Esta entrevista foi realizada no dia 19 de outubro de 2019, em Bragança, na Pousada de São Bartolomeu.
Tivemos, para esta entrevista, o apoio da Câmara Municipal de Bragança na pessoa da Senhora Vereadora da Cultura, Dra Fernanda Silva a quem agradecemos a disponibilidade, gentileza e paciência. Obrigada Fernanda.
Agradecemos, também, à Prof. Doutora Lídia Machado dos Santos, que faz o favor de ser nossa amiga, a colaboração e o empenho que imprimiu a este projeto. Obrigada Lídia.
Falta-nos agradecer, de coração, ao Senhor Professor Adriano Moreira por nos ter concedido esta maravilhosa entrevista e à sua dignissíma esposa, Dra Mónica, pela paciência que teve em nos aturar, pois ultrapassámos bastante o tempo prevista para a realização da entrevista.
Convém acrescentar que o Senhor Professor Adriano Moreira é uma personalidade única, com uma lucidez impressionante, uma inteligência viva, uma cultura abismal e um sentido de humor inteligente e muito jovem. Foi um enorme prazer termos passado por esta experiência.
Bem haja Senhor Professor.
Esta conversa foi gravada e transcrita. Conforme combinado com o nosso entrevistado, foi-lhe enviada e colocada à sua disposição para que fizesse as alterações que assim entendesse. Assim foi. O que aqui apresentamos, está à sua maneira.
Entrevistadoras
(Entrv.): “Quando
olho para trás, a memória mais antiga que tenho é a de estar sentado numa
pedra, no Bairro de Campolide, e haver, à minha frente, um charco e eu a pensar
como é que se podia viver naquele meio, naquela pobreza. É a primeira e mais
antiga recordação que tenho. Devia ter quatro ou cinco anos, por aí.”
Senhor
Professor, é impressionante que, com tão tenra idade, se tenha apercebido das
condições tão ingratas em que vivia e que tenha tomado consciência disso. Quer
comentar?
Prof. Doutor
Adriano Moreira (Prof. Doutor A.M.):
Sabe que, a experiência é existência, e nós todos somos, como dizia o Ortega,
históricos, fazemo-nos…, e a circunstância varia e nós enfrentamo-la e eu, de
facto tinha… apesar de ter uma vida pobre, (nós éramos pobres), tinha conforto,
que a maior parte dos garotos não tinha, e isto porque a minha mãe também era
diferente…
Entrv.:
A sua mãe era costureira…
Prof. Doutor A.M.: Era, mas o pai dela era uma pessoa muito informada. Vivia na aldeia de Grijó,
mas tinha vivido no Brasil. Ela, por exemplo, sabia o João de Deus de cor, o
Guerra Junqueiro de cor porque o pai a animava e portanto já tinha outra visão da
vida e isso explica também como é que, com tantas dificuldades, já percebessem
o que hoje se chama “elevador social” e que, (e eu acho isto heróico), os dois
filhos tinham de tirar curso superior
Entrv.:
Naquele tempo… e dadas as circunstâncias…
Prof. Doutor A.M.:
E conseguimos! A
minha irmã já está com oitenta e tal anos. É médica e tem um doente com o qual
ela se preocupa… É comigo! E lá aparece. E, portanto, eu via aquelas crianças
que não tinham uma casa onde recebessem os cuidados que eu recebi. A diferença
estava na minha formação. E foi por isso que percebi.
Entrv.: O avô do
Senhor Professor foi uma referência no seu crescimento literário e social?
Prof. Doutor A.M.: Foi. Esse meu avô era
extraordinário. Era o pai da minha mãe e tinha uma casa melhor do que a do meu
avô paterno, que eu não conheci, e tinha uma pedra a servir de banco cá fora. Eu
devo dizer que essa pedra está lá em Lisboa na minha casa porque a junta
autónoma das estradas tirou a pedra para corrigir a rua e eu quis a pedra, e
portanto está lá e tem em cima uma inscriçãozinha que diz: “Banco do avô
Valentim”. Era onde ele lia o jornal. Ele tinha tomado, parte muito jovem, com
18 anos talvez, ou menos…, numa espécie de levantamento por causa de impostos teve
de sair do país… e foi assim que ele foi para o Brasil - que era para onde iam
os portugueses -, e lá esteve, uns dois anos, jovem. Não sei porquê, porque
acontece em tantas ocasiões, não apenas às pessoas, mas também aos movimentos,
adotam flores. Ele usava sempre um cravo e, quando não havia cravos, uma folha!
