A descentralização «nunca estará
acabada», afirmou o primeiro-ministro em 30 de Setembro de 2023, no Seixal, na
abertura do XXVI Congresso da Associação Nacional de Municípios Portugueses.
António Costa nunca fala de regionalização, como pretendem os autarcas – e, em especial,
os de uma região que constitui um sétimo do poder camarário no Continente.
Há uma «identidade do lugar» que a
História e a Geografia definem como fronteiras, marcando «a noção de território
e da diferença», segundo José Mattoso (Portugal – O Sabor da Terra.
Trás-os-Montes, Lisboa, 1997: 7). Marão, Alvão, Cabreira e Gerês separam do
Minho; o rio Douro, das Beiras. No curso internacional deste e da serra de
Montesinho à do Larouco (com o Gerês, as de maior altitude no Continente, após
a serra da Estrela) correm as comunidades de Castela e Leão e da Galiza.
A designação geral
‘Trás-os-Montes’, de uso mais comum a partir do séc. XIII, ainda se dividia, no
séc. XII, por Leão, sob influência de Zamora e dos Templários, a par da dos cistercienses
galegos sobre Pitões das Júnias, até à Vilariça, do influxo de Moreruela sobre Miranda,
e, até aqui e Vinhais, dos beneditinos de Castro de Avelãs, em cujo mosteiro
está sepultado Nuno Martins de Chacim (finais do séc. XIV), o último braganção,
avô materno de Inês de Castro. O arcebispado de Braga influía até Barroso, vales
do Tâmega e Corgo. Os Bragançãos (ou Braganções) inclinam-se para D. Afonso
Henriques e tornam-se decisivos até
D. Dinis.
Em tempo de D. Manuel,
Trás-os-Montes é uma das seis comarcas do reino, percebida, pois, como sui
generis, até hoje. A política de forais, póvoas e ‘vilas novas’ organiza e
sedentariza populações; os castelos vão passando de mãos numa fronteira fluida.
Alheios à guerra, galegos e portugueses misturam-se em Ruivães, Vilar de
Perdizes, Rio de Onor, etc., conforme os numeramentos de 1530 e o tombo da
demarcação fronteiriça de 1538. Propõe-se a divisão do couto misto da raia de
Montalegre somente em 1859.
A violência dos elementos – terra
dura (salvo nas veigas: Chaves e trechos da Terra Quente nordestina), clima
contrastante –, é «pacificada pelo trabalho imperceptível e incansável do tempo»,
de que resulta o «carácter intocado, “natural”, da paisagem». Em síntese de
Mattoso: «Trás-os-Montes é, pois, simultaneamente, a terra da natureza intacta,
das grandes violências, da energia acumulada e do “tempo longo”.» (p. 7)
As dificuldades, que outras
províncias ibéricas do século V também conheceram – o bispo Idácio de Chaves
conta na sua Crónica, finda em 469, como a razia das invasões bárbaras, com os
Vândalos dominando a Galiza, foi acompanhada de pestes e fome, dos humanos
fazendo antropófagos –, criaram formas de resistência e solidariedade, além de
variedades de uso comunitário agora extintas: o boi e forno do povo, coutos e
vezeira (guarda do gado por todos).
A riqueza aurífera dos séculos I e
II foi desaparecendo, e só a exploração do volfrâmio reanimou com a Segunda
Guerra Mundial; outros minérios valem menos do que os cereais, o vinho, o
azeite, a amêndoa, a castanha, os enchidos, as águas minerais, insuficientes
para atrair ou reter populações, como não retiveram as indústrias da seda e
linho, em Setecentos, nem as termas hispano-romanas e oitocentistas, e as
muitas barragens do Douro (que sacrificaram povoações, além dos trabalhadores:
ver as condições de vida destes, nos anos 50, em Telmo Ferraz, O Lodo e as
Estrelas, 1960). A oliveira das baixas de Mirandela, a par de Freixo de Espada
à Cinta (também com pão e vinho), é já memorada na Geografia d’Entre Douro e
Minho e Trallosmontes (c. 1549), do Doutor João de Barros.
Entendemos melhor a região de
Trallosmontes à luz das três condições na definição de cultura, segundo T. S.
Eliot (Notas para a Definição de Cultura, Rio de Janeiro, 1965: 16): uma «estrutura
orgânica» assente em classes sociais e transmissão hereditária; a
especificidade geográfica, ou «regionalismo», desembocando em «culturais locais»;
a religião, com seus cultos e devoções. «O principal canal de transmissão de
cultura» (p. 43) é a família, conceito que salta facilmente as paredes de um
lar para formas colectivas. Assim se explicam estudos continuados sobre o
romanceiro; sobre a oratura em prosa; o teatro popular; sem esquecer o disperso
cancioneiro de redondilha maior, a pedir balanço, confrontadas as quinhentas
densas páginas do Cancioneiro Popular Transmontano e Alto-Duriense (1966), de
Guilherme Felgueiras.
