Entrevista realizada ao Dr.
José ribeiro, natural de Celorico de Basto, nascido a 23 de novembro de 1963 a
viver no Porto.
Médico cardiologista a
desempenhar as funções de Diretor da Unidade de Tórax e Circulação desde 2018 e
Chefe do Laboratório de ecocardiografia desde 2001 no Centro Hospitalar de Vila
Nova de Gaia/Espinho e Consultor de cardiologia na Unidade de Saúde Local do
Nordeste - Hospital de Bragança desde 1998 (há 24 anos, mais de duas décadas).
Esta entrevista foi
realizada na unidade hospitalar de Bragança, no dia 22 de outubro de 2022,
sábado, perto das dezanove horas, depois das consultas do Doutor José Ribeiro.
Enquanto eu colocava o
material necessário à entrevista a postos, fomos conversando. O Dr. José
Ribeiro é um grande conversador, dono de uma personalidade única, alegre e
atento a todos os detalhes e nuances.
Maria
Cepeda (M.C.): Boa tarde senhor Doutor José Ribeiro. É uma
honra poder entrevistá-lo. Consideramo-lo quase um transmontano já que nos
cuida dos corações há mais de duas décadas. O seu curriculum é impressionante.
Dr.
José Ribeiro (DR.J.R.): Esta entrevista também significa que há
a motivação de conhecer um pouco mais e procurar perceber um pouco melhor
algumas coisas que já conhecemos e foi o resultado da nossa interação ao longo
destes anos em que vou seguindo, como médico, o senhor Marcolino; já não sei
quantos anos, mas já são alguns.
(M.C.): Já
são alguns, sim senhor, talvez dez. Uma vez marcámos, até nem sei se foi o
doutor que marcou, uma consulta em Gaia/Espinho e uma colega sua, de que não
recordo o nome, consultou o Marcolino e depois da consulta, chamou por si que
estava, casualmente, no corredor, e disse: “Ó Zé, este é para ti. Vais vê-lo lá
em Bragança.” E assim tem sido. (Risos)
(DR.J.R.):
Esta
foi, para mim, uma semana dura, mesmo para esquecer. Além de toda a actividade
clínica e na gestão… hoje vinha por aí acima a conduzir e pensei “Bragança
custa um bocadinho porque é muito trabalho e tudo isso, mas senti um certo
alívio de deixar para trás aquela pressão toda em Gaia e vir tratar os doentes
aqui a Bragança. É caricato não é? Foi o alívio de vir trabalhar.
(M.C.):
(Risos) Sim. O alívio de vir trabalhar. Por acaso. Eu acredito…
(DR.
J.R.): É engraçado não é?
(M:C:): É
muito interessante…
(DR.J.R.):
Portanto, há coisas que têm esse lado relativo. Esse percurso em Bragança não
foi premeditado. Foi, um bocadinho, o somatório de várias coisas e foi também,
talvez, o corolário de uma determinada forma de estar na vida. Depois a gente
acaba por ter algum apego às pessoas, aos doentes e tudo culminou com isto.
(M.C.): Depois
deste preâmbulo, vamos dar início à entrevista propriamente dita. É natural de
Celorico de Basto, nascido a 23 de novembro de 1963, a viver no Porto. Médico
cardiologista, a desempenhar as funções de Diretor da Unidade de Tórax e
circulação, entre muitas outras, como está plasmado no seu curriculum.
Como é natural, começaremos
pelo princípio. Fale-nos brevemente da sua infância e juventude.
(DR.
J.R.): Falar da minha infância é um pouco remeter-me à minha
origem na família onde nasci e cresci. Eu tenho cinco irmãos. Uma família de
classe média. Filho de um gestor comercial e de uma comerciante. E desde muito
cedo passei a ser, não só como irmão mais velho, mas também porque a situação
assim o impunha, numa altura em que não havia grandes preconceitos em relação
ao trabalho infantil e coisas do género, a ser um ajudante importante para a
família e tive contacto com a loja que a minha mãe tinha, um contacto comercial
no qual eu passava muitas horas. Era um estabelecimento que estava aberto sete
dias por semana, em horário alargado.
Claro
que, a minha infância não se resume apenas a isso, mas uma boa parte do meu
tempo foi passado na ajuda desse tipo de atividade a ponto de, como adolescente,
a ter assumido, um pouco, como minha tarefa.
Portanto, tive esta
experiência que me somou competências importantes em termos da relação com os
outros; em termos da capacidade da comunicação. Teve algum enviesamento no meu
crescimento porque não fui muito criança. Como eu costumo dizer, sempre fui
desajeitado a jogar à bola porque não tive grande oportunidade de jogar à bola
como compreendem.
