Autora de dois estudos relevantes sobre José Rodrigues Miguéis (fruto da dissertação de mestrado) e David Mourão-Ferreira (resultado de uma tese de doutoramento), um romance que perspetiva a síndrome de donjuanismo (A Mulher que Venceu Don Juan), uma biografia de Amadeu Ferreira, vários contos e múltiplos ensaios sobre grandes nomes da Literatura Portuguesa, a investigadora, conferencista e escritora Teresa Martins Marques é também uma inconformada ativista cultural. Concluiu há uns meses o mandato de Presidente do PEN Clube Português (2019-2022): eis o pretexto para conhecer um pouco mais esta personalidade com raízes na freguesia de S. Pedro do Jarmelo.
PV. - O seu percurso biográfico deixa entrever uma mulher
de cultura, de ideais e de causas. Quem teve o privilégio de interagir consigo
retém a imagem de uma personalidade forte, determinada, solidária, com espírito
de missão, regida por um conjunto de princípios que definem as suas ações
culturais e intervenções públicas.
Revê-se neste retrato sumário?
Agradeço-lhe a generosidade do retrato, mas ele favorece-me
muito! Diria que tento arduamente desbravar alguns desses caminhos, mas quantas
vezes me deparo com a minha incapacidade para atingir tais objectivos.
PV. – Entre 2019 e 2022, exerceu o cargo de Presidente
do PEN Clube Português. Que balanço faz do mandato que concluiu recentemente?
Penso poder dizer que o balanço é bastante positivo,
porque entre 2019 e 2022 a direcção a que presidi aprovou a entrada de 131 novos
associados, após análise dos respectivos currículos literários. Também no plano
internacional o PEN Clube Português se distinguiu celebrando o Centenário com a
publicação de um volume de 630 páginas que organizei com o título OS DIAS DA
PESTE (Gradiva, 2021), o qual reúne 272 autores de 58 países, que escreveram em
português, inglês, espanhol e francês.
Neste conjunto de autores tive o gosto de incluir
vários guardenses.
PV. – A Teresa tem presença ativa em páginas do
Facebook. Partilha reflexões e artigos, lança desafios que visam a produção do
conhecimento, questiona temas da sociedade atual, divulga eventos culturais,
interage com quem pergunta ou comenta.
Aliás, o romance que publicou em 2014 teve a particularidade
de ter sido dado a ler, nos anos 2012 e 2013, na referida rede social como uma
narrativa seriada aos seus «seguidores» que, de algum modo, colaboraram, através
das suas reações, na escrita do romance. Afinal, sempre há uma via possível
para o bom uso das redes sociais?
As redes sociais são excelentes, se forem bem aproveitadas.
Para responder com algum rigor, perguntei aos meus leitores do Facebook quais
as características da minha página que mais apreciam. Aceitaram de imediato o repto
e apontaram as seguintes: diversificação de conteúdos; tratamento inclusivo dos
intervenientes; incentivo à pesquisa; colocação de questões que suscitam debate
saudável. É este o caminho que desejo prosseguir.
PV. – Enquanto mulher apaixonada pela literatura e
pelas ideias, de que lhe serve esse conhecimento no seu dia-a-dia? Ler,
escrever, pensar, investigar, divulgar não serão práticas que a afastam da
realidade da vida quotidiana, como se estivesse reclusa num mosteiro ou numa
torre de marfim? Lida facilmente com os assuntos práticos, tais como gerir
património, reclamar de um mau serviço prestado, preencher o IRS, ir ao
supermercado, supervisionar a manutenção automóvel, agendar consultas médicas,
executar as tarefas domésticas ou acionar um seguro?
Consegue conciliar esses dois mundos?
Considero-me uma pessoa polivalente. Sem esta característica
dificilmente teria conseguido dirigir a organização do espólio de David
Mourão-Ferreira, na Fundação Calouste Gulbenkian, tendo como resultado final do
trabalho 33 metros de caixas, contendo milhares de documentos acondicionados,
inventariados e classificados.
Durante sete anos foi necessário comer muito pó, carregar
muitos quilos de papel, subindo e descendo de escadotes durante sete anos… Mais
do que conciliar os dois mundos tento fundi-los, complementá-los. Deste
trabalho resultou a tese de doutoramento de 800 páginas - biografia literária
da obra davidiana. E tudo isto passa quase inconscientemente para a minha
ficção em osmose. É à vida prática que vou buscar fonte de inspiração para o
que escrevo.
PV. – Depois de uma parte significativa da sua vida
dedicada ao estudo e à investigação, o que a impeliu a lançar-se na literatura
de ficção? Que registos e pressupostos definem a sua voz literária?
Sempre escrevi ficção, embora a sua publicação não
seja anterior a 2008. A minha “voz literária”, se é que tal existe, tenta
recuperar o registo realista, criando personagens com as quais o leitor se
identifica. E talvez por isso a minha escrita tem funcionado em tradução,
encontrando eco nos leitores de diferentes níveis etários e sociais.
PV. – Pode explicar como encara a sua escrita de
ensaísta e a sua escrita de ficcionista?
A minha escrita ensaísta decorre das necessidades
académicas, mas nunca cedi ao jargão. As minhas teses - O Imaginário de Lisboa
na Ficção Narrativa de José Rodrigues Miguéis e Clave de Sol – Chave de Sombra.
