quinta-feira, 8 de setembro de 2022

ESTE SÁBIO TRANSMONTANO, PROFESSOR ADRIANO MOREIRA, FEZ O FAVOR DE NOS CONCEDER ESTA ENTREVISTA COM A PROVECTA IDADE DE 97 ANOS


Para recordar, aqui a publicamos mais uma vez, agora sem a dividir em excertos.

Esta conversa foi gravada e transcrita. Conforme combinado com o nosso entrevistado, foi-lhe enviada e colocada à sua disposição para que fizesse as alterações que assim entendesse. Assim foi. O que aqui apresentamos, está à sua maneira.


Entrevistador (Entrv.): “Quando olho para trás, a memória mais antiga que tenho é a de estar sentado numa pedra, no Bairro de Campolide, e haver, à minha frente, um charco e eu a pensar como é que se podia viver naquele meio, naquela pobreza. É a primeira e mais antiga recordação que tenho. Devia ter quatro ou cinco anos, por aí.”

Senhor Professor, é impressionante que, com tão tenra idade, se tenha apercebido das condições tão ingratas em que vivia e que tenha tomado consciência disso. Quer comentar?

Prof. Doutor Adriano Moreira (Prof. Doutor A.M.): Sabe que, a experiência é existência, e nós todos somos, como dizia o Ortega, históricos, fazemo-nos…, e a circunstância varia e nós enfrentamo-la e eu, de facto tinha… apesar de ter uma vida pobre, (nós éramos pobres), tinha conforto, que a maior parte dos garotos não tinha, e isto porque a minha mãe também era diferente…

Entrv.: A sua mãe era costureira…

Prof. Doutor A.M.: Era, mas o pai dela era uma pessoa muito informada. Vivia na aldeia de Grijó, mas tinha vivido no Brasil. Ela, por exemplo, sabia o João de Deus de cor, o Guerra Junqueiro de cor porque o pai a animava e portanto já tinha outra visão da vida e isso explica também como é que, com tantas dificuldades, já percebessem o que hoje se chama “elevador social” e que, (e eu acho isto heróico), os dois filhos tinham de tirar curso superior.

Entrv.: Naquele tempo… e dadas as circunstâncias…

Prof. Doutor A.M.: E conseguimos! A minha irmã já está com oitenta e tal anos. É médica e tem um doente com o qual ela se preocupa… É comigo! E lá aparece. E, portanto, eu via aquelas crianças que não tinham uma casa onde recebessem os cuidados que eu recebi. A diferença estava na minha formação. E foi por isso que percebi.

Entrv.: O avô do Senhor Professor foi uma referência no seu crescimento literário e social?

Prof. Doutor A.M.: Foi. Esse meu avô era extraordinário. Era o pai da minha mãe e tinha uma casa melhor do que a do meu avô paterno, que eu não conheci, e tinha uma pedra a servir de banco cá fora. Eu devo dizer que essa pedra está lá em Lisboa na minha casa porque a junta autónoma das estradas tirou a pedra para corrigir a rua e eu quis a pedra, e portanto está lá e tem em cima uma inscriçãozinha que diz: “Banco do avô Valentim”. Era onde ele lia o jornal. Ele tinha tomado, parte muito jovem, com 18 anos talvez, ou menos…, numa espécie de levantamento por causa de impostos teve de sair do país… e foi assim que ele foi para o Brasil - que era para onde iam os portugueses -, e lá esteve, uns dois anos, jovem. Não sei porquê, porque acontece em tantas ocasiões, não apenas às pessoas, mas também aos movimentos, adotam flores. Ele usava sempre um cravo e, quando não havia cravos, uma folha! Era assim! E, portanto, já tinha uns livros, alguns extraordinários: tinha um livro sobre Nietzsche, tinha um livro sobre a segurança internacional, etc.. Eu herdei esses livros num caixotinho que agora estão cá na biblioteca de Bragança. Eram um tesouro para ele.

Entrv.: Desculpe, mas esse caixotinho era toda a biblioteca, todo o espólio do avô do senhor Professor.

Prof. Doutor A.M.: Era.

Entrv.: Que ele guardava como verdadeiras relíquias…

Prof. Doutor A.M.: Era um tesouro para ele. Ora bem, e, portanto, a minha mãe foi educada por ele e, por isso, é que ela tinha aquela sensibilidade.

Entrev.: E por isso essa visão do mundo.

Prof. Doutor A.M.: E para além disso, ela era muito inteligente. Começou a fazer costura em Lisboa para ajudar a família. Para verem o que era a vida naquele tempo, quando eu me formei, fiz o estágio, e fui para o Ministério da Justiça onde consegui um lugar: ganhava três vezes mais do que o meu pai,

Entrev.: O seu pai era polícia…

Prof. Doutor A.M.: E morreu subchefe ajudante. Eu estive à despedida dele dos seus subordinados. Fez um tão bom discurso que eu pensei assim: “louvada faculdade!”

Entrv.: Só uma curiosidade, senhor Professor, se me permite…De entre o espólio literário do avô fazia parte Guerra Junqueiro…

Prof. Doutor A.M.: Fazia. O Guerra Junqueiro era muito popular. 

Entrv.: O avô era contemporâneo de Guerra Junqueiro. Ele faleceu em 1923 e o senhor Professor nasceu em 1922…

Prof. Doutor A.M.: Mas não diga!

Entrv.: Ah, essas coisas não se dizem!