Era assim! E, portanto, já tinha uns livros, alguns extraordinários: tinha um
livro sobre Nietzsche, tinha um livro sobre a segurança internacional, etc.. Eu
herdei esses livros num caixotinho que agora estão cá na biblioteca de Bragança.
Eram um tesouro para ele.
Entrv.:
Desculpe, mas esse caixotinho era toda a biblioteca, todo o espólio do avô do
senhor Professor.
Prof. Doutor A.M.: Era.
Entrv.: Que ele
guardava como verdadeiras relíquias…
Prof. Doutor A.M.: Era um tesouro para ele. Ora bem,
e, portanto, a minha mãe foi educada por ele e, por isso, é que ela tinha
aquela sensibilidade.
Entrev.: E por isso
essa visão do mundo.
Prof. Doutor A.M.: E para além disso, ela era muito
inteligente. Começou a fazer costura em Lisboa para ajudar a família. Para
verem o que era a vida naquele tempo, quando eu me formei, fiz o estágio, e fui
para o Ministério da Justiça onde consegui um lugar: ganhava três vezes mais do
que o meu pai,
Entrev.:
O seu pai era polícia…
Prof. Doutor A.M.: E morreu subchefe ajudante. Eu
estive à despedida dele dos seus subordinados. Fez um tão bom discurso que eu
pensei assim: “louvada faculdade!”
Entrv.: Só uma
curiosidade, senhor Professor, se me permite…De entre o espólio literário do
avô fazia parte Guerra Junqueiro…
Prof. Doutor A.M.: Fazia. O Guerra Junqueiro era
muito popular.
Entrv.: O avô era
contemporâneo de Guerra Junqueiro. Ele faleceu em 1923 e o senhor Professor
nasceu em 1922…
Prof. Doutor A.M.: Mas não diga!
Entrv.: Ah, essas coisas não se dizem!
Prof. Doutor A.M.: Depois eu ainda tive mais razões
para me interessar por Guerra Junqueiro porque uma das pessoas que teve mais
importância na minha formação e vida pública, foi o Almirante Sarmento
Rodrigues que era casado com a descente do Guerra Junqueiro e foi ele que
presidiou às cerimónias do centenário, - o que naquele tempo, naquele regime,
era preciso ser transmontano porque ele era marinheiro e recebia ordens: mas, o
Guerra Junqueiro era da família da sua mulher e fez uma bela celebração do
Guerra Junqueiro. Portanto, foi assim neste ambiente familiar que cresci naquele
bairro de Campolide… Naquele tempo Lisboa tinha muitos bairros, eu atualmente
acho que só já há uma região que é bairro…o resto é Lisboa, mas ali era bairro
e na esquina do beco, onde vivia, havia uma casa melhor, e uma senhora que
tinha uma bibliotecazinha e era, salvo erro, tia de um dos marinheiros do barco
que foi afundado na guerra de 14, comandado por Augusto de Castilho, que tem
uma estátua em Vila Real, afundou-se salvando um barco português. E essa
senhora, entre outras coisas, por exemplo, tinha a coleção do Júlio Verne! Umas
encadernações fantásticas, ela emprestava-me cada volume… e eu tinha um cuidado
enorme. Li a coleção toda.
Entrv.:
Grande vizinha também lhe digo…
Prof. Doutor A.M.: Tinha outros livros que também me
emprestava. E gostava muito de conversar com miúdos e criei lá alguns amigos para
a vida… depois fiz a instrução primária num colégio que havia lá… não do Estado.
Mas era aquilo tão pobre… eu ainda me recordo que custava por mês vinte
escudos.
Entrv.: Era
dinheiro…
Prof. Doutor A.M.: Era dinheiro naquele tempo…E a
senhora tinha um filho doente epilético, mas era uma grande professora. Depois
fui para o Passos Manuel e, agora, tenho de pensar o seguinte: quando eu fui
para o Passos Manuel tinha 9 para 10 anos, fiz exame muito cedo, e tinha de ir
de Campolide para o Passos Manuel a pé.
Entrv.: Mas não era
de castigo?