Sirva-nos o índice geral deste
para entendermos, numa Europa que se pretende de regiões, esta pequena parcela.
O quotidiano é de relação: com a múltipla natureza, os mundos animal e vegetal,
entre galanteios e requebros, arrufos, chacota, «penas de amor», relação que
fundamos em três núcleos essenciais: vida social e moral, incluindo-se, aqui,
os costumes; vida material; linguagem.
Na vida social e moral, convergem
bodas, baptizados, ritos fúnebres, demandas, entre outros eventos; com datas
fixas, há cerimónias religiosas, festas, Entrudo, e houve o Galo do professor; constantes,
não raro conjugando-se, são, por exemplo, a má-língua e o serão. Este associa transmissão
em família e região. Estamos no seio da cultura intersocial.
Esta acrescenta uma componente
instrumental, um saber-fazer, na passagem à vida material: além da cultura da
terra (sentido literal de cultura) e suas técnicas, além de ofícios ou
indústrias caseiras, somem-se adornos e trajes, alimentação, iluminação, etc.
De tudo isto dá conta, miudamente, a leva de etnólogos, sociólogos e
historiadores (também das mentalidades, da cultura, da comida). O estado de
conservação seduz, para lá de paredes que ecoam “Entre quem é!”. Não menos
actua a literatura, alargando o leque das potencialidades. Estas residem na linguagem,
parcial repositório do que acabei de enumerar.
O que, no tocante às línguas –
entidade donde manam linguagens (lá iremos) –, tem a região de diversidade, tem
de unidade em matéria de religião. Responde ao voto final de Eliot, pois, «sem
uma fé comum, todos os esforços para unir mais as nações, em cultura, não
poderão produzir mais do que uma ilusão de unidade» (p. 82). Esta visão
medieval vazou-se em catolicismo apostólico romano, jamais imune ao paganismo de
rituais festejados pelos mais crentes, a par de crendices e bruxedos, de
medicina popular combatida pela Igreja e Universidade desde o século XIII, de
pactos com o Diabo e tentações da carne que arrepiam serafins. Veja-se como o
cónego Ochoa, que dá título (2007) a A. M. Pires Cabral, desonra a filha do
feitor Querubim, Gervásia. Aproveito a personagem Herculano para dizer como se reforça
a palavra da rua, a atmosfera de merenda à lareira, e, por breves histórias
interpoladas, se oferece um quadro aldeão disputado entre igreja e taberna. Citei
quatro lugares de eleição, em que a igreja não tem primazia.
É extraordinário, entretanto, ver
reunidas família, região e religião em dois núcleos: nos santuários, ermidas e
ex-votos que pontuam a geografia; e na figura do padre-escritor, quase sempre
obscuros abades vivendo do seu passal ou da côngrua. Novos tempos alteraram
este imaginário oitocentesco.
Santuários, ermidas e nichos
devotos vêm do tempo de Panóias romanizada, coetâneos de pontes e vias romanas
– reformadas em finais de Setecentos, com o provimento de fontes e novas
estradas reais –, antes de chegarem os caminhos de Santiago, com que a região
se transladava em romarias, feiras francas (de um ou dois dias por mês, quando
não de três, na dos Santos, em Torre de Dona Chama; eram, sobretudo, de gado),
e se ligava à Europa. O comboio, hesitante, veio e foi-se entre 1906 e 1992.
Modernas vias, por ar e terra, não fixam gente.
Entretanto, outros cultos
primitivos sobrevêm, documentados nos berrões/berroas, associados ao pelourinho.
Seria preciso estudar castros, antas, dólmenes, etc., face ao êxito das antigas
festas do solstício de Inverno, agora recuperadas – na antropologia, na
geografia, na engenharia e arquitectura, no cinema, no documentário, na ficção,
nas artes plásticas, na caricatura, na fotografia. Padres houve que foram além
de curas de almas e melhor organizam um imaginário, em que o santo-e-senha é
Francisco Manuel Alves: se os 11 volumes (desde 2002, com um décimo segundo de
índices) das Memórias Arqueológico-Históricas do Distrito de Bragança
(1909-1947) realçam, no título, Arqueologia e História, não esquecem
Bibliografia, Toponímia e demais domínios da investigação local, incluindo um
par em que a região a todas sobreleva – na Língua e suas falas, e na Literatura
Oral e Tradicional.
Onde buscar, entretanto, o peso ou
o sentido de região à luz do estrato cultural que é a literatura, cujo universo
referencial fugidiamente descrevi? Na linguagem. Terra de duas línguas oficiais,
português e mirandês, tem registados, quando não pronunciados, os falares
barrosão, sendinês, guadramilês e rionorês, ou riodonorense. Quer-se mais
diversidade linguística?