Prof. Doutor A.M.: Depois eu ainda tive mais razões para me interessar por Guerra Junqueiro porque uma das pessoas que teve mais importância na minha formação e vida pública, foi o Almirante Sarmento Rodrigues que era casado com a descente do Guerra Junqueiro e foi ele que presidiou às cerimónias do centenário, - o que naquele tempo, naquele regime, era preciso ser transmontano porque ele era marinheiro e recebia ordens: mas, o Guerra Junqueiro era da família da sua mulher e fez uma bela celebração do Guerra Junqueiro. Portanto, foi assim neste ambiente familiar que cresci naquele bairro de Campolide… Naquele tempo Lisboa tinha muitos bairros, eu atualmente acho que só já há uma região que é bairro…o resto é Lisboa, mas ali era bairro e na esquina do beco, onde vivia, havia uma casa melhor, e uma senhora que tinha uma bibliotecazinha e era, salvo erro, tia de um dos marinheiros do barco que foi afundado na guerra de 14, comandado por Augusto de Castilho, que tem uma estátua em Vila Real, afundou-se salvando um barco português. E essa senhora, entre outras coisas, por exemplo, tinha a coleção do Júlio Verne! Umas encadernações fantásticas, ela emprestava-me cada volume… e eu tinha um cuidado enorme. Li a coleção toda.

Entrv.: Grande vizinha também lhe digo…

Prof. Doutor A.M.: Tinha outros livros que também me emprestava. E gostava muito de conversar com miúdos e criei lá alguns amigos para a vida… depois fiz a instrução primária num colégio que havia lá… não do Estado. Mas era aquilo tão pobre… eu ainda me recordo que custava por mês vinte escudos.

Entrv.: Era dinheiro…

Prof. Doutor A.M.: Era dinheiro naquele tempo…E a senhora tinha um filho doente epilético, mas era uma grande professora. Depois fui para o Passos Manuel e, agora, tenho de pensar o seguinte: quando eu fui para o Passos Manuel tinha 9 para 10 anos, fiz exame muito cedo, e tinha de ir de Campolide para o Passos Manuel a pé.

Entrv.: Mas não era de castigo?

Prof. Doutor A.M.: Não… não! Fazia ginástica, e acontecia que, quando voltava é que custava mais porque era sempre a subir! Lá fiz o curso ginasticado. Depois fui para a Faculdade de Direito que era no Campo de Santana. Não havia transporte, nem dinheiro para pagar, portanto passei cinco anos a pé, a ir e a vir. E era fácil aquilo. Nessa altura, comecei a pensar que tinha de apoiar a minha irmã que era mais nova… ela fez um bom curso. Depois, estes dois transmontanos, eu e ela, havíamos de nos ligar ao Ultramar porque ela foi médica para Lourenço Marques, casou com um oficial da Força Aérea, médico também, e depois tive de andar envolvido naquelas guerras, de maneira que somos africanos regressados.

Entrv.: Senhor Professor, usa muitas vezes a expressão, “a maneira portuguesa de estar no mundo”. De que forma é diferente da maneira transmontana de estar no mundo?

Prof. Doutor A.M.: Eu a transmontanos julgava que não tinha de explicar!...

Entrv.: Pedimos-lhe que nos explique… Nós queremos ouvi-lo e transcrever o que nos disser…

Prof. Doutor A.M.: Há uma coisa que eu acho importantíssima nos transmontanos. Primeiro, são solidários. Olhe, quando nós fomos viver para Lisboa, eu vinha passar as férias aqui com o meu avô, sempre. Naquele tempo eram três meses, e para chegar cá era duro. Apanhava-se um comboio aí pelas oito horas à noite e chegava-se à estação de Grijó no dia seguinte, por volta das sete e meia da tarde. Chegava a Grijó, que ainda era longe, a cavalo num burro que estava lá à minha espera e lá ia eu… E então ficava em Grijó e era felicíssimo aqueles três meses. Tinha um primo, o Alexandre, que era como se fosse meu irmão. Já morreu há bastantes anos. Era tão bom… conhecíamos tudo, andávamos por todos os lados. O meu avô tinha uma propriedadezinha para aí com um hectare, mas era à beira de um ribeiro e a gente ia lá, tomava banho no ribeiro, corria com as cobras d´água, enfim… era uma vida…

Entrv.: Esses três meses eram fundamentais para recuperar energias… e para recarregar baterias.

Prof. Doutor A.M.: Era! E depois ainda me lembro sempre de amigos do tempo do meu pai e que ali estavam reformados. Lembro-me, por exemplo, de um, o chamado Zé Fiscal porque ele tinha sido guarda-fiscal. Quando eu comecei a ser conhecido, ele cada coisa que via no jornal, cortava e trazia no bolso, e quando eu chegava mostrava-me. Um grande amigo. E havia outros… O Zé Peras, que trabalhava na agricultura da família dos Mirandas, e uma jovem, hoje senhora, que foi fazer um curso de enfermagem em Lisboa na escola Rockfeller, conviveu os três anos connosco, é uma amiga, sobretudo da minha irmã, porque é mesmo da idade dela. A querida Lucília.

Eu vou amanhã a Grijó a uma festa que eles me vão fazer. Mas há pouco tempo, foi no dia 6 de setembro, dia dos meus anos, imagine o que eles fizeram: com as técnicas atuais, arranjaram maneira de ligar uma emissão de imagem para a minha televisão, em Lisboa.

E eu em Lisboa, sentado numa cadeirinha, com os 14 netos à volta, (estão sempre),… vem aquilo de repente… a aldeia toda junta a cantar-me os parabéns e ela, Lucília, fez um poema… e leu o poema! Fantástico! Então, eu amanhã tenho que lá ir porque eu fiz também uma bibliotecazinha para eles, como pediram. E querem inaugurá-la. E querem que seja domingo porque os padres só estão livres no domingo àquela hora.

Aquela aldeia mereceu-me sempre grandes cuidados. Conforme fui podendo, por exemplo, conseguir por lá a eletricidade, que ia daqui das barragens… passava pela aldeia, e lá andavam de candeia. Consegui que pusessem lá a eletricidade. Também consegui o esgoto, uma segunda escola e o coreto da festa. De maneira que, o largo do coreto chama-se Adriano Moreira, a biblioteca chama-se Adriano Moreira.