Prof. Doutor A.M.: Não… não! Fazia ginástica, e acontecia
que, quando voltava é que custava mais porque era sempre a subir! Lá fiz o
curso ginasticado. Depois fui para a Faculdade de Direito que era no Campo de
Santana. Não havia transporte, nem dinheiro para pagar, portanto passei cinco
anos a pé, a ir e a vir. E era fácil aquilo. Nessa altura, comecei a pensar que
tinha de apoiar a minha irmã que era mais nova… ela fez um bom curso. Depois,
estes dois transmontanos, eu e ela, havíamos de nos ligar ao Ultramar porque
ela foi médica para Lourenço Marques, casou com um oficial da Força Aérea, médico
também, e depois tive de andar envolvido naquelas guerras, de maneira que somos
africanos regressados.
Entrv.: Senhor
Professor, usa muitas vezes a expressão, “a maneira portuguesa de estar no
mundo”. De que forma é diferente da maneira transmontana de estar no mundo?
Prof.
Doutor A.M.: Eu a transmontanos julgava que não tinha de explicar!...
Entrv.: Pedimos-lhe que nos explique… Nós queremos ouvi-lo e transcrever o que nos disser…
Prof. Doutor A.M.: Há uma coisa que eu acho importantíssima
nos transmontanos. Primeiro, são solidários. Olhe, quando nós fomos viver para
Lisboa, eu vinha passar as férias aqui com o meu avô, sempre. Naquele tempo eram
três meses, e para chegar cá era duro. Apanhava-se um comboio aí pelas oito horas
à noite e chegava-se à estação de Grijó no dia seguinte, por volta das sete e
meia da tarde. Chegava a Grijó, que ainda era longe, a cavalo num burro que
estava lá à minha espera e lá ia eu… E então ficava em Grijó e era felicíssimo
aqueles três meses. Tinha um primo, o Alexandre, que era como se fosse meu
irmão. Já morreu há bastantes anos. Era tão bom… conhecíamos tudo, andávamos
por todos os lados. O meu avô tinha uma propriedadezinha para aí com um hectare,
mas era à beira de um ribeiro e a gente ia lá, tomava banho no ribeiro, corria
com as cobras d´água, enfim… era uma vida…
Entrv.: Esses três
meses eram fundamentais para recuperar energias… e para recarregar baterias.
Prof. Doutor A.M.: Era! E depois ainda me lembro
sempre de amigos do tempo do meu pai e que ali estavam reformados. Lembro-me,
por exemplo, de um, o chamado Zé Fiscal porque ele tinha sido guarda-fiscal.
Quando eu comecei a ser conhecido, ele cada coisa que via no jornal, cortava e
trazia no bolso, e quando eu chegava mostrava-me. Um grande amigo. E havia
outros… O Zé Peras, que trabalhava na agricultura da família dos Mirandas, e
uma jovem, hoje senhora, que foi fazer um curso de enfermagem em Lisboa na
escola Rockfeller, conviveu os três anos connosco, é uma amiga, sobretudo da
minha irmã, porque é mesmo da idade dela. A querida Lucília.
Eu
vou amanhã a Grijó a uma festa que eles me vão fazer. Mas há pouco tempo, foi
no dia 6 de setembro, dia dos meus anos, imagine o que eles fizeram: com as
técnicas atuais, arranjaram maneira de ligar uma emissão de imagem para a minha
televisão, em Lisboa.
E
eu em Lisboa, sentado numa cadeirinha, com os 14 netos à volta, (estão sempre),…
vem aquilo de repente… a aldeia toda junta a cantar-me os parabéns e ela, Lucília,
fez um poema… e leu o poema! Fantástico! Então, eu amanhã tenho que lá ir
porque eu fiz também uma bibliotecazinha para eles, como pediram. E querem
inaugurá-la. E querem que seja domingo porque os padres só estão livres no
domingo àquela hora.
Aquela
aldeia mereceu-me sempre grandes cuidados. Conforme fui podendo, por exemplo, conseguir
por lá a eletricidade, que ia daqui das barragens… passava pela aldeia, e lá
andavam de candeia. Consegui que pusessem lá a eletricidade. Também consegui o
esgoto, uma segunda escola e o coreto da festa. De maneira que, o largo do
coreto chama-se Adriano Moreira, a biblioteca chama-se Adriano Moreira.
Entrv.: É uma
homenagem justa!
Prof. Doutor A.M.: Porque
me inquietou, foi a falta de crianças…
Entrv.: Pois, não,
infelizmente.
Prof. Doutor A.M.: No meu tempo havia tantas…
Entrv.: E a capela
da sua mãe?
