Por Rita Marnoto - Recensão
publicada na Colóquio/Letras Nº 212 de 2023.
As duas palavras que Teresa Martins Marques (TMM) escolheu para título do seu livro afirmam-se como súmula metafórica do intrincado e sinistro ardil que conduziu ao assassínio de Aldo Moro, a 9 de Maio de 1978: Não matarás! Provêm do Êxodo (20: 13 da vulgata) e de um conjunto de versículos que consagra a aliança primordial entre Deus e o povo de Israel. O paralelismo entre o plano do divino e o plano do terreno é sustido pela ordem social da pólis e pelo sistema de valores a que deve obedecer, conforme plasmados nos Dez Mandamentos. Aliás, a lei hebraica distinguia-se de outros códigos do seu tempo por um entendimento muito avançado do que é a justiça: a punição devia ser adequada ao crime.
Passando para a Itália de Moro,
este Não matarás vale como mandamento, constitucionalmente consagrado, de um
estado cuja religião era o catolicismo, segundo os Patti Lateranensi, firmados
entre Benito Mussolini e a Santa Sé em 1927 (revistos em 1984, etc.). Em 1978,
o país era governado pelo Partido Democrata-Cristão, que tinha por presidente
Aldo Moro, cabendo a Giulio Andreotti as responsabilidades de chefe do governo.
De modo instigante e sibilino, o
repto fica lançado. As várias comissões de nomeação parlamentar, cujos
relatórios TMM segue pari passu, nunca esclareceram cabalmente as
circunstâncias em que Aldo Moro foi exterminado, e a Bíblia não era o livro das
Brigate rosse.
O pano de fundo histórico do
crime são os chamados anni di piombo, os anos de chumbo, ou seja, aquele
período entre as décadas de 1970 e 1980 que deixou a sociedade italiana em
carne viva. O piombo era o das armas que foram disparadas sobre políticos,
magistrados, jornalistas, polícias, sindicalistas ou massas anónimas. Nas
décadas de 1950 e de 1960, a Itália tinha vivido o seu milagre económico, mas a
partir dos anos 70 o crescimento começou a abrandar, num país que descurara a
organização do sector público. Foi nesse clima que nasceram dois terrorismos de
sinal diferente, mas com muitas cumplicidades entre si, o terrorismo rosso e o
terrorismo nero. Contudo, quando no final da década de 1970 a Guerra Fria
atravessou um período menos crispado e as tensões internacionais se atenuaram,
foi-se abrindo um espaço de diálogo entre os dois maiores partidos italianos, a
Democracia-Cristã (38,7% dos votos nas eleições de 1976) e o Partido Comunista
Italiano (34,5%). Político e católico de matriz conciliante e de visões largas,
Aldo Moro era o grande obreiro do compromesso storico que eventualmente levaria
à participação no governo do Partido Comunista Italiano.
O romance organiza-se em 41
pequenos capítulos, habilmente encadeados por uma estratégia narrativa que visa
a captatio do/a leitor/a. A sequência dos factos confere à narrativa um ritmo
empolgante, acentuando uma atmosfera indagadora que vai avolumando e
associando, mais ou menos subtilmente, sucessivos entrechos. Termina com um
último capítulo dedicado «Ao leitor» (mas também à leitora, dir-se-ia), que
explana a elaboração do livro, numa dimensão metanarrativa.
Aflora à transparência, nesse
último capítulo, a TMM estudiosa de literatura e cultura portuguesas, quando
analisa algumas facetas da sua própria obra, classificando-a, muito justamente,
como romance histórico. Não matarás! Romance de um crime integra-se num filão
literário de grande actualidade, que encontra um dos seus antecedentes
próximos, da parte italiana, na recente biografia de Mussolini escrita por
Antonio Scurati e vencedora do prémio Strega.
Subjaz a este livro um trabalho
ingente de pesquisa e cruzamento de fontes documentais, testemunhos e pistas,
que não raro foram manipulados ou falseados. Um nó histórico tão devastador
como o assassínio de Moro propeliu uma maré de ensaios críticos, documentários
e controvérsias, materializada em milhares e milhares de páginas e horas de
gravações. Para escrever este romance histórico, TMM cotejou todos esses
materiais, guiada pelo empenho cívico de quem se propõe batalhar pela verdade.