Entrv.: É uma homenagem justa!

Prof. Doutor A.M.: Porque me inquietou, foi a falta de crianças…

Entrv.: Não há crianças, infelizmente. Em Trás-os-Montes é flagrante. 

Entrv.: E a capela da sua mãe? 

Prof. Doutor A.M.: Essa capela tem uma origem interessante. A santa protetora da nossa aldeia é Santa Madalena, mas a festa é ao Senhor do Calvário. E, portanto, a capela do Senhor do Calvário era fora da aldeia… agora já lá chega a aldeia. Era uma colina, tinha umas rochas e eu lembro-me que com o meu primo gostávamos de nos encavalitar nas rochas a ver o pôr-do-sol. Lembro-me disto… íamos para ali para o Santo Cristo… Depois houve, consta, um empreiteiro que precisou de amanhar a estrada e lembrou-se de, com dinamite, tirar as pedras e a capela ficou, claro, toda atingida. A minha mãe, que era muito crente, estava sempre muito aflita com a capela. Eu já era um bocadinho crescido quando isso aconteceu, já formado, era Ministro do Interior, um transmontano, o Dr. Trigo Negreiros, e era Ministro da Marinha outro transmontano, que era o almirante Sarmento Rodrigues. O Almirante Sarmento Rodrigues que, também era transmontano, eu já andava a dar aulas, mandou-me chamar e pediu-me para ir estudar o sistema prisional do Ultramar. Nesse tempo dedicava-me a isso: o direito prisional. E, então, corri as províncias todas de África, e sinto pena porque nunca tive a ocasião de ir a Timor. Fiz o livro. Desse livro saiu a reforma prisional Sarmento Rodrigues do Ultramar. Como eu tinha dito no estudo, a condenação à prisão é sempre destinada à reabilitação. Reabilitação, que tem sempre a tal circunstância, a cultura a que a pessoa pertence. E, portanto, não podemos ter as estruturas técnicas, que são europeias, para África. Defendi fazer um regime puramente de “colónias agrícolas”, prevendo até a reunião das famílias: os europeus, tão poucos, viriam para cá. Com o livro ganhei o prémio da Academia das Ciências. E esse prémio, na altura, era 80 contos.

Entrv.: Era significativo…sem dúvida…

Prof. Doutor A.M.: Para o meu pai era o ordenado de dois anos ou três. E, então, o que é que eu fiz? Peguei no dinheiro do prémio e dei-o à minha mãe: “Pode concertar a nossa capela!” Um amigo meu fez o projeto. Era o arquiteto Mário de Oliveira… morreu em Trás-os-Montes, em Vila Real porque, ele não era transmontano, mas veio para cá trabalhar.

Entrv.: E acabou por ficar…

Prof. Doutor A.M.: Portanto fizeram a Capela, ficou linda e ele fez o projeto, não levou dinheiro, mas faltava a estrada! Fui ao Dr. Trigo Negreiros, transmontano, e contei-lhe da Capela: “Isto está feito. Está uma beleza, mas depois há a procissão todos os anos, e as mulheres vão ajoelhar-se, e a estrada é uma coisa difícil e penosa”, - “Está bem, e então o que é que quer?”, - “Quero que o senhor faça a estrada!” E fez!

De maneira que a Capela tem um grande culto. A última vez que eu lá fui eles mandaram dizer a missa na capela. E amanhã vou lá. Infelizmente com esta crise em que o país está, consegui a segunda escola e estão as duas fechadas. As duas. O presidente da junta vive na aldeia, uma família média, transformou o edifício da primeira escola em biblioteca Adriano Moreia e depois achou natural: “Agora, mande os livros!”

E eu tenho mandado bastantes, com uma certa cautela por ser uma aldeia, e a minha irmã Olívia, sábia, disse-me com o seu ar de médica, “Vê lá se mandas livros que eles leiam!”

Entrv.: Pois, com certeza! O senhor Professor é um transmontano radical?

Prof. Doutor A.M.: Sou!

Entrv.: E o que é ser um transmontano radical?

Prof. Doutor A.M.: Sabe uma coisa? Isso foi muito benéfico porque escusava de ser radical no resto!

Entrv.: Só pelo facto de ser transmontano já era radical! Muito bem!

Prof. Doutor A.M.: Era! Ora bem, isto vinha a propósito, portanto, por que é que eu cheguei… à expressão “maneira portuguesa de estar no mundo” que, aliás, foi utilizada pelo nosso presidente do júri, Prof. Braga da Cruz, no último livro que publicou, onde faz um retrato do país através de correspondências ou ensaios de pessoas vivas! Portanto, são aí umas quarenta. Tem o livro dele?

Entrv.: Não! Ainda não o adquiri!

Prof. Doutor A.M.: Mas é um livro extraordinário e também lá fala de mim! E diz assim, mais ou menos: “caracterizo os esforços da vida dele, com este problema: a maneira portuguesa de estar no mundo…”

Entrv.: Como é que o senhor Professor encara a posição de Portugal no mundo, hoje em dia?

Prof. Doutor A.M.: Com muita preocupação porque, não sei se isto é fácil de explicar para o público, mas é mais ou menos isto que eu lhes vou dizer…e compreendam que com a II Guerra Mundial, Portugal não entrou por querer na II guerra Mundial… e aquilo que anda escrito, em regra… e que procura talvez salvar a face do país… não começa dessa maneira… foi o Ultimato dos Estados Unidos – precisavam do Arquipélago dos Açores, porque, naquele tempo, os aviões não tinham capacidade para atravessar o Atlântico com gasolina e, então, tinham de fazer uma aterragem, e o Presidente do Conselho, o Doutor Salazar, conseguiu uma coisa extraordinária: os Açores e Portugal, claro, entravam como associados à defesa ocidental e na guerra, o resto dos territórios eram neutrais! Eu ainda me lembro (era estudante durante a guerra) e nós andávamos sempre aflitos a ver se os alemães vinham por aí fora. Eles chegaram a estar nos Pirenéus.

