Em 1972 o fim da Primavera veio áspero, especialmente para um rapaz que passara uma década nos húmidos remansos dos trópicos, seguida de ano e meio na temperada Lisboa.
No Janeiro anterior, com céus nocturnos de cobalto, que fascinam o mais distraídos dos viventes, eu viera a aconchegar-me às raízes depois de uns dias aventurosos em fuga de desígnios paternos que me impunham voltar a vida ordenada e proveitosa, que descuidara em nome de um mundo que havia para mudar.
No país dormente, quando noutros horizontes se celebravam amanhãs de felicidade prometida, a cidade de Bragança aparecia, aos meus olhos atrevidos, como uma mater dolorosa da resignação sem futuro.
Convicto das capacidades renovadoras da interpelação, da provocação, dos abanões às consciências, em pleno Maio, fui ao jornal diocesano propor a publicação de uma página que queria de intervenção, voltada, dizia eu, para uma juventude que notoriamente precisava de ânimo.
O então padre Manuel dos Anjos Sampaio, director do semanário, acolheu com entusiasmo a iniciativa e a página, designada “Participação”, começou a ser publicada em Junho.
O tom não era o habitual. Os textos eram claros nas intenções, naturalmente evitando os excessos que fariam cair o traço azul sobre as provas tipográficas levadas, ao longo da semana, ao quartel da GNR, onde um tenente se encarregava de decidir o que poderia ser escrito.
Chegavam reacções de leitores por carta, outros de viva voz, de jovens, mas não só, umas entusiásticas, outras desconfiadas. Um belo dia, o director entregou-me uma carta que aplaudia a novidade da página no Mensageiro de Bragança e se oferecia para colaborar. Vinha assinada por Marcolino Cepeda, um jovem de dezassete anos como eu.
Procurei informar-me sobre quem conheceria o rapaz e encontrámo-nos alguns dias depois no café Chave de Ouro, iniciando-se uma amizade que nos trouxe até aos cinquenta e seis anos que agora contamos, sempre marcada por preocupações comuns com a nossa terra e esforçados trabalhos para participar na construção de um futuro que ousámos proclamar merecíamos.
No Outono seguinte já as páginas do jornal se enchiam de múltiplos trabalhos jornalísticos dos redactores Marcolino Cepeda e Teófilo Vaz, em convívio produtivo com criações poéticas de Carlos Pires e Ernesto Rodrigues, reflexões profundas de Ernesto Rodrigues e análises sarcásticas de Desidério Martins, um grupo que vislumbrou, entusiástico, a mudança que se aproximava num Abril ali bem perto.
Lançámos na cidade discussões importantes, promovendo mesas redondas que foram publicadas no jornal. Reunimos, por exemplo, os livreiros então estabelecidos na cidade, para com eles encontrarmos forma de realizar uma feira do livro. Não lográmos sucesso, mas dez anos depois, com o Marcolino a presidir ao clube de Bragança, a cidade teve mesmo a sua feira do livro, levada a cabo pela direcção daquela associação cultural. Infelizmente, a iniciativa foi interrompida para só ser retomada pelo município no início da década de noventa.
O Marcolino Cepeda manteve a sua participação no jornal, enquanto eu voltei a Angola durante cerca de um ano. Passou a utilizar o pseudónimo José Valverde, porque o prelado de então, D. Manuel de Jesus Pereira, determinara que os rapazes da página deveriam ver a sua colaboração dispensada. Até ao 25 de Abril de 1974, o jornal manteve, apesar de tudo, uma dinâmica de renovação.
Com a revolução, os entusiasmos redobraram-se, eu voltei em Maio e o empenhamento do grupo de jovens na mudança, voltou a ter reflexos na publicação, até que, mais uma vez, pelo fim do ano, sua excelência reverendíssima ordenou a cessação de qualquer actividade da rapaziada no Mensageiro de Bragança.
O padre Manuel Sampaio chamou-nos, pesaroso, e todos gizámos a construção de uma alternativa jornalística. Assim veio a nascer o “ènié” - uma voz do nordeste português, dirigido pelo Dr. Eduardo Carvalho e com uma redacção constituída por Marcolino Cepeda, Teófilo Vaz, Carlos Pires e Ernesto Rodrigues. Publicou-se semanalmente entre Abril e o fim de Novembro de 1975 e constituiu um instrumento de debate, de análise, de levantamento dos grandes problemas e desígnios do distrito de Bragança.
O Verão quente trouxe quase a selva ao país e, naturalmente, Bragança não ficou imune. Depois de alguns episódios pouco edificantes, em que os redactores do “ènié” foram ameaçados e o Carlos Pires foi agredido violentamente, necessitando de ser suturado com doze pontos na cabeça, o jornal suspendeu a sua publicação.
Enquanto o Carlos Pires foi par Lisboa para o semanário Tempo, o Ernesto Rodrigues e eu próprio fizemos o percurso na faculdade de letras da capital, o Marcolino, já professor do primeiro ciclo, manteve a actividade cívica em Bragança, integrando-se na direcção do clube e dinamizando o grupo de teatro “Sequência”, que criara ainda enquanto estudante.
Em 1982, candidato a presidente da direcção do clube, convidou-me para integrar a sua equipa e, para além da feira do livro, o clube promoveu debates sobre o desenvolvimento regional, realizou os primeiros debates entre candidatos à Câmara de Bragança, criou e manteve um cineclube com projecções quinzenais em permanência, de filmes de qualidade, durante mais de dois anos e recuperou para a praça cívica a revista “Amigos de Bragança” que era mantida com esforço e abnegação pelo Dr. Eduardo Carvalho.