A minha infância foi uma
infância feliz, própria de quem tem muitos irmãos. Uma infância de responsabilidade
precoce de quem é irmão mais velho e é obrigado, também, a trabalhar e depois
há aqui um efeito da própria personalidade.
Personalidade porquê? Porque
a pessoa que mais me marcou em termos educacionais foi a minha avó. A avó
Camila que é o meu ídolo desde criança. Era uma senhora com uma visão muito
católica e até um tanto aristocrática, em que as regras eram muito bem definidas.
Em que ninguém podia dizer aquilo que lhe apetecia, sem perguntar aos outros se
não estava a importunar. Em que, quando nos sentávamos à mesa, ninguém falava
até que ela desse a ordem de que se podia falar. Foi uma educação desse género,
que achei que me tinha moldado mais do que aquilo que eu, hoje, sou capaz de
admitir. Portanto, nós somos aquilo que realmente somos e isso dita muito do
nosso percurso.
(M.C.): Sem
dúvida nenhuma, sim. Já agora, pergunto-lhe se sempre quis fazer medicina e
porquê a cardiologia?
(DR.J.R.):
Essa é uma boa pergunta porque eu nunca pensei ser médico até escolher a
medicina. Curiosamente queria ser engenheiro químico. (Risos)
(M.C.):
Pois. É igualzinho. (Risos)
(DR.J.R.): Eu
queria ser engenheiro químico. Preparei-me para isso. Estudei e muito. Sei,
ainda, muito de química. Até ao dia em que fiz a candidatura em que era preciso
escolher a faculdade e o curso e aí pus medicina em primeiro. Entrei em
medicina porque tinha boa nota. Não me pergunte o porquê desta decisão porque
eu não sei responder. Sei que não fiquei triste e sei que os meus pais ficaram
contentíssimos por eu ter entrado em medicina. Mas até aí foi tudo a pensar em
química.
Estudei os últimos três anos
na escola secundária em Amarante. Fiz quimicotecnia. Aprendi imenso de química,
até processos químicos sabia. Havia algo para além do meu gosto quase inato
pela astronomia. Havia também, algum gosto pela física atómica, química… algo
desse género. Sempre achei o átomo e o sistema solar como algo muito parecido
em termos dinâmicos.
(M.C.):
Sim… A astronomia, todos os dias temos uma notícia nova e a química também. Não
sei se tem acompanhado…
(DR.
J.R.): Tenho acompanhado. Hoje, se estiver a dar algo na
televisão sobre esses assuntos, fico atento imediatamente. Sempre fui muito
proativo, ia à procura de coisas novas, sempre gostei imenso de ler. Tinha a
sorte de, na minha adolescência, somar histórias fantásticas. Tinha uma vizinha
que me emprestava livros de cowboys. Cheguei a ler nas férias, novecentos e
cinquenta livros.
Lembro-me da amizade que fiz
com algumas pessoas que eram testemunhas de Jeová… não queria saber muito de religião,
mas tinham livros e davam-me os livros de graça que eu lia. Desde a amizade que
eu tinha com dois senhores que eram irmãos e tinham uma tipografia que editava
o jornal da terra e que moravam na minha rua; eu não saía de lá porque me
proporcionavam leituras. Cheguei mesmo a estar inscrito na embaixada da União
Soviética em Lisboa porque esses meus vizinhos eram comunistas e me
influenciaram, só porque, assim, me proporcionavam livros que eu sempre lia de
uma forma crítica. Portanto, sempre gostei de ler, tinha sede do conhecimento.
O meu gosto pela química,
por exemplo, levou-me a ter montado na cooperativa de vinhos onde o meu pai
trabalhava, um laboratório de análise de vinhos. Aprendi, com isso. Pus o
laboratório a funcionar, através do qual os sócios da cooperativa classificavam
as uvas e recebiam de acordo com a qualidade do seu vinho analisado através do
mosto.
(M.C.): Com
que idade?
(DR.J.R.):
Tinha os meus dezasseis anos, dezassete.
(M.C.):
Puxa! E entrou para medicina com os dezoito da praxe. Incrível!
(DR.J.R.):
Sim. Nessa altura eu não sabia muito disso, mas já tinha alguns conceitos.
Aquilo também não era muito difícil. Montei o laboratório que assentava em duas
técnicas. Arranjei um espectrofotómetro que media no vinho mosto o teor de
glicose e conforme a glicose que tinha… quanto mais tivesse, mais álcool ia ter
depois de fermentado e, portanto, era mais ou menos simples. Arranjei umas
tabelas e aquilo funcionou e creio que ainda hoje, o laboratório funciona e
bem, se calhar com alguns métodos mais sofisticados.