Bom, ele acabou até o discurso, dizendo mais ou menos o seguinte, na Assembleia da República, “Os juristas vão ter muita dificuldade em explicar isto. Mas é assim.” Quem cobriu essa imposição com palavras mais respeitosas foi a Inglaterra, dizendo – “Invocamos a Aliança”. Só que se esqueceram de uma coisa: é que no tal território que não entrava na guerra, ficava Timor. Foi invadido pelos japoneses e eles mataram, fizeram quase uma destruição da população. Eles ainda haviam de sofrer outro grave abuso, mas, nesse tempo, foi um desastre. Eu ainda me lembro do primeiro-oficial português governador, que depois da paz entrou em Timor. Quando chegou ele tinha uma guarda de honra à espera, gente toda esfarrapada, mas com a bandeira. Tinham-na enterrado para os japoneses não poderem destruí-la. Era uma gente muito fiel a Portugal. Ainda este ano tive… já foi o ano passado… isto passa a correr… eu nunca fui a Timor e não conheço o Presidente da República atual que já é o terceiro. Ele mandou-me o convite para eu ir a Timor. Eu disse-lhe: “Não vou porque o médico não deixa. Ele proíbe-me de andar de avião”. Eu tive um acidente nos pulmões, uma infeção e ele respondeu: “Traga uma enfermeira!”. E eu respondi: “O médico não está preocupado com a enfermeira. O médico está preocupado comigo!”

Sabe o que ele fez? Veio cá o primeiro presidente de Timor para me entregar uma condecoração. A condecoração chama-se “Condecoração de Timor: “Pelos serviços prestados a Timor (porque eu defendi-os muito nas Nações Unidas preocupei-me com os que estiveram refugiados em Lisboa e que sofreram imenso, sobretudo as mulheres que são sempre vítimas) aos Direitos do Homem e à Humanidade.”

Eu tenho um neto com quatro anos, bastante doente, que tem o meu nome, e eu disse: “Eles enganaram-se! É para o Adrianinho!” E dei-lha, para se lembrar de mim quando crescer

Entrv.: Senhor professor, creio que vem a propósito eu utilizar uma expressão, uma frase também do senhor Professor que diz, “Nós tivemos um grande talento para criar impérios…Nós gostaríamos de ouvir o comentário do senhor Professor.

Prof. Doutor A.M.: A questão é esta: vamos sempre à circunstância. Ainda este ano foram publicadas traduções de duas histórias de Portugal feitas por saxónicos. Eu achei interessante. Li as duas. São muito justos. E ambos concordam em dizer que é um milagre: como é que o mais pequeno país europeu fez um império?! Ora bem, eu digo: a circunstância.

Tenho uma grande admiração por D. Dinis porque o que é que ele fez? Primeiro, fez a Marinha. O primeiro almirante português, creio que foi há dois anos que se celebraram os 700 anos da nomeação. E o D. Dinis fez isto porquê? Não foi por causa da religião católica. Foi porque os piratas atacavam a navegação e ele tinha de organizar a defesa. Fez o pinhal de Leiria para poder fazer os barcos, as pessoas que tratassem disto tinham de saber – fez a Universidade; conseguiu a absolvição dos Templários, e criou com eles a Ordem de Cristo, salvando assim o património. E o que é que aconteceu? Um professor inglês do século XIX disse uma coisa muito sábia: em geral, não é a nação que faz o estado, é o estado que faz a nação. E de facto, o efeito geral de estas três coisas, acho eu… atribuo a isto… ele não pensou, mas com tudo junto acontece que havia nação em 1385 porque a nação é que escolheu o rei. E já não é de herança! É aclamação. Depois vamos perdendo essa noção mas o rei de Portugal tinha de ser sempre aclamado pelas cortes. E foi D. Dinis! E foi isto que deu essa audácia, com a sorte que tivemos com a geração do Infante D. Henrique… é um grupo espantoso que admiramos: que saber… como é que eles tiveram aquela coragem?

Hoje, como sabem, cresce uma crítica salientando a escravatura, o resto é o milagre que historiadores estrangeiros sublinham.

Entrv.: Se compararmos com as outras escravaturas, a nossa não era das mais pesadas.

Prof. Doutor A.M.: Nunca é leve, mas aqui há dois anos saiu um livro importante que interessa às universidades. Imagine que foi uma universidade da América latina que organizou um livro sobre a paz ibérica. É o ensino de Coimbra, de Évora, de Espanha, (Salamanca), e você admira-se com gente que está no século XVI a discutir se os reis têm legitimidade para tomar conta do território de gente que já lá está, se o Papa tem realmente poder para fazer essas coisas, se a escravatura é legítima, etc.

Isto é o património imaterial da humanidade… nasceu cá uma grande parte. Foi uma grande parte: Coimbra e Évora, depois os professores que nós tivemos e os missionários, para mim o padre mais importante é o Padre António Vieira

Entrv.: O Padre António Vieira?

Prof. Doutor A.M.: António Vieira! Morreu no Brasil, velho, chegara a ser preso pela Inquisição, mas depois o Papa deu-lhe imunidade. E ele já estava velho, talvez tivesse noventa anos, mas continuou a escrever e avaliar o que se estava a passar.

