domingo, 30 de junho de 2024

...24, 25, 26... de Abril (Publicado, na coletânea "Palavras de Liberdade 50 Anos de Abril)


Já lá vão cinquenta anos desde a Revolução dos Cravos. Parece que foi ontem o despertar para este novo país, com as suas gentes, os seus usos e costumes, as suas crenças e descrenças… A Liberdade e a Esperança.

1971, tinha eu dezasseis anos, aluno da Escola Industrial e Comercial, descobri o boletim “Presença”, de que fui leitor e colaborador assíduo e fiel durante os três anos seguintes. Esse foi o meu despertar.

2 de abril de 1972. Fazia parte do grupo de teatro da Escola Industrial e Comercial de Bragança. Nesse dia, apresentávamos a peça “Mar” de Miguel Torga. A encenação coube ao professor Fernando Pires e o cenário esteve a cargo do Dr. António Ferra. Foi um belo espetáculo, a sala estava cheia e no final, como tudo tinha corrido de feição, fomos todos, menos os professores, comemorar para o circuito turístico. Ríamos, cantávamos e falávamos alto. Estávamos felizes. De repente, apareceu a Polícia que nos levou para a esquadra. Alguém avisou o professor Fernando Pires que, rapidamente foi saber de nós e explicou a situação. Fomos alertados: “Se voltar a acontecer, as coisas serão diferentes.” Depois disso mandaram-nos para casa. Nesse dia juntei mais um tijolo à minha, ainda débil, consciência política.

            1973, eu, o Teófilo, o Manuel de Jesus e o Lino, jovens de dezassete anos, decidimos dar largas ao nosso descontentamento contra Salazar na avenida do Sabor. O Manuel, com um grãozinho na asa, assim como todos nós, deitou-se no muro e adormeceu tão profundamente que nada o poderia acordar. Lá ficou até ao raiar do dia. Foi a sua sorte. Nós continuámos em grande algazarra. Apareceu a polícia que nos levou para a esquadra. Julgo que nem repararam no Manuel, placidamente adormecido. Lá chegados, fomos sujeitos a interrogatório, assinámos o depoimento e fomos avisados de que, da próxima vez, seríamos presos. Deste episódio resultou o regresso do Teófilo para Angola onde se encontravam os seus pais.   

O jornal “Mensageiro de Bragança” era dirigido pelo Padre Manuel Sampaio. Da lista de colaboradores fazíamos parte, eu, Teófilo Vaz, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues e Jorge Morais, entre outros. Certo dia, fui chamado pelo diretor. Precisava de falar comigo. Havia recebido ordens do Senhor Bispo no sentido de prescindir da minha colaboração no jornal. “Este garoto não escreve nem mais uma palavra para este jornal.” Fiquei, como é natural, triste. O Padre Sampaio olhou para mim e perguntou-me: “E se escrevesses com um pseudónimo?” Perfeitamente estupefacto aceitei e passei a ser José Valverde e Bernardo Faria.

Há coisas que decididamente a memória não esquece. Costumávamos juntar-nos em casa do Zé Manuel onde falávamos de política e ouvíamos música proibida: Adriano Correia de Oliveira, Zeca Afonso, Sérgio Godinho, José Mário Branco…

Enquanto estudantes, durante o verão de 1973, eu, o Malan, o Dias, o Buiça, o Carlos, o Eurico e outros, trabalhávamos na apanha e tratamento do lúpulo. Era um trabalho árduo, feito em pleno verão, com muito calor. Resolvi agitar as águas convencendo todos os trabalhadores a fazermos greve por nos sentirmos mal pagos. Unanimemente aderiram à greve que se prolongou das oito da manhã até às vinte e duas horas. A verdade é que eu já estava muito preocupado, a pensar no que poderia acontecer se o responsável pela LUPULEX decidisse chamar a PIDE e a polícia o que, felizmente, não aconteceu. O patrão havia perdido a esperança de que a greve acabasse e, tendo prazos a cumprir, decidiu falar com os grevistas. Correu tudo bem e foram atendidas as nossas reivindicações. Foi, sem dúvida, uma grande vitória. 

Li muito. Livros absolutamente proibidos, que ainda hoje se encontram na minha biblioteca: Karl Marx, Lenine, Mao Tsé-Tung, António Sérgio e muitos outros. Alguns adquiri-os na livraria Mário Péricles, clandestinamente.   

Às leituras que fiz, acrescento as conversas que mantive com muitos amigos: Manuel Rodrigues (Calouste Gulbenkian), Manuel Gomes (professor na escola Industrial e Comercial). Também com o Victor Cordeiro mantive conversas muito interessantes sobre o que se passava no ultramar e em Portugal.