Memória e Inquietude em David Mourão-Ferreira - foram ambas publicadas, com
várias edições no caso de Miguéis, sem ter sido necessário adaptar a escrita a
um público mais alargado. Entendo que a universidade tem obrigações culturais
extra-muros e por isso recuso-me a escrever apenas para ser percebida pelos
meus pares.
No que concerne à escrita ficcional, gosto de criar
personagens populares, que interagem com outros meios, não raro criando registos
humorísticos, mostrando a variedade do mundo dos nossos dias. O importante é
não ceder a hermetismos pedantes, que fazem fugir os leitores a sete pés! A escrita
pode ser límpida, mesmo quando os temas são duros. Gosto de mostrar as
motivações, sobretudo quando desenho psicopatas e as respectivas vítimas. É
para isso que serve o monólogo interior, o diário, que implicam reflexividade
do sujeito. No fundo, tenho uma imensa curiosidade em eu mesma perceber e dar a
perceber ao leitor os enigmas do ser humano.
PV. – Quem a segue no Facebook, sabe que a Teresa
Martins Marques está a escrever – e já lá vão alguns anos de pesquisa e de preparação
para atingir esse fim – um romance cujo enredo se baseia no sequestro e
assassinato de Aldo Moro, em 1978, um episódio tremendo da recente história
italiana: porque é que esse intelectual e político a marcou assim tanto? Que
nova luz ou visão pretende trazer a este caso já sobejamente tratado por
historiadores, jornalistas, escritores e realizadores de cinema?
A verdade do Caso Moro só agora começa a ser contada,
44 anos depois do crime. Os membros das Brigate Rosse contaram a “verità
dicibile”, ou seja, carradas de mentiras com as quais reduziram as penas
poupando os nomes dos mandantes. A Segunda Comissão Moro, cujos trabalhos
decorreram entre 2014 e 2017, contribuiu para que a VERDADE começasse a surgir.
Aldo Moro foi um estadista e um ser humano notabilíssimo que os corruptos do
governo e da loja maçónica P2 quiseram abater, antes que fosse eleito
Presidente da República, o que aconteceria com forte probabilidade, se não o
tivessem assassinado. As Brigate Rosse não foram mais do que os idiotas úteis…
PV. – Passou parte da sua infância na aldeia dos Gagos,
pertencente à freguesia de São Pedro do Jarmelo, e cursou o 3º ciclo de ensino
na Guarda: que memórias gratas lhe ficaram desse tempo? De que é que, nesse
período da sua vida, não tem saudades?
Fiz a escola primária na década de 50, nos Gagos, que era então uma aldeia muito atrasada, sem infra-estruturas básicas. Apenas três crianças prosseguimos estudos liceais, dada a carência financeira da maior parte das famílias. Não há saudades da escola sem aquecimento, das ruas e becos de terra batida, que a chuva e os nevões transformavam em lamaçal, dos ventos uivantes que viravam os guarda-chuvas, de quem os tinha! Lembro-me das mulheres encharcadas com um xaile velho pela cabeça para se protegeram da chuva. Lembro o carinho e a honestidade das pessoas da aldeia, sobretudo as velhinhas quase centenárias. Depois da quarta classe estive cinco anos interna num Colégio no Porto, onde tive uma boa formação moral e académica.
Regressei à Guarda em 1967 para frequentar os dois
últimos anos do ensino secundário no Liceu. Foi um tempo excelente, porque pude
dinamizar um cineclube e o jornal do Liceu, O Riacho. Fui, ainda, presidente da
Comissão de Festas de finalistas.
Mantive contacto epistolar com o meu professor de Grego
e grande amigo, o Reitor do Liceu, Dr. Abílio Bonito Perfeito, até ao seu
falecimento, em Santo Tirso.
PV. – Há uns meses, alertou o Arquivo Distrital da Guarda
e o Museu da Guarda para a existência de uma bula papal concedida em 1624 ao
lugar designado A-dos-Gagos (Jarmelo), encontrando-se à guarda de algumas
famílias da localidade. Na sua ótica, qual a relevância desse documento
pontifício e qual o melhor destino a dar-lhe?
A bula de Graças concedida pelo Papa Urbano VIII à Confraria de São Marcos dos Gagos é uma raridade e uma preciosidade. Ninguém sabia como tal bula tinha ido parar aos Gagos. O meu trabalho consistiu em identificar o bispo intermediário entre o Vaticano e a diocese da Guarda, ao tempo da recepção da bula, em 1624. Consultando as Memórias Paroquiais da Torre do Tombo, cheguei ao nome do padre João de Arce, apelido de origem italiana, pároco do Jermelle, pessoa das melhores relações de D. Francisco de Castro, o bispo da Guarda, mais tarde inquisidor-mor com relações próximas ao Papa Urbano VIII. Durante cerca de quatrocentos anos a Bula foi guardada em grande segredo por particulares, mas esta situação torna-se cada vez mais perigosa, dada a fragilidade do pergaminho. Alertei o Arquivo Distrital da Guarda e o director do Museu para a existência da Bula, cujos directores nunca tinham ouvido falar dela. Tendo já sido feita a cópia fotográfica pelo Arquivo Distrital, entendo que o lugar próprio para preservar este valioso documento é o Museu da Guarda.
Teresa Martins Marques
Lisboa, 30 de Maio de 2022
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