Ora bem, Portugal com isto (por isso é que eu comecei por dizer – Portugal, como os outros países, está sempre ligado às circunstâncias)… as circunstâncias evoluíram muito porque apareceram as novas potências como agora estão a aparecer os emergentes. Como sabe o mundo começou a ser ocidentalizado, mas não éramos só nós, eram todos os outros que apareceram com interesses próprios. É uma mudança muito firme passar de sozinhos e Espanha para muitos. A balança do poder começa a ser diferente e por isso nós tivemos períodos de decadências como foi as duas coroas, de Portugal e de Espanha, etc. Ora, para não ser muito comprido… vamos ver o que aconteceu durante a minha vida. O que aconteceu foi em 1.º lugar a guerra – uma coisa espantosa. Quando se fez a paz em 1918, antes de eu nascer, o general alemão que assinou a paz disse – isto não é paz, é armistício por vinte anos. Foi dia por dia. Veja bem. II Guerra Mundial. Nós passámos aqueles problemas, não é verdade? E depois disso, a mudança da atitude dos europeus foi de aceitar que estava a desaparecer aquilo que lhe atribuíam: ser “a luz do mundo”. Que deixou de ser, aos poucos. E, Portugal começou, talvez a se compreender na II Guerra Mundial, que em vez de dominar a circunstância, a circunstância começava a dominar. E por isso a minha conclusão neste momento (eu escusava de ter sido tão comprido) é que o país - arranjei uma palavra feia porque a situação é feia -, é exógeno, quer dizer, é objeto das consequências de decisões em que não toma parte.

Entrv.: Eu costumo dizer que nós somos as nossas circunstâncias! 

Prof. Doutor A.M.: É a relação com a circunstância. Eu lembro quando foi do primeiro grande golpe que foi as duas coroas, o nosso Frei Bartolomeu dos Mártires, que agora é santo… eu acho que ele fez uma coisa um bocadinho criticável, achando legítimo que viesse o rei de Espanha. Ora bem, mas outro bispo percebeu a circunstância: não estava de acordo, mas quando lhe perguntaram, o que respondeu foi – “Ao presente não lhe vejo mais remédio.” Quem diz isto não está de acordo.

Entrv.: Sei que ontem foi um dia muito cansativo…

Prof. Doutor A.M.: Foi, mas dormi bem. Mas eu queria dizer outro aspeto em que o país caiu que eu chamo “exíguo”, porquê? Porque não tem recursos suficientes, há tempos, para o que tem de fazer. As duas coisas… aconteceu-nos e não gosto, mas em todo o caso há uma coisa que é a dignidade. E isto já deve ser da idade… Quando via vir os homens da TROIKA explicar regras aos nossos ministros, eu perguntava-me: “então nós não temos empregados para falar com empregados?

EntrV: Justamente. É verdade.

Prof. Doutor A.M.: Eu sentia-me humilhado como transmontano e português.

Entrv.: Somos transmontanos. Eu sou da região de Vinhais e o meu marido nasceu na cidade de Bragança. Então somos mesmo! Embora eu tenha vivido no Brasil. Fui para lá pequenina e estive em São Paulo durante muitos anos até voltar para cá, mas somos e sinto-o porque os nossos pais sempre nos incutiram o trasmontanismo.

Prof. Doutor A.M.: Veio-me à ideia porque foi a pergunta que me fez. É que quando fiz estudos em Lisboa, como lhe disse, os meus amigos e do meu pai eram os transmontanos. Era gente muito modesta, mas amigos e solidários e vi isso, por exemplo, na guerra de Angola. Eu cheguei a Angola, não havia segurança. Não havia, ainda. O meu pai tinha acabado de se reformar e disse-me: “Sem segurança não vais, vou eu”. Foi comigo.

Entrv.: Sim, sim eu li alguns livros…

Prof. Doutor A.M.: Viu nas fotografias? Estava sempre no meio. Era um perigo. Mas é o pai transmontano! Em toda a parte que eu chegava e onde houvesse transmontanos eu estava protegido. Eles cercavam-me… estavam sempre, sempre. Quer dizer, é uma comunidade que onde estiver é transmontana.

Entrv.: É verdade, e eu senti isso no Brasil e senti mesmo muito em S. Paulo.

Prof. Doutor A.M.: É por isso que eu digo que os transmontanos têm uma maneira de ser de solidariedade que os identifica.

Entrv.: Sem dúvida que sim. Os descobrimentos portugueses deram novos mundos ao Mundo. Acha plausível que, Cristóvão de Mendonça, navegador português, tenha chegado à Austrália em 1522, 250 anos antes da chegada do Capitão James Cook, conforme teoria defendida por Peter Tricket no seu livro “Para além do capricórnio”? A ser verdade, a que se terá devido o secretismo dessa descoberta?

Prof. Doutor A.M.: Eu conheço essa questão e a questão é de facto de resposta duvidosa, as provas são duvidosas…

Entrv.: São circunstanciais…

Prof. Doutor A.M.: São duvidosas. Não ficou nada registado. Eu tenho uma neta, a Moniquinha, que foi fazer aquele programa, o Erasmus, para a Austrália. Agora vai ver do que lhe lembrou. Tinha uma amiga, alugaram um automóvel e deram a volta à ilha toda. Chamei-lhes malucas porque foi um perigo, mas disse-lhe: “Olha quem descobriu a Austrália foste tu”.

Entrv.: É verdade! Senhor professor, palavras suas: “Estes políticos afirmam que só há uma via! E, sobre isso, eu digo: “Nunca há apenas uma via única”.” E os partidos políticos em Portugal e no Mundo, Senhor Professor, que futuro?

