guerra civil... despoletou-se a I Grande Guerra. Vi rapazes da minha aldeia serem recrutados para a guerra. Alguns não voltaram...
A vida, para todos nós, tornou-se ainda mais difícil. A fome grassava em muitos lares. As doenças ceifavam muitas vidas. As epidemias não davam tréguas...
Custa-me, filha, falar sobre este assunto que, mais do que tudo, me envergonha, embora eu não tivesse culpa da sua existência. Não sei se alguma vez viste um piolho, uma pulga, um percevejo... Naquele tempo, todos os conhecíamos, mesmo que as nossas roupas fossem fervidas no lato, ao lume. A limpeza, na casa dos meus pais era muito importante. A palha dos colchões era mudada com frequência... A pobreza tem dessas coisas. É difícil lutar contra tantas dificuldades. A miséria atrai miséria e sofrimento. Só muitos anos depois surgiu um remédio eficaz que, felizmente, nos livrou dessa monstruosa epidemia.
Amanhã, minha querida neta, se me sentir com forças, continuo a minha longa história. Espero que não te canses de me ouvir. Tenho muito para te contar.
"Agora, ajuda-me a deitar e traz-me um chazinho de tília à cama, sim?"

Maria Cepeda       

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