Com 64 anos, o colaborador do Jornal Nordeste, José Mário
Leite, lançou o seu quinto livro, ‘A Formosa Pelicana’. É gestor de ciência há
mais de 20 anos, mas admite que a escrita é outro dos seus amores. Natural de
Torre de Moncorvo, quis saber mais sobre Violante Gomes, a Pelicana, mãe de
António de Portugal, Prior do Crato, que passou por Torre de Moncorvo
Como surgiu este livro?
Este livro surgiu em Torre de Moncorvo, de conversas com
pessoas amigas, mas foi um livro que se me impôs. Ao contrário dos outros, que
eu procurava o tema e pesquisava. Em Moncorvo, quando eu fui presidente da
Assembleia Municipal, uma historiadora e professora abordou-me por outras
razões e, em determinada altura, mostrou- -me preocupação com a casa da
Violante Gomes, a Pelicana, mas eu desconhecia esta personagem de Torre de
Moncorvo. Mais tarde, uma escritora de Moncorvo, Júlia Guarda Ribeiro,
interrogava- -se ‘porque é que não há um romance sobre a Pelicana e dos seus
amores com D. Luís de Portugal?’. E isto começou realmente a mexer comigo.
Aconteceu que um dia estava no Chiado e fui até à FNAC e caiu-me na mão um
livrinho de Manuel Alegre, que se chama ‘Auto de António’, e eu devorei aquele
livro, sentei-me e li-o todo, mas foi de tal forma a empatia que tive de o
trazer comigo. Era um livro sobre D. António, o grande herói que foi. Mas se o
meu livro é sobre D. António, porque é que se chama ‘A Formosa Pelicana’? Por
duas razões, uma delas porque a capa é lindíssima, é um quadro feito pela minha
mulher e não lhe podia colocar outro título que não fosse este. Depois porque
Violante Gomes era conhecida como a formosa Pelicana, era a mulher mais bonita
do reino, no séc. XVI, e também porque, quando eu andei a fazer pesquisas é
muito fácil encontrar dados, comentários, opiniões sobre homens, mas das
mulheres não é tanto assim. Fiquei a pensar que para uma mulher ser falada no
séc. XVI é porque tinha que ter muito valor, tinha que ter algo que a fazia sobressair.
Portanto é de certa forma uma homenagem às mulheres bonitas, belas, formosas do
Nordeste Transmontano.
É então um romance histórico?
É de certa forma um romance histórico. Eu não sou
historiador, mas pesquisei muito, os pilares deste romance são factos
históricos, depois construí em cima deles um romance. Este romance teve duas
linhas, uma delas quando havia várias opiniões, de vários historiadores,
obviamente que eu captava para mim aquela que mais me convinha para o romance,
sem qualquer fundamento histórico ou científico, apenas me interessava aquilo
que dava seguimento ao meu romance. Por outro lado, na ausência de dados e
qualquer referência, fazia eu a própria história.
O que foi mais desafiante?
A construção do romance em toda esta história ou foi
realmente esse trabalho de pesquisa? O trabalho de pesquisa foi fascinante, mas
o trabalho de escrever é para mim uma catarse, dá-me muito prazer escrever. Uso
os meus tempos livres quase todos para escrever. Há tanta coisa para dizer
sobre o Nordeste Transmontano, sobre a minha terra, sobre a Vilariça, sobre
Moncorvo e sobretudo sobre os concelhos raianos. Eu acho que os concelhos
raianos, Bragança, Miranda do Douro, Vimioso, Freixo de Espada à Cinta e Torre
de Moncorvo deviam erguer uma estátua a um judeu Isaac Ben Judah Abravanel. D.
João II obrigou-o a ir para Espanha, onde foi muito próximo dos reis católicos.
Era um homem cultíssimo, poderoso, um estadista, mas era também um teólogo,
estudioso da Torá e decreto de Alhambra, que expulsou os judeus de Espanha,
sendo que um dos destinos era Portugal. O desenvolvimento do Nordeste deve-se
muito aos judeus que aqui ficaram e que ficaram por causa do Abravanel, não de
uma forma directa, mas indirecta.