Daí resulta uma trama em que se cruzam interesses da banca, de sectores
corruptos do Vaticano, de organizações criminosas italianas e de poderosas
redes internacionais vinculadas ao pacto do Atlântico Norte e à
Democracia-Cristã, tudo isso sob a capa das Brigate rosse. Nesse cenário, a
ficção é a metáfora que vem iluminar vazios e incongruências.
Considere-se a reconstrução da
geografia dos lugares onde Aldo Moro esteve sequestrado e foi assassinado. O
cubículo de Via Montalcini (muitas vezes indicado como local de sequestro) não
ofereceria, a um claustrofóbico como Moro, condições mínimas de sobrevivência,
o que levou TMM a seguir as pistas que identificaram a sua transferência para
uma casa no litoral do Lazio, aliás assinalada às autoridades, por Craxi, Prodi
e outras eminentes figuras, como local do sequestro, mas nunca efectivamente
inspeccionada. A partir daí, é criado um cenário de humilhações e ameaças, mas
também de cumplicidades. Por sua vez, o corpo deixado no porta-bagagens do
Renault 4 rosso, estacionado na Via Caetani, teria sido baleado, para TMM, em
local não muito distante, uma garagem da Guardia di Finanza, entidade conivente
com o crime. Os dois cabelos ruivos, um de 14, outro de 18 centímetros, que
ficaram agarrados ao casaco escuro de Moro, são o rasto da ficção.
Há, de facto, várias alusões
(Pietro di Donato, Paolo Cucchiarelli e outros) a uma jovem mulher de cabelos
longos que participou no sequestro e da qual foi desenhado um retrato robô,
porém loura. Desse vulto nebuloso e dos dois cabelos ruivos, TMM faz sair o fio
condutor da narrativa romanesca, ou seja, a personagem à qual atribui o nome de
guerra Anna, e na qual se poderá de imediato reconhecer aquele perfil de mulher
injustiçada, inteligente e combativa, saída das páginas do seu primeiro
romance, A mulher que venceu Don Juan.
Numa obra em que inesperadas
mudanças de voz e de ponto de vista mimam as dissonâncias das mediações da
história, Anna, personagem de ficção dotada de várias faces e de várias
máscaras, loura e ruiva, é o corpo em ferida dessa história. A infância de
violência e pobreza numa Matera ancestral, e o modo como conseguiu chegar a
Roma e foi cooptada por monsenhor Paolo Martelli para serviços sexuais e de
transporte de dinheiro, não lhe turvaram a mente, bem pelo contrário. A
personagem faz-se espelho de uma Itália que, apesar de desconjuntada, não
denegou uma consciência cívica e ética. A infelicidade de nascer mulher, de ter
sido estuprada e de logo em criança ter descoberto como se envenena um violador
ensinaram-na a dizer reiteradamente: «Faço o que a minha consciência me mandar
fazer» (pp. 41, 64). Através dela, TMM mostra como a mais aviltada das
criaturas pode ser a consciência mais lúcida daquele covo de terroristas, a
ponto de se tornar cúmplice de Aldo Moro, numa tentativa (falhada) de combater
o sistema a partir de dentro. Anna é por isso o lugar diegético privilegiado da
articulação entre história e ficção.
Personagem de charneira por
excelência, é também o elo de ligação entre Itália e Portugal, o país para onde
foge e onde passará o tempo mais feliz da sua vida. A cidade na qual o romance
é escrito, Lisboa, é a mesma para onde TMM a traz, a seguir ao crime. Quando os
terroristas levaram Aldo Moro para a garagem da Guardia de Finanza em que foi
baleado com uma corona de disparos à volta do coração, assinatura de um killer
calabrês, Anna ia ao seu lado, disfarçada com uma cabeleira ruiva. Mas os seus
cabelos, louros ou ruivos, naturais ou falsos que sejam, não são apenas os do
relatório de autópsia de Moro. Os cabelos deixados no casaco de Moro são da
mesma matéria daquele cabelo loiro que denunciou a Condessa Luísa, no Mistério
da Estrada de Sintra. Essa matéria é a metáfora romanesca que constrói a
história.
Escrito segundo o antigo acordo.
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