segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

D. FERNANDO I, SEGUNDO DUQUE DE BRAGANÇA

 Fora a carta de foro dada no arraial de Ceuta, em 20 de Fevereiro de 1464, era de Cristo; Pero de Alcáçova, que a escrevera, entregou cópia a um parente meu, Afonso Roiz, ou Rodrigues, e, a rogo do duque, recado para vir mostrá-la em pessoa, obrando aquela fala breve.
A história dirá quem era esse Afonso Rodrigues, e antepassados. Quem sou eu, do mesmo nome, cujos últimos dias talvez venham escondidos num fio da sua meada.
Foi há 550 anos; não imaginava que, na indefinição de criança em calções, sandálias lestas, o passado viria acariciar-me, exigindo este discurso.

Saudava, agradecido, D. Fernando I, segundo duque de Bragança, na estátua de bronze, sobre três blocos rectangulares de granito em assento leve, rodeada de folhame. Em cota leve, flectia ligeiramente a perna direita, espada embainhada e oblíqua, fincada, rígida, à esquerda, com determinação; e, entreaberta na mão direita, a carta foraleira, que oferecia, confiado, à cidade. Miudamente, observava as cotoveleiras, joelheiras, o cabelo grisalho caindo sobre as orelhas, e franjado na testa, com duas rugas verticais, fundas. A comissura dos lábios era grave. O neto de D. João I, rei ínclito que renovara o castelo – filho do primogénito D. Afonso, primeiro duque de Bragança −, mostrava-se firme, teso como a dignidade.
Eu assistira à inauguração, em 1964, ganapo ainda, enroscado nos pilares de ferro em que assentava um dos cinco candeeiros. Tinha oito anos, nada sabia de nós. Lembro-me da formatura de senhores, que escureciam o dia, e, talvez por isso, menina vestida de branco, um loiro anelado, da minha idade, sobressaía na manhã fresca, oferecendo salva de prata.
Agora, vinha aqui todos os dias, a casa dos avós, cada vez mais tristes, por mim, sentia. Antes, repousava no rectângulo de pedra frente à estátua, que dois bancos em voo semicircular enquadravam. Alternava verde; à direita, a pousada de São Bartolomeu, onde sonhava descansar, um dia; em fundo, o ronronar do Rio Fervença, sucedendo galos, cães, poalha de vozes… Nas tardes de sol, árvores e duque estampavam-se na tela muralhada.
Ao tempo, D. Fernando I e eu ouvíramos outros discursos embalados em patriotismo – civis, militares, religiosos; exaltados telegramas de cumprimentos e saudações, martelados de stop, à imagem de um país sem iniciativa.

Ernesto Rodrigues, «A Casa de Bragança», Lisboa, Âncora Editora, 2013
 

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