Já lá vão cinquenta
anos desde a Revolução dos Cravos. Parece que foi ontem o despertar para este
novo país, com as suas gentes, os seus usos e costumes, as suas crenças e
descrenças… A Liberdade e a Esperança.
1971, tinha eu dezasseis
anos, aluno da Escola Industrial e Comercial, descobri o boletim “Presença”, de
que fui leitor e colaborador assíduo e fiel durante os três anos seguintes.
Esse foi o meu despertar.
2 de abril de 1972. Fazia
parte do grupo de teatro da Escola Industrial e Comercial de Bragança. Nesse
dia, apresentávamos a peça “Mar” de Miguel Torga. A encenação coube ao professor
Fernando Pires e o cenário esteve a cargo do Dr. António Ferra. Foi um belo
espetáculo, a sala estava cheia e no final, como tudo tinha corrido de feição,
fomos todos, menos os professores, comemorar para o circuito turístico. Ríamos,
cantávamos e falávamos alto. Estávamos felizes. De repente, apareceu a Polícia
que nos levou para a esquadra. Alguém avisou o professor Fernando Pires que,
rapidamente foi saber de nós e explicou a situação. Fomos alertados: “Se voltar
a acontecer, as coisas serão diferentes.” Depois disso mandaram-nos para casa.
Nesse dia juntei mais um tijolo à minha, ainda débil, consciência política.
1973,
eu, o Teófilo, o Manuel de Jesus e o Lino, jovens de dezassete anos, decidimos
dar largas ao nosso descontentamento contra Salazar na avenida do Sabor. O
Manuel, com um grãozinho na asa, assim como todos nós, deitou-se no muro e
adormeceu tão profundamente que nada o poderia acordar. Lá ficou até ao raiar
do dia. Foi a sua sorte. Nós continuámos em grande algazarra. Apareceu a
polícia que nos levou para a esquadra. Julgo que nem repararam no Manuel,
placidamente adormecido. Lá chegados, fomos sujeitos a interrogatório,
assinámos o depoimento e fomos avisados de que, da próxima vez, seríamos presos.
Deste episódio resultou o regresso do Teófilo para Angola onde se encontravam
os seus pais.
O jornal “Mensageiro de
Bragança” era dirigido pelo Padre Manuel Sampaio. Da lista de colaboradores
fazíamos parte, eu, Teófilo Vaz, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues e Jorge Morais,
entre outros. Certo dia, fui chamado pelo diretor. Precisava de falar comigo.
Havia recebido ordens do Senhor Bispo no sentido de prescindir da minha
colaboração no jornal. “Este garoto não escreve nem mais uma palavra para este
jornal.” Fiquei, como é natural, triste. O Padre Sampaio olhou para mim e
perguntou-me: “E se escrevesses com um pseudónimo?” Perfeitamente estupefacto
aceitei e passei a ser José Valverde e Bernardo Faria.
Há coisas que
decididamente a memória não esquece. Costumávamos juntar-nos em casa do Zé
Manuel onde falávamos de política e ouvíamos música proibida: Adriano Correia de
Oliveira, Zeca Afonso, Sérgio Godinho, José Mário Branco…
Enquanto estudantes, durante
o verão de 1973, eu, o Malan, o Dias, o Buiça, o Carlos, o Eurico e outros, trabalhávamos
na apanha e tratamento do lúpulo. Era um trabalho árduo, feito em pleno verão,
com muito calor. Resolvi agitar as águas convencendo todos os trabalhadores a
fazermos greve por nos sentirmos mal pagos. Unanimemente aderiram à greve que
se prolongou das oito da manhã até às vinte e duas horas. A verdade é que eu já
estava muito preocupado, a pensar no que poderia acontecer se o responsável
pela LUPULEX decidisse chamar a PIDE e a polícia o que, felizmente, não
aconteceu. O patrão havia perdido a esperança de que a greve acabasse e, tendo
prazos a cumprir, decidiu falar com os grevistas. Correu tudo bem e foram
atendidas as nossas reivindicações. Foi, sem dúvida, uma grande vitória.
Li muito. Livros
absolutamente proibidos, que ainda hoje se encontram na minha biblioteca: Karl
Marx, Lenine, Mao Tsé-Tung, António Sérgio e muitos outros. Alguns adquiri-os
na livraria Mário Péricles, clandestinamente.
Às leituras que fiz,
acrescento as conversas que mantive com muitos amigos: Manuel Rodrigues
(Calouste Gulbenkian), Manuel Gomes (professor na escola Industrial e
Comercial). Também com o Victor Cordeiro mantive conversas muito interessantes
sobre o que se passava no ultramar e em Portugal.
Era, ainda, em casa do
Manuel Gomes, que aos sábados à noite, ouvíamos, em surdina, a Rádio Argel.
