quarta-feira, 3 de agosto de 2016

Outros Tempos - 4º capítulo



Voltei à cozinha e pousei a caneca no louceiro. Sabia que ela não conseguiria dormir se eu não saísse do quarto. Era verão e estava muito calor. Em pensamento, apliquei a máxima transmontana "nove meses de inverno e três meses de inferno". É assim em Trás-os-Montes. Sentei-me no banco corrido que ali estava há muitos anos

"O funeral foi rápido. O tio padre tratou de tudo. Apenas a família esteve presente. Os outros tinham medo de apanhar a doença. Todas as famílias tinham perdido alguém. Outras tinham sido dizimadas completamente. Esta guerra, posso chamá-la assim, foi terrível. 
A minha mãe… a minha mãe era um fantasma de si mesma. Desmaiou mal pôs os pés em casa. Corremos todos para ela e apercebi-me de que ardia em febre. Os meus irmãos colocaram-na na cama.
“Filha. Nem te sei dizer o que fiz. O meu pai mandou buscar o médico à Vila. O pobre estava tão cheio de trabalho que demorou a chegar.
A minha irmã Maria preparou uma cama para o doutor, pois já era tarde.
O diagnóstico foi terrível. Era a gripe. Ouvimos do médico, aquilo que já sabíamos todos.
No entanto, a morte da minha irmã, mais do que nos acabrunhar, obrigou-nos a acreditar que podíamos salvar a nossa mãe.
Fui assumindo o controlo da situação. Assim tinha de ser. Sabia-o. Comecei a dar ordens a toda a gente. Ninguém me dizia que não. Era uma boa maneira de esquecer a tristeza que sentíamos.
Pedi ao meu pai que fosse dormir para o meu quarto. Eu ia ficar com a mãe. Ele assentiu como se fosse sonâmbulo.
Pedi ao meu irmão Manuel que fosse à adega e me trouxesse uma garrafa de aguardente e uma de vinagre. Esfreguei as mãos com aguardente e despejei numa malga um pouco de vinagre que pus na mesinha de cabeceira de castanho, feita pelo meu pai.
Abri a janela do quarto e deixei entrar a aragem fresca da noite. Fui à cozinha buscar um cântaro com água fresca. Deitei alguma na bacia de esmalte que ali estava e fui-lhe aplicando panos de linho molhados na testa. Não me perguntes, filha, como foi que aprendi a fazer aquilo. Ainda hoje não sei.
Quando vi que a febre tinha baixado um pouco, recostei-me, cansada, na cadeira que estava junto à cama onde deitei a cabeça e adormeci.
Acordei com um pequeno gemido. Levantei-me de um salto e vi que a minha mãe ainda dormia. Pus-lhe a mão na testa e senti que a febre já não estava tão alta. Olhei pela janela aberta e, apesar de estarmos no fim do mês de setembro, mantinha-se o calor. O dia começava a nascer. Ouvi o chiar das rodas de um carro de bois.
A casa começava a despertar e já a minha irmã Maria bulia na cozinha a preparar o matabicho para o Doutor que se preparava para ir ver outros doentes. Infelizmente, pouco podia fazer, dizia.
“Não temos remédios contra este flagelo que está a dizimar a nossa população. Tantas desgraças! Tantas desgraças, meu Deus.” – Lastimava-se.
Depois de matabichar, o bom do médico foi embora montado na nossa égua. Com ele, o meu irmão João, cavalgava a Mulata, mula valente e caprichosa.
Toda a casa estava acordada. A tristeza entranhava-se nos nossos corações.
Antes de comer, preparei umas sopas de alho e azeite para a minha mãe. Acordei-a e fiz com que comesse o máximo possível que foi muito pouco. Fiz-lhe um chá de hortelã que ela bebeu devagar, com esforço.
Sempre com muito cuidado, lavei-a, mudei-lhe a camisa e deixei-a o mais confortável possível. A febre recomeçou a subir e eu voltei a esfregar as mãos com aguardente e renovei o vinagre da malga que, por ser tão forte, empestava o quarto com o seu cheiro. Fui buscar água fresca e mudei, vezes sem conta, o pano de linho com que lhe refrescava a testa.
Não descansei até que senti a febre descer. Minha mãe adormeceu e fui à cozinha comer sopas de alho e azeite e fiz que a minha irmã as comesse.
Voltei ao quarto. A mãe estava tranquila. Respirava com dificuldade e ouvia-se o chiar dos pulmões.
Todos, aos poucos, depois de realizarem as suas primeiras tarefas, foram matabichando. Um golinho de aguardente era, nas famílias transmontanas de então, habitual na primeira refeição do dia. Era normal naqueles tempos de pouca fartura, comer caldo logo de manhã e todos comeram as sopas que eu tinha feito e uma mão cheia de figos secos, que esse ano houvera muitos.
O Francisco apareceu a esfregar os olhos, ensonado, descalço, a perguntar pela mãe.
Ninguém disse nada. Todos lutaram contra o nó que se formava na garganta.