Prof. Doutor A.M.: Essa capela tem uma origem
interessante. A santa protetora da nossa aldeia é Santa Madalena, mas a festa é
ao Senhor do Calvário. E, portanto, a capela do Senhor do Calvário era fora da
aldeia… agora já lá chega a aldeia. Era uma colina, tinha umas rochas e eu
lembro-me que com o meu primo gostávamos de nos encavalitar nas rochas a ver o pôr-do-sol.
Lembro-me disto… íamos para ali para o Santo Cristo… Depois houve, consta, um
empreiteiro que precisou de amanhar a estrada e lembrou-se de, com dinamite,
tirar as pedras e a capela ficou, claro, toda atingida. A minha mãe, que era
muito crente, estava sempre muito aflita com a capela. Eu já era um bocadinho
crescido quando isso aconteceu, já formado, era Ministro do Interior, um
transmontano, o Dr. Trigo Negreiros, e era Ministro da Marinha outro
transmontano, que era o almirante Sarmento Rodrigues. O Almirante Sarmento
Rodrigues que, também era transmontano, eu já andava a dar aulas, mandou-me
chamar e pediu-me para ir estudar o sistema prisional do Ultramar. Nesse tempo dedicava-me
a isso: o direito prisional. E, então, corri as províncias todas de África, e
sinto pena porque nunca tive a ocasião de ir a Timor. Fiz o livro. Desse livro
saiu a reforma prisional Sarmento Rodrigues do Ultramar. Como eu tinha dito no
estudo, a condenação à prisão é sempre destinada à reabilitação. Reabilitação,
que tem sempre a tal circunstância, a cultura a que a pessoa pertence. E,
portanto, não podemos ter as estruturas técnicas, que são europeias, para
África. Defendi fazer um regime puramente de “colónias agrícolas”, prevendo até
a reunião das famílias: os europeus, tão poucos, viriam para cá. Com o livro ganhei
o prémio da Academia das Ciências. E esse prémio, na altura, era 80 contos.
Entrv.: Era
significativo…sem dúvida…
Prof. Doutor A.M.: Para o meu pai era o ordenado de
dois anos ou três. E, então, o que é que eu fiz? Peguei no dinheiro do prémio e
dei-o à minha mãe: “Pode concertar a nossa capela!” Um amigo meu fez o projeto.
Era o arquiteto Mário de Oliveira… morreu em Trás-os-Montes, em Vila Real
porque, ele não era transmontano, mas veio para cá trabalhar.
Entrv.: E acabou
por ficar…
Prof. Doutor A.M.: Portanto fizeram a Capela, ficou
linda e ele fez o projeto, não levou dinheiro, mas faltava a estrada! Fui ao Dr.
Trigo Negreiros, transmontano, e contei-lhe da Capela: “Isto está feito. Está
uma beleza, mas depois há a procissão todos os anos, e as mulheres vão ajoelhar-se,
e a estrada é uma coisa difícil e penosa”, - “Está bem, e então o que é que
quer?”, - “Quero que o senhor faça a estrada!” E fez!
De
maneira que a Capela tem um grande culto. A última vez que eu lá fui eles
mandaram dizer a missa na capela. E amanhã vou lá. Infelizmente com esta crise
em que o país está, consegui a segunda escola e estão as duas fechadas. As
duas. O presidente da junta vive na aldeia, uma família média, transformou o
edifício da primeira escola em biblioteca Adriano Moreia e depois achou natural:
“Agora, mande os livros!”
E
eu tenho mandado bastantes, com uma certa cautela por ser uma aldeia, e a minha
irmã Olívia, sábia, disse-me com o seu ar de médica, “Vê lá se mandas livros
que eles leiam!”
Entrv.: Pois, com
certeza! O senhor Professor é um transmontano radical?
Prof. Doutor A.M.: Sou!
Entrv.: E o que é
ser um transmontano radical?
Prof. Doutor A.M.: Sabe uma coisa? Isso foi muito
benéfico porque escusava de ser radical no resto!
Entrv.: Só pelo
facto de ser transmontano já era radical! Muito bem!
Prof. Doutor A.M.: Era! Ora bem, isto vinha a
propósito, portanto, por que é que eu cheguei… à expressão “maneira portuguesa
de estar no mundo” que, aliás, foi utilizada pelo nosso presidente do júri, Prof.
Braga da Cruz, no último livro que publicou, onde faz um retrato do país
através de correspondências ou ensaios de pessoas vivas! Portanto, são aí umas
quarenta. Tem o livro dele?
Entrv.: Não! Ainda
não o adquiri!