Prof. Doutor A.M.: A ideia de “partido” ainda no século XVIII era discutida, porque, sobretudo ingleses, achavam contrária à ideia de comunicado. Há vários autores dessa época… A minha memória agora não me ajuda, mas quando vi esta multiplicação dos partidos, para as eleições europeias, lembrei-me que tinham razão aqueles velhotes. O que é que eles diziam: partido era facção. E isso era contrário à ideia de comunidade, portanto não queriam a palavra partido, mas depois, com o tempo, a palavra partido deixa de ser a tal facção quando o conceito estratégico é comum e o que discutimos é o que é melhor. A circunstância mudou. As grandes potências emergentes em competição. A definição interna dos partidos tem de se moldar para responder à nova circunstância. A última eleição para o Parlamento Europeu em França, teve 30 partidos, e veja agora a última eleição em Portugal mostrou novidades no sentido de se pôr de acordo com as novas circunstâncias.

Entrv.: Aprendeu com a sua mãe que “Deus é companheiro”. O que pensa do Papa Francisco e do futuro do Catolicismo?

Prof. Doutor A.M.: Eu sou adepto do Papa Francisco e também reparo… ainda ontem na conversa com os nossos amigos lembrei-me disso: o mundo está muito dividido… riscos vermelhos… agora é moda, mas se reparar, depois da Fundação das Nações Unidas, o único líder religioso que foi chamado, foi o Bispo de Roma – Papa dos Católicos. Primeiro foi Paulo VI. Deixou aquela célebre mensagem: que o “crescimento da economia é o novo nome da Paz”. Depois foi João Paulo II, duas vezes: a igualdade dos povos – era o seu próprio país dominado pelos russos; depois foi o Papa Emérito que é o grande mestre, professor Bento XVI pregando – aquilo que dizem é o que devem fazer. E o Papa Francisco já foi chamado duas vezes. Ora bem, simplesmente a campanha contra a Igreja Católica neste momento é brutal. Tem pecados, mas quando há pecados tem de se arrepender, condenar, absolver, etc. Na nossa fé: perdoar. Mas como a circunstância, neste momento, é o Terceiro Mundo contra os ocidentais: e quem foi que abençoou a ocidentalização? É a razão em que ninguém fala. A luta contra os ocidentais inclui a Igreja. E os católicos estão a fazer demonstração de perplexidade e dificuldades com esta história da Amazónia. 

Não sei se viu, o Papa convocou os Bispos, porque o Brasil não é único dono da Amazónia. Há uns cinco ou seis e o Papa chamou os Bispos e fez-lhes um questionário para ver como é que vai ajudar os nativos. E até entre as perguntas perguntava se deviam admitir homens casados. E eu percebi, porque me lembrei da história da lepra, porque quando apareceu a lepra no século passado foi grave. Organizaram uma ilha no Golfo do México, que era francesa, só para os leprosos e há um frade que se oferece. Mas há uma carta dele – isto está num livro do médico que foi um bom escritor também, português, Dr. Almerindo Lessa. O frade, com trinta anos, escreveu para a Ordem: “Irmãos, eu sou jovem, tenho tentações, perdão, rezem por mim”. Veja bem. O Papa sabe isto. E alguns vieram acusá-lo até de herege. E a estupidez, ainda por cima, é que pela lei que ele está a utilizar, os Bispos não podem decidir nada. Ele fez as perguntas. Ele tomará a decisão. Mas as perguntas, dizem alguns que são de herege. Até aquele cardeal que está na cadeia, na Austrália, naquele conforto da cadeia, dá-lhe tempo para divagar, chegou à conclusão de que é herege. Ora, tudo isto é para lhe dizer: a circunstância é muito dura, é muito problema sem experiência. Há Globo, mas não há governo do Globo.

E, depois, também aquelas vozes encantatórias que, no fim da guerra, fizeram a Paz europeia, eram todos da Democracia Cristã: da França, da Alemanha, da Itália. A democracia Cristã está de rastos. Praticamente só está em Portugal, e só elegeu cinco deputados. E a senhora Merkel está ligada, mas está a descer de poder, e esta coisa de ocidentalizar o mundo é agora uma atacada aventura. Ora bem, nós tratemos mais da situação de Portugal. Não há segurança do Atlântico sem Portugal; não há luta contra a criminalidade marítima sem Portugal, mas é a situação que o envolve e, mais uma vez, a minha convicção: os portugueses têm conseguido lugares da vida internacional que não estão de acordo com os 92 mil quilómetros em decadência. Tivemos a Presidência do Conselho de Segurança, da Assembleia Geral da ONU, tivemos a Presidência dos Emigrantes – estão lá representantes muito inteligentes. De onde é que vem este prestígio? Repare que não há missão militar portuguesa, que não termine sem receber elogios… a capacidade da Instituição Militar projeta-se na importância do país que não tem a força, tem a posição e a inteligência e é por isso que a nossa diplomacia tem de ser muito boa e é muito boa, muito competente! Mas já fui bastante claro sobre a nossa fragilidade, neste momento.

Entrev. Não, não é. O senhor professor é um sábio. Há pouquíssimos homens como o senhor professor. Sinceramente, acho que já não há.

Prof. Doutor A.M.: Então estão a acabar. Com os anos que eu tenho…

Entrev. O Museu da Língua Portuguesa é um projeto muito interessante e poderá ser uma mais-valia a nível nacional e internacional no que à lusofonia diz respeito. Gostaríamos de conhecer a opinião do Senhor Professor sobre este assunto.

Prof. Doutor A.M.: Olhe, eu defendi muito essa ideia antes de ser posta em prática. Até reuni dois congressos das comunidades portuguesas no estrangeiro… uma foi cá em Portugal com iniciativa da Sociedade de Geografia, e Coimbra e Braga. Criei a União das Comunidades Portuguesas no Estrangeiro. Um foi cá em Portugal. Houve sessões excelentes. E agora há o grande problema da língua. Veja a guerra civil que há aí por causa do acordo? Eu sou contra o acordo, mas cumpro-o. Mas sabe porquê? Eu era Presidente da Academia das Ciências, tinha que obedecer à lei. Mas protestei, porque “a língua não é nossa, também é nossa”.

