Esta entrevista foi realizada em 2004, se não estou em erro, há precisamente 20 anos.
Combinámos com Graça Morais, ir buscá-la ao Teatro Municipal de Bragança. Assim fizemos e à hora marcada, com muita alegria e alguma ansiedade pela responsabilidade de entrevistar uma das mais importantes e talentosas pintoras portuguesas, de renome internacional, com obras espalhadas pelo mundo inteiro, fomos buscá-la e seguimos para a rádio RBA, que já não existe.
Esperava-nos o Rui Mouta, locutor, grande amigo, excelente profissional e a voz escolhida para grande parte das entrevistas que levámos a cabo.
À chegada, entreguei o guião ao Rui, como sempre que íamos à rádio, apresentei-lhe a nossa convidada que a recebeu com a simpatia que lhe é natural.
Com o formigueiro nervoso próprio dos grandes momentos, demos início à conversa que aqui plasmamos.
ENTREVISTA
GRAÇA MORAIS
Nasceu numa pequena
aldeia do nordeste transmontano, Vieiro. Indubitavelmente esse acaso marcou a
sua vida…
Completamente.
Eu costumo dizer que tive a sorte de nascer numa aldeia perdida nos montes,
porque na altura em que eu nasci, em 1948 essa aldeia que era o Vieiro, não
tinha estrada, não tinha electricidade, não tinha telefone, e por isso esse
isolamento em vez de ser considerado por mim hoje, a esta distância, uma falha,
acho que foi um grande enriquecimento na minha infância, porque em vez de estar
a olhar para fora, virei-me completamente para dentro. Todas as experiências
foram intensamente vividas e fiquei de facto mergulhada nesse reino rural e a
minha pintura tem muito a ver com isso.
Acabou por África,
primeiro Moçambique depois Cabo Verde. Sente que essas vivências se refletem no
seu dia-a-dia e também na sua alma?
Não.
África como as viagens que fiz ao Japão… esses dois anos em Moçambique foram
marcantes porque eu tinha sete anos, sete e nove anos são idades em que o ser humano
atinge uma grande inteligência e de facto eu absorvi muito… África, na altura,
estava muito à frente… Por exemplo, lá eu lia banda desenhada e aqui nas
aldeias ainda não tinha chegado a banda desenhada, por isso tive contacto com a
chiclete, com a banda desenhada, com a Coca-Cola, com modas que vinham da
África do Sul, com outras pessoas e, sobretudo, com a população que tinha uma
cultura diferente. Gostei muito. A minha facilidade de convívio com africanos
vem dessa altura. Em breve vou fazer uma viagem, a convite do Centro Nacional
de Cultura, a África. Disse logo que sim porque eu gosto muito de África, gosto
dos africanos. Acho que são pessoas com uma grande generosidade. São países que
vivem muito mal, sempre com muitas dificuldades e eu sinto-me sempre muito
solidária com essa gente, por ter vivido no meio deles e dei-me sempre muito
bem com todos.
Uma meninice errante,
juventude arredada do ambiente familiar devido aos estudos. Mais fundas as
raízes?
Meninice
errante é relativamente, mas de facto muito cedo saí de casa porque tinha que
ir estudar porque na altura o colégio em Vila Flor ficava a dois passos mas Bragança já
ficava mais longe.
Eu
lembro-me que vinha muitas vezes de comboio, naquele comboio que agora não
chega cá, e eu estava hospedada nas freiras do arco e eu carregava a minha
malinha e outras coisas e fazíamos isso tudo a pé. Hoje as crianças são um
bocado mais mimadas, os pais levam-nos sempre à porta da escola e na altura nós
fazíamos isso tudo com ar muito natural.
No
caminho íamos encontrando também outras pessoas que vinham de outras aldeias,
era um percurso diferente e por isso muito cedo me habituei a sair de casa mas,
sempre com saudades de casa, porque a minha estava sempre casa era uma casa de
lavradores estava sempre com a porta aberta e era uma casa sempre cheia de
gente e eu tive também essa sorte de pertencer a uma grande família.
O
meu avô tinha oito filhos e por isso na casa do meu avô que era um lavrador
muito generoso havia sempre muita gente havia muitos obreiros e de facto aquilo
tudo encheu-me a cabeça e quando comecei a ganhar consciência de mim como pessoas
e comecei a decidir que agora realmente quero é pintar, as minhas pinturas
começaram a falar dessas pessoas, dessa terra.
De
facto eu acho que não foi de propósito acabou por acontecer. Se calhar é a
minha missão e durante dois anos eu levei a minha filha comigo, na altura
estava na segunda classe, foi frequentar a escola onde eu também andava quando
era criança e foram dois anos muito difíceis mas ao mesmo tempo muito especiais
porque foi a partir daí que a minha pintura começou a crescer.
O
isolamento faz falta para um acto de criação e eu ali pude estar isolada e ao
mesmo tempo em contacto com uma cultura rural, observando todos os dias o que é
que acontece no campo desde manhã à noite, como é que as pessoas faziam os seus
trabalhos. Não é que eu escrevesse ou que a minha pintura contasse isso, mas
precisei de viver esse dia a dia e de falar com as pessoas. A pintura não é uma
realidade, porque a minha pintura não é real nem é regionalista mas, realmente
vive dessas emoções fortes, dessa relação.
É o que lhe vai na
alma, essencialmente a pintura.
Bastante.
Eu acho que é uma relação daquilo a que eu chamo mente e do meu corpo. Toda a
minha pintura é feita com uma grande deturpação do momento que eu estou a
viver.
A
pintura não é só para decorar paredes, por acaso também pode ter essa função,
mas quando um artista faz arte e não faz quadros… o que eu faço é uma grande
relação comigo própria e com o mundo que me cerca. Por isso, quando estou a
pintar, estou a pintar as minhas grandes inquietações sobre o que me rodeia e
as minhas grandes felicidades. Não quero ficar com o carimbo de que só pinto
pessoas de Trás-os-Montes, ou as mulheres de Trás-os-Montes, porque muitos dos
meus quadros parecem cenas às vezes também ligadas ao terrorismo, àquilo que se
passa no mundo e que me toca mais de perto. Às vezes são assuntos dramáticos e
de uma grande injustiça.
Existe a melancolia do
tempo que passou?
Não.
Eu não sou uma pessoa melancólica. Vivo também a pensar no futuro. Acho que
tenho tanto que fazer… e agora que já passei a barreira dos cinquenta anos,
sinto que terei mais vinte anos com muita saúde se tiver sorte. E por isso a
percepção do tempo começa a ser muito cruel, porque começo a sentir que cada
vez tenho menos tempo para pintar e ainda tenho muita coisa para pintar ou
desenhar. Ainda tenho muito para fazer e por isso não tenho tempo de olhar para
trás. O que está atrás é o meu património que me serve como experiência, como
amadurecimento. Eu acho que sou uma pessoa mais rica do que era há vinte anos
porque tenho a experiência, muitas experiências negativas. Todos nós com a
minha idade já sofreram perdas, já se perdeu um pai, outro já perdeu uma criança
e isso tudo magoou, sofri mas não serve para me queixar porque o que eu quero é
crescer e fazer cada vez mais e melhor.
Pintar cada vez mais e
melhor.