E com toda esta pesquisa ficou a saber mais sobre a sua
terra…
É verdade, passei a saber muito mais sobre a minha terra,
mas o meu livro também me permitiu enunciar algumas teses. Não sendo
historiador, são teses minhas e que podem interessar de alguma forma aos
leitores.
Que teses são essas? Uma delas é que o D. António era judeu
e que foi isso que o condenou. Não foi o facto de ser bastardo. O que o
condenou foi ele ser judeu, foi o seu sangue judeu, numa altura em que a
inquisição se tinha instalado em Portugal. De qualquer forma há aqui uma curiosidade
muito interessante. Este livro segue de perto a Bíblia e alguns fenómenos
bíblicos transportados para o séc. XVI. Tem a ver também com a minha formação,
porque eu andei no seminário durante alguns anos em Vinhais e em Bragança. E há
na religião cristã um momento singular, que é o momento em que Jesus Cristo
expira no gólgota. Nessa altura ele tem uma placa por cima da cruz que diz
‘Jesus Nazareno Rei dos Judeus’. Eu diria que o rei dos judeus foi o primeiro
cristão. Portugal, em 1580, teve como rei um judeu. E é neste balanço que se
passa o meu romance. Eu sinto muito as dores da mãe de D. António, que era
judia e que de certa forma se assemelha às dores da Nossa Senhora ajoelhada na
cruz. Ela sempre foi judia, imagino que terá morrido judia. O filho não sei se
morreu cristão, ou se morreu ainda judeu, mas o momento exacto é esse e que eu
também traduzo aqui no meu livro, sobretudo num gesto de D. António quando
abandona Portugal nas margens da Vilariça. Outra tese tem a ver como casamento
da Pelicana com D. Luís de Portugal. Há quem diga que aconteceu, há quem diga
que não. É curioso que nos livros que li lá fora referem-se sempre a D. António
como filho legítimo por acto secreto, ou seja, o casamento de D. António e da
Violante Gomes aconteceu efectivamente e foi secreto. Há quem o coloque em
Évora, há quem o coloque em Lisboa, mas não havendo registo nenhum eu coloco
onde eu quero e para mim aconteceu na Vilariça. Há ainda outra tese que eu
gostaria de deixar em aberto. A igreja de Torre de Moncorvo, que foi há época o
maior santuário religioso que foi construído no Nordeste, foge ao que eram as
características arquitectónicas da altura, em que as igrejas tinham a porta
principal virada para poente e a lateral virada para sul. A de Moncorvo não
tem. Nunca ninguém me deu uma explicação, mas eu tenho uma explicação no meu
livro e acho que as pessoas vão gostar. Quando surgiu o gosto pela escrita? Eu
fui colega do grande Ernesto Rodrigues no seminário em Vinhais e logo no
primeiro ano que nós fomos para lá eu e ele ganhámos um prémio, eu em poesia e
ele em prosa, e isso criou em mim uma apetência para escrever. Convivi sempre
com escritores, com jornalistas, fui amigo do saudoso Teófilo, quando estava
aqui em Bragança, do Fernando Calado, que também andou comigo no seminário, e
tinha um anseio de escrever, mas também muito receio. Curiosamente, na altura
em que o Teófilo, o Ernesto e outros formavam o chamado grupo ‘Chave D’ouro’,
ao qual eu me atrelava, aventurei-me a escrever o ‘Cravo na Boca’, que foi o meu
primeiro livro.
E é uma paixão?
É já uma paixão, sem dúvida. Uma paixão idêntica à que tenho
pela minha terra. É curioso que este livro também tem um pouco do Teófilo.
Quando eu publiquei o meu primeiro romance, ‘A morte de Germano Trancoso’, eu
recordo-me que o Teófilo esteve na apresentação aqui em Bragança e queixou- -se
que os escritores transmontanos criam muito sobre a sua terra e ficavam por
aqui, não iam mais além, os temas não eram nacionais. Embora na altura
contestasse, porque é normal quando se ouve uma crítica ser essa a primeira
reacção, mas isso ficou- -me a moer cá dentro. Pensei que tinha que arranjar um
tema nacional que também tenha a ver com o Nordeste, porque eu só sei escrever
sobre o Nordeste, só sei escrever sobre aquilo que conheço, portanto, de certa
forma, isto também é uma homenagem ao Teófilo.
Jornalista: Ângela Pais
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