Entrev.: Eu também. Eu sou professora e tenho que ensinar a norma.

Prof. Doutor A.M.: E eu representante da Academia, responsável, não me dá jeito escrever de duas maneiras. De qualquer modo, fiz um discurso muito firme. Penso muito seguro. Eu disse o seguinte: A língua não é nossa. A língua, também é nossa. Porquê? A língua, consoante o lugar onde é implantada, mistura-se com valores locais. E até tem como que regras. Quando há escravatura, por exemplo, as vogais abrem-se para que o escravo perceba. Mas se ele deturpar, o patrão, como o primeiro objetivo é ser obedecido, adota a deturpação. Depois as comunidades não contactam com a mesma realidade. O Brasil tem valores italianos, valores alemães, valores japoneses… e nós não temos. Quando chegarmos ao Oriente, é a mesma conversa, mas a língua não é nossa. A língua também é nossa. Nós transmontanos, temos palavras que os outros não sabem. De maneira que eu encontrei esta regra que me parece verdadeira. A língua não é nossa, também é nossa.

Entrev.: É verdade. Também é nossa. 

Prof. Doutor A.M.: Chamei a atenção, chamei ontem… não percebo esta guerra civil da língua: quando olhamos para o site das Nações Unidas, estão lá oito línguas só. Está lá a nossa.

Entrev.: É a quinta língua mais falada do mundo. Não é qualquer coisa. É uma grande coisa.

Prof. Doutor A.M.: E mesmo para a literatura… Sabe qual foi a grande invenção do inglês para se expandir? O inglês básico. E o criador do livrinho, um professor, disse: “Isto é que vai conquistar o mundo.”

Entrev.: E conquistou. É isso. Senhor Professor, já estamos quase a acabar e eu não quero cansá-lo mais. Que leitura faz da região de Trás-os-Montes de hoje?

Prof. Doutor A.M.: Bom, eu não tenho hoje a mesma intimidade. Porque já venho menos vezes, já não tenho parentes na aldeia. Não há crianças. Mas eu mantenho este sentimento… No sítio onde nós vivíamos não havia igreja, lá em Lisboa. …  havia muitas, mas longe. E dinheiro, para o transporte e tempo livre não havia. Portanto a minha mestra foi a minha mãe. E até morreu um amigo meu, franciscano, muito sábio, era da Academia das Ciências, e acaba o livro, o último que escreveu, com estas palavras: “Deus existe.” E eu: “A minha mãe já me tinha dito.” E, portanto, a crise desafiante da Igreja é geral, e a resposta não está a ser uniforme. Está a pagar glórias, está a pagar porque foi uma responsável pela ocidentalização do mundo. Mas aquela história que eu contei… não contei… Recordo-me do sueco Dag Hammarskjöld, Secretário Geral das Nações Unidas, sendo eu um dos representantes de Portugal… Nós éramos muito novos, os delegados. Íamos para a pândega no fim-de-semana: qualquer hora que chegássemos, (estávamos num hotel muito pobre de africanos, porque naquele tempo o estado não era rico nas ajudas de custo), a janela dele estava iluminada. Estava a trabalhar. Tínhamos tal admiração por ele, que eu a primeira vez que fui à Suécia, fui ao cemitério para REVERENCIAR  a sepultura dele. Fez na ONU uma salinha, do tamanho deste espaço onde estamos, com bancos de madeira e um altar de mármore ao meio, e uma luz que vinha do alto sobre a pedra, impressionante! “Sala de meditação de todas as religiões.” Ele percebeu que tinham que se por de acordo. Veja bem! Ele foi assassinado, no Congo. A mim dizem-me, não, não está provado. Eu digo, pois não. Deitaram-lhe só o avião abaixo. Bom. Morreu muito novo. Eu tinha esta admiração que disse. Já agora, conto uma pequena anedota: eu cheguei a ser presidente de uma coisa que se chamava Centro Europeu de Informação e Documentação. Foi fundado pelo Arquiduque de Habsburgo, de quem eu fui muito amigo. Tínhamos delegação em catorze países e ainda cheguei a ser o Presidente. Uma vez tivemos uma reunião na Suécia. Ficámos num Château e no domingo de manhã foram bater aos quartos “Há missa na sala de jantar.” Porque o arquiduque tinha o privilégio de lhe dizerem a missa onde estivesse. E ele tinha um altar portátil. Portanto, levava-o com ele. Onde chegasse, instalavam-no e diziam a missa. Quem disse a missa foi um alemão. Ninguém sabia alemão senão os alemães e depois estava o padre Aguiar que era o nosso e lá traduzia as coisas como podia. A certa altura, desata tudo à gargalhada na missa que estaria no fim. “Ó padre Aguiar, o que é isto?” É que o padre, como era a primeira missa que se dizia na Suécia desde o tempo do Lutero, achou que devia haver uma música. Então encontrou uma senhora de idade que tocaria a música. Sabe o que era? O hino do Lutero, na primeira missa católica desde a reforma.

Entrev.: (Risos) O hino do Lutero! Ora, então, realmente. Que engraçado.

Prof. Doutor A.M.: (Risos) É uma coincidência. O hino do Lutero. Era o que ela sabia tocar. É interessante. Há um padre chamado Kung, alemão. Conhece o nome? Tem uma fundação e teve umas questões com o Papa Emérito. Era amigo dele, mas proibiu-o de dar aulas. A pregação dele no mundo, é que as religiões se entendam.

Entrev.: Era bom era!

