quinta-feira, 25 de abril de 2024

Teófilo Bento, Capitão de Abril (Natural de Sendim, faleceu a 29 de julho de 2020, aos 75 anos)


Aconselhamos a leitura da entrevista que nos concedeu.

Aqui deixamos alguns excertos. 


Penso que o ter participado no “25 de Abril” teve um pouco que ver, ou talvez muito, com o ter nascido nesta região. Como disse, sou filho de um guarda-fiscal, sou um filho já tardio, tinha dois irmãos muito mais velhos que, por acaso, estiveram em África mas, tinham regressado antes dos acontecimentos que se verificaram, os acontecimentos relacionados com a guerra ultramarina. O regresso, de pelo menos um deles, deveu-se ao falecimento do meu pai.

A minha mãe viu-se com um miúdo de oito anos para criar. A única coisa que sabia fazer era a lida da casa. Como o meu pai era guarda-fiscal e, numa aldeia, isso significava mais que ser remediado, quase significava ser duma classe alta, porque havia dinheiro, a minha mãe fez das tripas coração, virou-se como se costuma dizer. Ela ainda está viva, tem 98 anos, está num lar em Miranda, mas foi sempre uma pessoa que me marcou muito porque fez realmente um esforço fabuloso para conseguir educar-me com aquilo que ficou. Quase diria que teve de inventar formas de fazer dinheiro para me educar. Tive o azar de ser de uma aldeia, de não ter feito o exame de admissão na devida altura, o que me obrigou a ir para um colégio em vez do liceu que ficava mais caro e, assim, estudei em Miranda e diga-se de passagem que ao fim do primeiro ano já estava a dizer que não queria estudar mais, porque via os miúdos que estavam a trabalhar na barragem e não tinham que ir preparar as lições para casa. Aí valeu o meu irmão, regressado de África por causa da morte do meu pai que disse: se tivesses tirado más notas, talvez, assim como tiraste boas notas tens de continuar a estudar. Também lhe devo muito a ele, como é evidente, por causa disso.

Fui criado de maneira a perceber as dificuldades que existiam em casa. Fiz o 2.º e 5.º anos, vim fazer exames a Bragança e, depois do 5.º, tive de mudar para o Porto. Eu não podia vir para o liceu, como disse e tudo isso ficava bastante caro. Fiz os estudos equivalentes ao terceiro ciclo e aí voltei a Bragança.

Tive sempre uma ligação com Bragança e quando chegou a altura de ir para a universidade escolhi a academia militar fundamentalmente por questões económicas. Percebia, perfeitamente, que não podia ir para a universidade. Até gostaria de ter ido para engenharia, mas percebia perfeitamente que não tinha condições financeiras para tal.

Ouvi dizer que na academia militar pagavam um salariozinho, enfim, davam subsídio, davam alimentação e não pagava pensão. Foi isso que condicionou a minha ida para a vida militar, não foi efectivamente a minha vocação especial. Foi mais uma condição económica que, diga-se de passagem, aconteceu a muita gente que depois veio a participar no “25 de Abril”, vieram a ser capitães de Abril. Temos que nos lembrar que nessa altura já tinha começado a guerra. A frequência na academia era alimentada, fundamentalmente, por classes ricas. Enfim toda a tradição da nobreza, mas quando começou a guerra deixaram isso para os pobres e os pobres preferencialmente, do interior, por isso é que nessa altura a frequência na academia militar era de Trás-os-Montes e das Beiras.

 

Falemos de liberdade e Capitães de Abril. Comente, por favor, a incursão das Caldas.

 

A incursão das Caldas, ou seja, 16 de Março é realmente um movimento feito por pessoas ligadas ao 25 de Abril, em que se verificou uma descoordenação bastante grande. Nessa altura, eu já tinha feito reuniões com elementos da comissão coordenadora do MFA; nessa altura tínhamos uma organização que, como costumo dizer, era uma organização desorganizada. Uma vez tive de explicar numa entrevista, precisamente, a seguir ao 16 de Março das Caldas, e que me perguntaram: "Mas como é que vocês conseguem funcionar tendo a PIDE (que era a polícia política) à perna?" Embora nos sentíssemos vigiados e tivéssemos de andar meio fugidos, o que respondi a esse jornalista foi: "A gente lá se vai defendendo porque isto é uma organização desorganizada. Eles ainda não perceberam muito bem quem são os cabecilhas e, por isso, a dificuldade de actuar. Andam a tentar seguir-nos, a gente troca-lhe as voltas conforme podemos e, se calhar, isto vai dar certo precisamente por causa desta forma muito portuguesa de criatividade, há quem lhe chame desenrascanço, sempre nos resolveu muitos problemas e continuará a resolver."

Nessa altura do 16 de Março, já estava na Escola Prática da Administração Militar. Sou chamado pelo comandante do aquartelamento que, manda reunir todos os oficiais por volta das quatro da manhã e, explica-nos que há tropas a caminho para invadir Lisboa, tropas não, uma coluna, diz ele. Quando eu ia entrar no aquartelamento, aparece-me um oficial que fazia parte da comissão coordenadora do MFA, a dizer-me que já havia tropas a movimentarem-se, designadamente, os comandos de Lamego, que iriam ocupar o Porto e que vinha muita tropa sobre Lisboa e, portanto, fiquei assim sem perceber o que se estava a passar porque, oficialmente, o comando diz-me que era uma coluna militar, a fonte interna do MFA dizia-me que havia muita tropa. Eu próprio não tinha ainda objectivos definidos, dentro das minhas funções de comandar essa unidade. Não sabia qual era o objectivo que me competia ocupar, por outro lado tinha sido feita uma reunião com o comando para verificar o estado de operacionalidade da unidade e quais as funções que lhe poderiam ser atribuídas.