Era, ainda, em casa do Manuel Gomes, que aos sábados à noite, ouvíamos, em surdina, a Rádio Argel. Muitas vezes, rua abaixo, rua acima, ouvíamos os passos. Desligávamos o rádio e aguardávamos que se fosse embora quem por ali andasse.

Um amigo do partido comunista enviou-me para casa, o jornal “A voz do Povo”. Assustei-me. Não por mim, mas pela minha família. Tomei consciência do perigo em que os estava a colocar. Sim. Podiam prender-nos pelo simples facto de possuirmos este jornal ou outro do mesmo género. Pedi-lhe que não me enviasse mais jornais.

Um ano antes da revolução, eu e o Malan decidimos que não faríamos o teste da disciplina de Educação Moral e Religiosa, na escola do Magistério Primário, marcada pelo padre que lecionava a disciplina. Disso o avisámos e ele ficou muito irritado. Note-se que não era obrigatória e não contava para a nota final. Foi, obviamente, um ato de rebeldia. O que me fez espécie foi a atitude do professor que, depois do 25 de Abril, sempre que por ele passávamos, todo se desfazia em cumprimentos.

Estas vivências que aqui relato, todas acontecidas antes da Revolução, fizeram de mim quem sou. Sempre interveniente, sempre combativo, sempre interessado no que se passava e passa à minha volta.

Aconteceu o 25 De Abril. Vasco Lourenço, Otelo Saraiva de Carvalho, Salgueiro Maia, Melo Antunes cheios de ideais e cansados da guerra ultramarina deram “um murro” na mesa. “É agora ou nunca!” E foi, felizmente.

Durante algumas horas nada se soube. Nem rádio nem televisão noticiavam fosse o que fosse. Através da BBC de Londres, em casa do António Carneiro, soube o que se passava em Lisboa. A televisão portuguesa começou a transmitir pelas 16:00 ou 17:00 horas   

Para mim e, talvez, a maioria da população portuguesa, o 25 de Abril de 1974 foi uma explosão de alegria. Senti-me livre. Fomos manchete pelo mundo todo. A nossa revolução fora feita com cravos nos canos das espingardas, sem derramamento de sangue. Passámos de uma ditadura com quarenta e oito anos para uma democracia.

Acordar para a realidade dos tempos conturbados pós Revolução, foi o reaprender a caminhar. Nem tudo foi pacífico no arrumar da casa. Ainda hoje não é.

No tempo da euforia, realizou-se em Bragança, uma reunião no antigo Quartel dos Bombeiros. Fui um dos convidados como ilustre personalidade de Bragança, ao lado do Dr. Eduardo Carvalho e do Padre Manuel Pires. Senti-me orgulhoso pelo reconhecimento público por toda a atividade que, bem ou mal, desenvolvi em prol da liberdade. Desiludi-me pouco tempo depois quando passámos do “Nós” para o “Eu”. É preciso pensar no todo e agir em conformidade. Precisamos de acreditar mais em nós.

Portugal precisa de pessoas preparadas, com ideias, com uma visão de futuro que englobe todos os quadrantes do desenvolvimento, da cultura, da saúde, do ambiente, dos oceanos, da agricultura, etc. Devemos valorizar as nossas referências. Somos um país riquíssimo em bons exemplos.   

Os partidos políticos devem ser “reformulados, recriados, modificados” para que possam dar resposta aos problemas cada vez mais diversos e singulares que surgem pelos diferentes países que compõem o nosso mundo. Infante Dom Henrique (n. Porto, 4 de março de 1394 – Sagres, 13 de novembro de 1460), foi um infante português e a mais importante figura do início da era das descobertas. Almeida Garrett (n. Porto 1799, f. Lisboa 1854), grande impulsionador do teatro em Portugal, alertou-nos para a cultura. Mário Soares (n. Lisboa 1924, f. Lisboa 2017) deixou, inequivocamente, a sua marca no partido que ajudou a fundar. Como ele, também Sá Carneiro (n. Porto 1934, f. Camarate 1980) mostrou que as suas intenções visavam sempre o bem comum.

Independentemente da incompletude da Revolução de Abril está nas nossas mãos completá-la. Citando Pedro Soares dos Santos, CEO da Empresa Jerónimo Martins: “Portugal podia ser a Califórnia da Europa, mas está a caminho de se tornar a Cuba europeia, há falta de ambição, não se pensa o futuro e por isso não admira que os jovens fujam daqui.”

Assim, cinquenta anos depois desta Revolução dos Cravos, ainda não cumprida na totalidade, convém olhar agora, para daqui a vinte anos com olhos de ver, com a esperança de ver cumprida a liberdade que nos permita viver na Califórnia da Europa e não na Cuba europeia.  


Texto com algumas/pequenas alterações.

Marcolino Cepeda

1 comentário:

  1. Vi com muito interesse o texto do Marcolino no último post do blog. Cada
    pequena história descrita dava uma novela, que tempos! (Jorge Morais)

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