Prof. Doutor A.M.: Mas é um livro extraordinário e
também lá fala de mim! E diz assim, mais ou menos: “caracterizo os esforços da
vida dele, com este problema: a maneira portuguesa de estar no mundo…”
Entrv.: Como é que
o senhor Professor encara a posição de Portugal no mundo, hoje em dia?
Prof. Doutor A.M.: Com muita preocupação porque, não
sei se isto é fácil de explicar para o público, mas é mais ou menos isto que eu
lhes vou dizer…e compreendam que com a II Guerra Mundial, Portugal não entrou
por querer na II guerra Mundial… e aquilo que anda escrito, em regra… e que
procura talvez salvar a face do país… não começa dessa maneira… foi o Ultimato
dos Estados Unidos – precisavam do Arquipélago dos Açores, porque, naquele
tempo, os aviões não tinham capacidade para atravessar o Atlântico com gasolina
e, então, tinham de fazer uma aterragem, e o Presidente do Conselho, o Doutor
Salazar, conseguiu uma coisa extraordinária: os Açores e Portugal, claro,
entravam como associados à defesa ocidental e na guerra, o resto dos
territórios eram neutrais! Eu ainda me lembro (era estudante durante a guerra)
e nós andávamos sempre aflitos a ver se os alemães vinham por aí fora. Eles
chegaram a estar nos Pirenéus.
Bom,
ele acabou até o discurso, dizendo mais ou menos o seguinte, na Assembleia da
República, “Os juristas vão ter muita dificuldade em explicar isto. Mas é
assim.” Quem cobriu essa imposição com palavras mais respeitosas foi a
Inglaterra, dizendo – “Invocamos a Aliança”. Só que se esqueceram de uma coisa:
é que no tal território que não entrava na guerra, ficava Timor. Foi invadido
pelos japoneses e eles mataram, fizeram quase uma destruição da população. Eles
ainda haviam de sofrer outro grave abuso, mas, nesse tempo, foi um desastre. Eu
ainda me lembro do primeiro-oficial português governador, que depois da paz
entrou em Timor. Quando chegou ele tinha uma guarda de honra à espera, gente
toda esfarrapada, mas com a bandeira. Tinham-na enterrado para os japoneses não
poderem destruí-la. Era uma gente muito fiel a Portugal. Ainda este ano tive…
já foi o ano passado… isto passa a correr… eu nunca fui a Timor e não conheço o
Presidente da República atual que já é o terceiro. Ele mandou-me o convite para
eu ir a Timor. Eu disse-lhe: “Não vou porque o médico não deixa. Ele proíbe-me
de andar de avião”. Eu tive um acidente nos pulmões, uma infeção e ele
respondeu: “Traga uma enfermeira!”. E eu respondi: “O médico não está
preocupado com a enfermeira. O médico está preocupado comigo!”
Sabe
o que ele fez? Veio cá o primeiro presidente de Timor para me entregar uma
condecoração. A condecoração chama-se “Condecoração de Timor: “Pelos serviços
prestados a Timor (porque eu defendi-os muito nas Nações Unidas preocupei-me
com os que estiveram refugiados em Lisboa e que sofreram imenso, sobretudo as
mulheres que são sempre vítimas) aos Direitos do Homem e à Humanidade.”
Eu
tenho um neto com quatro anos, bastante doente, que tem o meu nome, e eu disse:
“Eles enganaram-se! É para o Adrianinho!” E dei-lha, para se lembrar de mim
quando crescer.
Entrv.: Senhor
professor, creio que vem a propósito eu utilizar uma expressão, uma frase
também do senhor Professor que diz, “Nós tivemos um grande talento para criar
impérios…Nós gostaríamos de ouvir o comentário do senhor Professor.
Prof. Doutor A.M.: A questão é esta: vamos sempre à
circunstância. Ainda este ano foram publicadas traduções de duas histórias de
Portugal feitas por saxónicos. Eu achei interessante. Li as duas. São muito
justos. E ambos concordam em dizer que é um milagre: como é que o mais pequeno
país europeu fez um império?! Ora bem, eu digo: a circunstância.