Prof. Doutor A.M.: Olhe, ainda outro dia, há pouco tempo, li um livro do líder do Tibete. Como é que ele se chama?

Entrev.: O Dalai Lama.

Prof. Doutor A.M.: Apresentei o Dalai Lama na Universidade de Lisboa há mais de 30 anos. Apresentei-o, veio cá. É impressionante o seu recente livrinho. Ele diz, “Eu fui invadido, destruíram o meu país, mataram muita gente, estou exilado há 50 anos, e não tenho ódio a ninguém. Acho que a paz é fundamental. E o Papa Francisco tem razão.” É impressionante, é animador para o Papa que tem pouca saúde.

Entrev.: Tem uma saúde muito frágil.

Prof. Doutor A.M.: Falta-lhe um pulmão. E já caiu duas vezes. Mau sinal. Há um problema com ele que eu acho que esta gente não avalia; dos cardeais, bispos vivos, é o que sabe mais da América Latina.

Entrev.: – Sem dúvida nenhuma!

Prof. Doutor A.M.: E, portanto, ele sabe o drama da América Latina. Eu escrevi um artigo que vai sair no Diário de Notícias. Eu ando um bocadinho preocupado com essa gente. E acabei o artigo assim: “O problema não é a soberania do Brasil, que não é o único soberano; o problema, quando se diz a importância da Amazónia, é o valor para o Globo.

Entrev.: Ai, sem dúvida nenhuma!

Prof. Doutor A.M.: Esse valor está antes. Com esta conversa que estão a ter em relação aos nativos e que implica com o inquérito do Papa. Lembrei-me, por umas passagens, do livro sobre a democracia na América”, que é um livro muito célebre de Toqueville, em que se conta o encontro dos Iroqueses com o Presidente dos Estados Unidos. Vale a pena ler isto, porque disseram o seguinte: “Quando os senhores chegaram aqui, vinham carentes. Recebemo-los ajudando-os. Os senhores destruíram o nosso território. Éramos os componentes da nação mais importante. Estamos aqui os últimos da nossa raça. Vimos-lhe perguntar se temos de morrer.” Eu concluo: “Vejam se evitam uma repetição deste acontecimento com esta história da Amazónia.”

Entrev.: Esperemos que sim.

Prof. Doutor A-M.: Eu acho que é comparável.

Entrev.: É comparável sem dúvida. Olhe, Senhor Professor, para concluirmos isto, porque eu vejo que já está muito cansado, … o que pergunta o meu marido é se o senhor professor não se importaria que a sua obra toda, a sua biblioteca toda, fosse colocada online, em suporte digital?

Prof. Doutor A.M.: Isso tem de perguntar. Eu, por mim, não me importo. Tem que perguntar ao nosso Presidente da Câmara. Ela está para vir, o resto. Isto aqui é uma parte.

Entrev.: Eu sei, eu sei.

Prof. Doutor A.M.: Já viu, não viu?

Entrev.: Sim, já vi e sou frequentadora da sua biblioteca.

Prof. Doutor A.M.: Eu, uma das coisas que digo à minha mulher, é isto: “A ti, depois de eu morrer, vai-te custar, porque a casa, sem os livros, vai ficar vazia. Eu Graças a Deus tenho uma casa grande. E fui favorecido por Deus, que eu nunca tive grandes empregos, mas tinha a educação transmontana. Nada de inutilidades, etc. E a minha casa é muito acolhedora. Eu vivo ali há 50 e tal anos, veja bem. Mas é um tempo em que o Restelo chamava-se o Bairro das mulheres arrependidas. Sabe porquê? Acabou o açúcar. Onde é que se compra açúcar? Não havia um sítio onde comprar. Agora não, agora há tudo. Bom, a casa é a mesma. Vá lá e cabem lá os catorze netos. De vez em quando juntam-se todos lá. E estou a reparar numa coisa. Os que andam na universidade vão para lá estudar.

Entrev.: Ora vê! Risos de ambos.

Prof. Doutor A.M.: É uma coisa engraçadíssima!

Entrev.: É porque sabem que têm um avô e uma avó que os podem receber e sabem que podem contar com eles. Senhor professor o prémio da lusofonia?

Prof. Doutor A.M.: Disse ontem. Disse ontem. Se não fosse o meu pai, não estava ali. Enfim, se não fossem o meu pai e a minha mãe, não estava ali. Estou sempre a lembrar isso.

Entrev.: E o prémio devia ter o nome do seu pai…

Prof. Doutor A. M.: E até aqui há tempos, já há muito tempo, mais de um ano, talvez quase dois, o Comandante Geral da Polícia, penso que agora não tem esse título, mas equivale a general, aconteceu eu falar com ele num almoço em que fiquei ao seu lado. Ele disse-me assim: “Olhe uma coisa senhor professor, o seu pai não foi ajudante do Ferreira do Amaral?” Eu disse: “Foi”. Ainda conheci o Ferreira do Amaral, porque eu era pequenino, mas o meu pai achou que eu devia ir ver o seu comandante. E gostava tanto dele, que o meu pai, já com 80 anos, naquele tempo, era um tempo em que estava em Grijó e ia a Lisboa de propósito à missa anual pelo seu comandante. Veja bem. Ele foi vítima num atentado. Iam-no matado a tiro e safou-se. E diz-me o comandante: “O senhor podia dar-me um retrato do seu pai?” “Com certeza! Até lho posso dar já que tenho na carteira.” “Não, eu quero um mais apropriado, para pôr ao pé do “Ferreira do Amaral”.

Entrev.: Muito bem. Que maravilha! Obrigada, Senhor Professor. Foi um enorme prazer e uma grande honra ter-nos concedido esta entrevista. Não temos palavras para agradecer a sua disponibilidade e amabilidade. Pedimos desculpa por se ter tornado tão longa. Bem-haja. 


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