José pega-o ao colo e diz-lhe que ela não está em casa. O menino aninhasse nos seus braços e uma pequena lágrima escorre-lhe pela cara.
- Vamos comer que tu vais comigo trabalhar, filho! Vais ajudar o pai, queres?
Meneou com a cabeça em sinal afirmativo com um brilhozinho no olhar. O pai sentou-o na tripeça e foi buscar uma malga de sopas. O pequeno gostava. Comeu bem.
Dirigiram-se os dois ao quarto e regressaram poucos minutos depois preparados para saírem. Juntaram-se-lhes os meus irmãos      
Voltei ao lar onde a minha irmã se atarefava para fazer o almoço. Ajudei-a a descascar as batatas e as cebolas que íamos comer. A carne de porco já cozia no pote ao lume.
O meu pai, pálido e cansado, sobe com esforço as escadas vindo da rua. Tinha, mesmo assim, uma figura imponente e austera de que se desprendia uma grande bondade.
Corri a abraçá-lo. Senti o seu sorriso triste nas minhas costas e o seu abraço foi diferente de todos os outros que tinha recebido. Parecia um marinheiro agarrado à sua tábua de salvação.
“Deixa-me garota! Que rapariga esta que nunca mais cresce!” A sua voz parecia um afago, um carinho triste. Parecia ter envelhecido vinte anos num dia. Arrastou-se até ao escano e sentou-se pesadamente.
Maria largou o que estava a fazer e sentou-se ao seu lado sem dizer palavra.
Sentada na tripeça, olhava para eles. Vi como era bonita Maria. Mantinha os olhos que sabia ser de um azul resplandecente, baixos. Algumas lágrimas insistiam em correr pela sua face alva de neve. O meu pai pega-lhe na mão e aperta-a.
“Pai! Estou tão triste!” Murmurou num fio de voz.
“Eu sei filha. Eu sei.” Quase sem mexer os lábios, disse o meu pai.
“Ó minha irmã, meu pai, que se queima o jantar!” Gritei eu a fingir-me atrapalhada.
Quebrou-se o enleio de sofrimento que ali se gerara.
Do quarto, um murmúrio.
“Mãezinha?” Corri para lá.
“Tenho sede filha. Dá-me tantinha água.”
Fui à cozinha como se voasse e voltei com um púcaro de esmalte cheio de água fresca da bilha de barro.
Ajudei-a a erguer-se e amparei as suas costas com duas almofadas. Só então lhe cheguei a água aos lábios que apenas molhou.
“Dói-me tanto a cabeça.” Balbuciou num esgar de dor.
Amparei-a para que se deitasse. Molhei o pano de linho na água fresca do púcaro e coloquei-lho na testa.
Fui à cozinha e vasculhei as caixas do chá. Fiz um chá de hortelã. Fui à cortinha colher algumas folhas de hortelã fresca.
Amornei o chá e dei-lho a beber adoçado com mel. Queixava-se que lhe doía a goela. Fui insistindo até que o acabou. Tossiu muito. Limpei-lhe o nariz com os seus lencinhos perfumados com alfazema. Deitei-a e fui buscar as folhas de hortelã que tinha esmagado ligeiramente. Pus-lhas na testa e no peito. Adormeceu.
Aconcheguei-lhe o cobertor. Tremia. Tinha febre novamente. Coloquei o pano húmido e fresco por cima das folhas na testa e chamei pelo meu irmão Domingos.
“Sim, Alzira? O que precisas?”
“Mata a minha garniza amarela. Preciso fazer uma canja prá senhora nossa mãe.”
Fez que sim com a cabeça e foi à capoeira. Domingos era de poucas falas. A angústia que trazia no olhar dizia tudo o que a sua alma sentia. Éramos próximos em idade e entendíamo-nos muito bem.
Olhei para a minha mãe e vi que a sua respiração era mais fácil. Suspirei.
Maria atarefava-se à volta dos potes. O meu pai dormitava. Volta e meia deixava escapar um gemido.
Na rua reinava um silêncio sepulcral, como tu dirias, minha neta.
Aos poucos, os meus irmãos foram voltando das suas tarefas. Ouvi o relinchar da égua e o zurro da Mulata. O João chegou, pensei.
O Castanho soltou o seu urro habitual acompanhado pelos chocalhos das vacas.
“Hei touro, hei!” Gritou o Abel.
Senti abrir as portas das lojas e os animais a entrarem.
Domingos entra com a galinha depenada e limpa. Sem dizer nada, vai buscar um pote com água e põe-no ao lume.
“Elvira, já está. Vem fazer a canja.”
Ainda sem dizer nada, vai buscar mais lenha e ajuda Maria a escoar o pote das batatas.
Deito uma cebola picada ao pote e dois bons dentes de alho. Espero que ferva e deito a galinha partida aos pedaços e um pouco de sal.
Parecia que a vida estava a entrar no seu ritmo normal.
Todos sabíamos que não era verdade.

“Avó, não gosto de a ver tão triste. Se vai ficar assim, não quero que me conte mais nada da sua vida.”
“Não minha neta, não te preocupes. Sou mesmo assim. Emociono-me com estas coisas. Olha, já sou velha! Vou-me deitar.”
“Já levo o seu chá de hortelã e um pedacinho do bolo de chocolate que fiz hoje. Vai ver que bom é, avó.”

Maria Cepeda

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