Tenho
uma grande admiração por D. Dinis porque o que é que ele fez? Primeiro, fez a
Marinha. O primeiro almirante português, creio que foi há dois anos que se
celebraram os 700 anos da nomeação. E o D. Dinis fez isto porquê? Não foi por
causa da religião católica. Foi porque os piratas atacavam a navegação e ele
tinha de organizar a defesa. Fez o pinhal de Leiria para poder fazer os barcos,
as pessoas que tratassem disto tinham de saber – fez a Universidade; conseguiu
a absolvição dos Templários, e criou com eles a Ordem de Cristo, salvando assim
o património. E o que é que aconteceu? Um professor inglês do século XIX disse
uma coisa muito sábia: em geral, não é a nação que faz o estado, é o estado que
faz a nação. E de facto, o efeito geral de estas três coisas, acho eu… atribuo
a isto… ele não pensou, mas com tudo junto acontece que havia nação em 1385
porque a nação é que escolheu o rei. E já não é de herança! É aclamação. Depois
vamos perdendo essa noção mas o rei de Portugal tinha de ser sempre aclamado
pelas cortes. E foi D. Dinis! E foi isto que deu essa audácia, com a sorte que
tivemos com a geração do Infante D. Henrique… é um grupo espantoso que admiramos:
que saber… como é que eles tiveram aquela coragem?
Hoje,
como sabem, cresce uma crítica salientando a escravatura, o resto é o milagre
que historiadores estrangeiros sublinham.
Entrv.: Se compararmos com as outras escravaturas, a nossa não era das mais pesadas.
Prof. Doutor A.M.: Nunca
é leve, mas aqui
há dois anos saiu um livro importante que interessa às universidades. Imagine
que foi uma universidade da América latina que organizou um livro sobre a paz
ibérica. É o ensino de Coimbra, de Évora, de Espanha, (Salamanca), e você
admira-se com gente que está no século XVI a discutir se os reis têm
legitimidade para tomar conta do território de gente que já lá está, se o Papa
tem realmente poder para fazer essas coisas, se a escravatura é legítima, etc.
Isto
é o património imaterial da humanidade… nasceu cá uma grande parte. Foi uma
grande parte: Coimbra e Évora, depois os professores que nós tivemos e os
missionários, para mim o padre mais importante é o Padre António Vieira.
Entrv.: O Padre
António Vieira?
Prof. Doutor A.M.: António Vieira! Morreu no Brasil,
velho, chegara a ser preso pela Inquisição, mas depois o Papa deu-lhe imunidade.
E ele já estava velho, talvez tivesse noventa anos, mas continuou a escrever e
avaliar o que se estava a passar.
Ora
bem, Portugal com isto (por isso é que eu comecei por dizer – Portugal, como os
outros países, está sempre ligado às circunstâncias)… as circunstâncias
evoluíram muito porque apareceram as novas potências como agora estão a
aparecer os emergentes. Como sabe o mundo começou a ser ocidentalizado, mas não
éramos só nós, eram todos os outros que apareceram com interesses próprios. É
uma mudança muito firme passar de sozinhos e Espanha para muitos. A balança do
poder começa a ser diferente e por isso nós tivemos períodos de decadências
como foi as duas coroas, de Portugal e de Espanha, etc. Ora, para não ser muito
comprido… vamos ver o que aconteceu durante a minha vida. O que aconteceu foi
em 1.º lugar a guerra – uma coisa espantosa. Quando se fez a paz em 1918, antes
de eu nascer, o general alemão que assinou a paz disse – isto não é paz, é
armistício por vinte anos. Foi dia por dia. Veja bem. II Guerra Mundial. Nós
passámos aqueles problemas, não é verdade? E depois disso, a mudança da atitude
dos europeus foi de aceitar que estava a desaparecer aquilo que lhe atribuíam:
ser “a luz do mundo”. Que deixou de ser, aos poucos. E, Portugal começou, talvez
a se compreender na II Guerra Mundial, que em vez de dominar a circunstância, a
circunstância começava a dominar. E por isso a minha conclusão neste momento
(eu escusava de ter sido tão comprido) é que o país - arranjei uma palavra feia
porque a situação é feia -, é exógeno, quer dizer, é objeto das consequências
de decisões em que não toma parte.
Entrv.: Eu costumo
dizer que nós somos as nossas circunstâncias!
Prof. Doutor A.M.: É a relação com a circunstância.
Eu lembro quando foi do primeiro grande golpe que foi as duas coroas, o nosso
Frei Bartolomeu dos Mártires, que agora é santo… eu acho que ele fez uma coisa
um bocadinho criticável, achando legítimo que viesse o rei de Espanha. Ora bem,
mas outro bispo percebeu a circunstância: não estava de acordo, mas quando lhe
perguntaram, o que respondeu foi – “Ao presente não lhe vejo mais remédio.”
Quem diz isto não está de acordo.