Ora, é face à regra e sua
reversão, à pronúncia oblíqua e seu registo, ao novidoso vocábulo, servindo um
olhar de alturas e abismos a verter, que esteticamente se perfila e transmite
um conjunto particular de imagens em que nos solidarizamos, seja neste chão ou
nas comunidades deslocadas. O nosso mundo é «em qualquer Brasil», disse Torga,
em conferência de 1948 sobre “Teixeira de Pascoaes”: «Nascemos aqui, mas nascemos
desterrados, reais ou potenciais, e sempre com parte do sangue no exílio. Todos
temos um irmão, um filho, um primo ou a família inteira em qualquer Brasil.»
Nessa conferência, “Trás-os-Montes no Brasil”, lida no Centro Transmontano de
São Paulo e no do Rio, em 14 e 16-VIII-1954 – onde surge o célebre «O universal
é o local sem paredes» –, é um paradoxo notável afirmar que a «realidade sem muros»,
que eu traduzo em região da cultura (e, nela, de uma literatura peculiar),
realidade paralela a «qualquer Brasil», era a região com mais muros e muretes:
Trás-os-Montes...
História, Geografia e uma singular
Cultura sobreviva (nos idiomas e suas variações, numa antropologia de
quotidiano resistente e solidário) trazem identidade a um território que se
prova voltado para o mundo e, desde logo, para Espanha. A emigração dos anos 60
foi uma tábua de salvação; mas quase 50 anos de democracia são mais do que 48 de
Estado Novo e as estatísticas mostram que, entre 1960 e 2021, os 34 concelhos
de Trás-os-Montes e Alto Douro (na desejada regionalização, falaremos em 40)
passaram de 692 029 habitantes para 384 410, seja, de 7, 82% para 3,
74% do todo nacional, quando representam mais de dez por cento dos municípios.
Nas eleições legislativas de 1976, Bragança elegeu cinco deputados; agora,
elege três; Vila Real veio de sete para cinco. Seja, perderam-se quatro
deputados, e as respectivas distritais não parecem preocupadas.
Deixando de lado a ladainha dos
serviços públicos extintos ou subtraídos; considerada, histórica e
culturalmente, a singularidade de uma região objectivamente abandonada pelos sucessivos
poderes e suas promessas ocas, é sensato concluir que as médias cidades da
região provaram já uma invejável capacidade de governo, desde o ensino superior
à segurança e qualidade de vida sustentável, em que Bragança é modelar, em
termos europeus.
Dói, todavia, que os responsáveis
adiem o cumprimento da Constituição, e que a Assembleia da República, de posse
de um documento fundamental do IPPS-ICTE (2019) sobre a organização do Estado e
as competências dos municípios, não leia sabiamente os resultados: «A maioria
dos autarcas quer a regionalização e órgãos diretamente eleitos nas regiões e
áreas metropolitanas, mas não nas CIM». Percentagens: criar regiões no curto
prazo defendem 77 por cento dos municípios; regiões administrativas com órgãos
próprios eleitos directamente: 84 por cento. «A regionalização é uma ambição
transpartidária», com 100 por cento de votos da CDU, 85 por cento do PS, 67 por
cento do PSD e CDS. À pergunta se as regiões devem ser criadas no curto prazo,
o litoral diz que sim (75 por cento) e o interior sobe aos 80 por cento.
Perante este quadro, não se avança porquê?
Fiz-me leitor constante,
ultimamente, do programa eleitoral do PS para 2022-2026. Na 3.ª parte, “Desafio
estratégico: desigualdades”, o capítulo V, “Coesão territorial”, promete:
«Tornar o território mais coeso, mais inclusivo e mais competitivo; Corrigir as
assimetrias territoriais; Atrair investimento para o interior; Diversificar e
qualificar o tecido produtivo; […]; Promover a fixação de pessoas nos
territórios do interior; Afirmar os territórios fronteiriços; Assegurar serviços
de proximidade.» Reconhecido um «estatuto especial», garante «infraestruturas rodoviárias
de proximidade, nomeadamente no âmbito do PRR», e promove «a mobilidade transfronteiriça»
com «serviços de transporte a pedido», sem jamais falar da indispensável ferrovia.
Não se vê como coadunar isto com a seguinte entrada: «Implementar com Espanha a
Estratégia Comum de Desenvolvimento Transfronteiriço, no âmbito do próximo
Quadro Financeiro Plurianual, reposicionando o interior de Portugal como espaço
de uma nova centralidade ibérica.» Face às perdas em 49 anos de democracia,
como reposicionar o Interior Norte enquanto centralidade ibérica sem a
experiência da regionalização, que maiorias tão claras defendem? Porquê tresler
a Constituição e travestir a regionalização em descentralização sem fim à
vista?
*Universidade de Lisboa. Escritor.
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