Muitas vezes, rua abaixo, rua acima, ouvíamos os passos. Desligávamos o rádio e
aguardávamos que se fosse embora quem por ali andasse.
Um amigo do partido
comunista enviou-me para casa, o jornal “A voz do Povo”. Assustei-me. Não por
mim, mas pela minha família. Tomei consciência do perigo em que os estava a
colocar. Sim. Podiam prender-nos pelo simples facto de possuirmos este jornal
ou outro do mesmo género. Pedi-lhe que não me enviasse mais jornais.
Um ano antes da
revolução, eu e o Malan decidimos que não faríamos o teste da disciplina de Educação
Moral e Religiosa, na escola do Magistério Primário, marcada pelo padre que
lecionava a disciplina. Disso o avisámos e ele ficou muito irritado. Note-se
que não era obrigatória e não contava para a nota final. Foi, obviamente, um
ato de rebeldia. O que me fez espécie foi a atitude do professor que, depois do
25 de Abril, sempre que por ele passávamos, todo se desfazia em cumprimentos.
Estas vivências que
aqui relato, todas acontecidas antes da Revolução, fizeram de mim quem sou.
Sempre interveniente, sempre combativo, sempre interessado no que se passava e
passa à minha volta.
Aconteceu o 25 De
Abril. Vasco Lourenço, Otelo Saraiva de Carvalho, Salgueiro Maia, Melo Antunes cheios
de ideais e cansados da guerra ultramarina deram “um murro” na mesa. “É agora
ou nunca!” E foi, felizmente.
Durante algumas horas
nada se soube. Nem rádio nem televisão noticiavam fosse o que fosse. Através da
BBC de Londres, em casa do António Carneiro, soube o que se passava em Lisboa.
A televisão portuguesa começou a transmitir pelas 16:00 ou 17:00 horas
Para mim e, talvez, a
maioria da população portuguesa, o 25 de Abril de 1974 foi uma explosão de
alegria. Senti-me livre. Fomos manchete pelo mundo todo. A nossa revolução fora
feita com cravos nos canos das espingardas, sem derramamento de sangue. Passámos
de uma ditadura com quarenta e oito anos para uma democracia.
Acordar para a
realidade dos tempos conturbados pós Revolução, foi o reaprender a caminhar.
Nem tudo foi pacífico no arrumar da casa. Ainda hoje não é.
No tempo da euforia,
realizou-se em Bragança, uma reunião no antigo Quartel dos Bombeiros. Fui um
dos convidados como ilustre personalidade de Bragança, ao lado do Dr. Eduardo
Carvalho e do Padre Manuel Pires. Senti-me orgulhoso pelo reconhecimento
público por toda a atividade que, bem ou mal, desenvolvi em prol da liberdade.
Desiludi-me pouco tempo depois quando passámos do “Nós” para o “Eu”. É preciso
pensar no todo e agir em conformidade. Precisamos de acreditar mais em nós.
Portugal precisa de
pessoas preparadas, com ideias, com uma visão de futuro que englobe todos os quadrantes
do desenvolvimento, da cultura, da saúde, do ambiente, dos oceanos, da
agricultura, etc. Devemos valorizar as nossas referências. Somos um país riquíssimo
em bons exemplos.
Os partidos políticos
devem ser “reformulados, recriados, modificados” para que possam dar resposta
aos problemas cada vez mais diversos e singulares que surgem pelos diferentes
países que compõem o nosso mundo. Infante Dom Henrique (n. Porto, 4 de março de
1394 – Sagres, 13 de novembro de 1460), foi um infante português e a mais
importante figura do início da era das descobertas. Almeida Garrett (n. Porto 1799,
f. Lisboa 1854), grande impulsionador do teatro em Portugal, alertou-nos para a
cultura. Mário Soares (n. Lisboa 1924, f. Lisboa 2017) deixou, inequivocamente,
a sua marca no partido que ajudou a fundar. Como ele, também Sá Carneiro (n. Porto
1934, f. Camarate 1980) mostrou que as suas intenções visavam sempre o bem
comum.
Independentemente da
incompletude da Revolução de Abril está nas nossas mãos completá-la. Citando
Pedro Soares dos Santos, CEO da Empresa Jerónimo Martins: “Portugal podia ser a
Califórnia da Europa, mas está a caminho de se tornar a Cuba europeia, há falta
de ambição, não se pensa o futuro e por isso não admira que os jovens fujam daqui.”
Assim, cinquenta anos
depois desta Revolução dos Cravos, ainda não cumprida na totalidade, convém
olhar agora, para daqui a vinte anos com olhos de ver, com a esperança de ver
cumprida a liberdade que nos permita viver na Califórnia da Europa e não na
Cuba europeia.
Texto com algumas/pequenas alterações.
Marcolino Cepeda
Vi com muito interesse o texto do Marcolino no último post do blog. Cada
ResponderEliminarpequena história descrita dava uma novela, que tempos! (Jorge Morais)