Foi mais um projecto de intervenção séria liderado pelo Marcolino que deu frutos.
Tenho estado a falar-vos de um cidadão de corpo inteiro, com alma de aventureiro, o seu quê de D. Quixote, no que de mais nobre a figura representa que, quando a vida lhe limitou, com dureza, as capacidades físicas, manteve a serenidade e acreditou ser possível continuar a dar o seu contributo inestimável à comunidade, ao nordeste transmontano e ao mundo.
Isso foi há quase um quarto de século, consumada uma paixão que se transformou numa relação de amor para sempre do Marcolino com a Maria de Jesus, a Mara, que tem constituído o esteio de todas as possibilidades de fazer chegar ao público as reflexões, os entusiasmos, a capacidade de continuar a lutar pelas boas causas do Marcolino.
Aliás, até parece que o cidadão exemplar pôde agora concentrar-se ainda mais na sua propensão interventiva na sociedade.
De facto, foi desde então que publicou obra de monta na criação dramática, na poesia e no lançamento de desafios à sociedade, aos responsáveis políticos e à cultura bragançana.
Pelo fim da década de 80 surgiram e foram-se consolidando as rádios locais. Antes, o emissor regional da RDP já acolhera um programa de intervenção cultural, desenhado por nós os dois, no âmbito da direcção do clube de Bragança. Mas, com o florescer das novas rádios, o Marcolino já não podia fazer ouvir a sua própria voz.
Manteve-se, no entanto, sempre atento ao que se ia fazendo, nomeadamente a crónicas minhas na RDP e na Brigantia, analisando criticamente e celebrando as virtudes.
É neste contexto que lhe remói as entranhas a vontade de dar um contributo, utilizando este meio de comunicação. Depois de uma proposta recusada, a RBA abriu-lhe a antena para realizar o projecto “Nordeste com Carinho”, um programa de grande entrevista, em que se desenvolveram conversas com personalidades do distrito, a viver cá, ou espalhadas pelas sete partidas do mundo, sempre a propósito da compreensão do papel desta comunidade na região e na vida.
Foram oitenta e duas entrevistas, organizadas pela Mara e realizadas pelo Rui Mouta, curiosamente um dos meus alunos na Escola de Formação Profissional de Bragança, hoje distinto animador cultural e radialista de sucesso, que se empenhou em integrar a essência do projecto do Marcolino Cepeda.
Desde logo foi intenção dele publicar as oitenta e duas entrevistas, que foram transcritas e postas a salvo. Naturalmente, seria um livro de peso, também do ponto de vista financeiro. Mas, como sempre, a capacidade do Marcolino para identificar as possibilidades de intervenção na vida social, levaram-no à concretização do projecto que hoje se apresenta. Os avanços das tecnologias da informação têm, de facto, vindo a rasgar novos horizontes, a par, é verdade, de muito lixo informático que ainda não assentou.
Neste caso, a ideia é publicar as 82 entrevistas, nas próximas oitenta e duas semanas, ficando para memória futura o contributo de todos os transmontanos convidados que deixaram reflexões relevantes, afinal mais uma forma de concitar à participação como já acontecera há quase quatro décadas com o lançamento de espaços de reflexão prospectiva no Mensageiro de Bragança.
Enquanto decorriam as entrevistas do programa “Nordeste com Carinho” na RBA, a Brigantia transmitiu semanalmente o meu programa “Falar de Nós”, também ele de grande entrevista, algumas vezes mais voltado para os protagonistas da política, mas também garantindo o contacto com personalidades da região que vão desenvolvendo trabalho de mérito noutras paragens. Parecia que concorríamos um com o outro. Na verdade, continuávamos, como sempre, a partilhar um combate com os mesmos objectivos.
Convido-vos, por isso, a estar atentos nos próximos tempos ao blogue “Nordeste com Carinho” e não quero terminar sem realçar mais um achado que a argúcia do Marcolino consuma nesta cerimónia. De facto, nada melhor do que conjugar a apresentação de um blogue, expressão da modernidade comunicacional com as instalações de um notável museu bragançano, garantindo as condições vitais para que uma expressão do presente, à procura de um futuro com raízes se escore no legado milenar de gerações infindas que construíram esta nossa forma de estar no mundo.
À direcção do museu Abade de Baçal, na pessoa da sua directora e minha estimada colega de profissão, Dr.ª Ana Afonso, deixo o meu agradecimento e louvor por ter acolhido esta iniciativa.
Muito interessante toda esta história, tanto mais que se trata de uma memória de um tempo ainda recente - mas tão distante nas suas diferentes realidades! Um destes dias irei desempoeirar os éniés e os mensageiros contemporâneos e reviver toda essa perspectiva, aqui e agora dada à levedura e trazida ao de cima... Parabéns por este blogue! Um abraço!
ResponderEliminarMeus Caros
ResponderEliminarSó agora entro nesta página. Saúdo a evocação do que fomos, no antigamente na vida, tão bem documentada pelo Teófilo. Creio que transformámos um pouco a vida mental bragançana, há 40 anos. Muitos episódios ainda nos divertem, hoje, quando reunimos em casa do Marcolino e Mara. É uma história a fazer, que fui registando em diário.
Um grande abraço do
Ernesto R.
Meus Caros
ResponderEliminarSó agora entro nesta página. Saúdo a evocação do que fomos, no antigamente na vida, tão bem documentada pelo Teófilo. Creio que transformámos um pouco a vida mental bragançana, há 40 anos. Muitos episódios ainda nos divertem, hoje, quando reunimos em casa do Marcolino e Mara. É uma história a fazer, que fui registando em diário.
Um grande abraço do
Ernesto R.