Na altura, eu ganhava algum
dinheiro e pagavam-me algumas horas no tempo das vindimas e com isso financiei
alguns dos livros mais caros que eu tinha. Ainda no secundário tinha alguns
livros em espanhol porque em Portugal não havia grande coisa e depois os livros
de medicina que eram muito caros.
(M.C.):
Então, foi uma inspiração, digamos assim, que o fez colocar o X na medicina.
Estou a brincar obviamente mas, alguém que queria ser químico, de repente virou
e fez medicina… E agora pergunto: Porque Cardiologia? Porque essa
especialidade?
(DR.J.R.): Fiz
o curso de medicina de uma forma muito fundamental, aprendendo de uma forma
muito sequiosa todo o conhecimento desde a anatomia à fisiologia, mas a
fisiologia… ainda hoje os meus colegas me dizem que em fisiologia eu me
distingo de uma forma especial, tal como na imagem médica. Mas isso tem a ver
com a minha curiosidade de saber porque é que as coisas acontecem. Tudo tem uma
lógica. A cardiologia tem um pouco isto tudo. A cardiologia não é propriamente
a ciência de apenas um órgão, o coração, que tem uma função dinâmica e que
compreende muita coisa. Desde a dinâmica dos fluidos, porque funciona como uma
bomba e faz circular o sangue obedecendo às leis da física, porque exerce uma
força. Se nós pensarmos que o coração trabalha de uma forma espontânea devido a
um impulso elétrico que se gera espontaneamente e que há como que uma pilha
natural que faz o coração trabalhar… Isto tudo é genial.
(M.C.): É
genial realmente.
(DR.J.R.):
Portanto, tudo isso me fascinou e, a dada altura, tornou-se uma escolha lógica.
Já que estou na medicina, isto consegue congregar alguns desses meus interesses
de vária ordem, numa mesma disciplina: Cardiologia.
(M.C.):
Veja senhor Doutor, nós conhecemo-lo há alguns anos, mas não o conhecemos de
todo porque, quem vê um médico competentíssimo a fazer o que tem de fazer e
mais ainda, vimos a descobrir uma pessoa que poderia ter sido tudo o que
quisesse, porque em qualquer área por onde enveredasse, seria notável.
(DR.J.R.):
Possivelmente isto tem a ver, com o nosso empenhamento. A grande força motriz é
a nossa curiosidade e o nosso gosto por uma ou outra área, o que nos leva,
também, a procurar mais e mais. Depois, há aqui, um fundo comum que é o
trabalho. Eu costumo dizer que ninguém pode ser um bom cirurgião se operar apenas
uma vez por mês. Não estou a dizer que seja mau. Digo que não consegue. Há aqui
esta lógica: a gente que faz muito e faz muitas vezes tem uma maior
probabilidade de vir a ser muito bom nisso.
(M.C.): Tenho na mão o seu curriculum.
São doze páginas resumidas e acaba por ser muito técnico para mim. Sou
professora. Não sou da medicina. O que eu comprovo, sem dúvida, é o enorme
trabalho em que se meteu e em que todos os dias se mete. É impressionante o que
faz e como tem tempo para fazer. E eu, por mais viciada em trabalho que seja,
ainda me custa compreender como tem tempo para tudo. E fico extremamente
admirada ao ponto de dizer “Caramba! Será que sou capaz de entrevistar este
senhor?”
(DR.J.R.):
Talvez, o segredo esteja, por um lado, na minha capacidade de trabalho e esta
curiosidade permanente e ainda, a capacidade de congregar à minha volta,
determinadas pessoas.
Eu tive a oportunidade de
conhecer um pouco do mundo, pela minha curiosidade. Sair do país foi também à
procura disso. Estive algum tempo na Bélgica, onde contactei com situações
muito diferentes. Estamos a falar de há quase três décadas, num hospital muito
mais evoluído, já com uma experiência enorme em transplante cardíaco. Foi na
altura em que, em Portugal, pouco se falava desse assunto. Depois disso estive
algum tempo em Londres, aonde contactei, na Universidade de Londres, com
algumas coisas sobre investigação.
Todas estas experiências
deixaram em mim mais do que um fascínio. Deixaram em mim uma responsabilidade
de trazer para cá qualquer coisa. Mais uma vez, vem ao de cima, a minha característica
de irmão mais velho que, habituado a lidar com os mais novos, nos traz, ao
longo da vida, algumas vantagens na relação entre pares, na capacidade de
dinamizar equipas. Tudo isto é o corolário dessa capacidade.
(M.C.):
Depois da especialidade não se deu tempo para descansar. Quer falar-nos do seu
percurso académico e profissional?