Tinha-lhe sido apenas atribuída uma função de reserva em segunda prioridade, isto é, nem sequer era reserva em primeira prioridade e o comando, ao dizer-nos que vinha uma força sobre Lisboa, diz-nos também, que lhe tinham sido dadas ordens para ocupar uma das entradas de Lisboa, designadamente a entrada do Lumiar; achei estranho e pus ao comandante a seguinte questão: Então, se nós tínhamos, apenas, uma missão pouco prioritária, agora diz-nos que vamos defender Lisboa? De certeza absoluta que vem realmente muita tropa? – “Não, vem só uma coluna, são as ordens que eu tenho e as ordens que eu cumpro, preciso de oficiais que se ofereçam como voluntários para comandar uma companhia que vai posicionar-se e defender uma determinada entrada de Lisboa”.

Nessa altura ofereci-me como voluntário e disse: “Cá dentro não sei bem o que se passa, vou lá para fora”. Houve mais uns oficiais que se ofereceram, formamos uma companhia e fomos então situar-nos, por acaso, junto a uma escola. Tivemos que pedir às professoras dessa escola para ficar ali, dizendo-lhes que ia haver ali um exercício militar e que podia haver uma bala perdida, embora fosse de madeira, que dispensassem os miúdos da escola e elas, efectivamente, mandaram-nos para casa. As pessoas andavam por ali. Lá nos fomos posicionando e, entretanto, dei indicações aos oficiais, que transmitissem aos soldados que não havia tiros; isto é, íamos verificar o seguinte: se viesse muita gente, se viesse muita tropa faríamos apresentar armas e íamos marchar atrás deles por Lisboa, se fossem poucos íamos tentar dissuadi-los, porque assim não valia a pena. Ficámos, assim, nessa posição. Ainda houve uma altura em que se perdeu o contacto, foi precisamente quando essa coluna voltou para trás, aí ficámos mesmo aflitos e pensámos que ia aparecer mesmo. Enfim, não apareceu, tudo correu bem.

De qualquer das formas, não há dúvida alguma, que isso foi extremamente importante para depois melhor prepararmos o planeamento do Movimento. Permitiu perceber como é que as forças reagiam. A minha escola ou o meu quartel reagiu mas, reagiu aparentemente contra. Nós sabíamos que estava a favor, não é? Percebeu-se que… aquilo aconteceu por má organização mas, serviu para se retirarem, realmente, muitos ensinamentos. Foi como se fosse um exercício real, que nos convenceu de que era possível tomar o poder. E, portanto, foi extremamente importante, se calhar, até mais do que se pensa, porque permitiu melhorar muito o planeamento e evitar efectivamente confrontos militares, muito embora, tivéssemos tido situações em que só não aconteceram porque não calhou. Houve realmente muita sorte em determinadas situações: foi o caso de Salgueiro Maia no Terreiro do Paço, não andou aos tiros porque não calhou. A fragata que estava postada no rio teve os canhões apontados. A desgraça era que se começássemos com o primeiro tiro, não sei como conseguiríamos parar.

 

O seu papel foi fundamental na Revolução dos cravos. Sentiu o peso dessa responsabilidade?

 

Olhe, estas coisas… quase diria que se fazem sempre, impensadamente, não há heróis pensados, não há situações ponderadas… o objectivo que eu tomei, a escola prática… posso dizer que antes de eu ter sido questionado pelo Otelo, sobre se era capaz de tomar conta dos estúdios da Rádio Televisão Portuguesa, isto porque era perto do quartel. “É só dares ali um passo. Podes lá ir?" e eu disse: “Ó Otelo, conta com isso, conta com isso tomado”, e depois o Otelo ouviu precisamente o Vítor Alves dizer-lhe: “Ó Otelo dizes ao Bento para tomar, ele não tem tropa!” Porque realmente eu não tinha tropa, eu tinha soldados da administração e soldados cozinheiros, padeiros, a maior parte deles até se chamam padeiros, não é? Não sabiam combater com armas. Mais tarde, vim a saber que tinham sido questionados, primeiro, os pára-quedistas para tomar esse objectivo, porque era um objectivo importante. Os objectivos de comunicação social, nessas alturas, são importantes, são extremamente importantes.

Eu próprio, quando li o livro do Otelo, verifiquei que ele tinha feito o seu plano de utilização dos meios de comunicação social com base num manuscrito que estava em anexo e eu, quando vou ver esse manuscrito, reconheci a letra: “é pá, eu conheço esta letra mas, de quem é esta letra?” E verifiquei que a letra era minha. Por acaso conhecia alguém da RDP e fui ouvindo umas conversas, sabia o que é que precisávamos e então fiz, fundamentalmente, uma relação de prós e contras de cada meio de comunicação social nessa altura e qual era, realmente, o mais importante. E o mais importante era, efectivamente, o Rádio Clube Português por uma razão simples. Sabem qual é que era? Porque tinha gerador próprio. Por exemplo, a televisão, a emissora nacional era muito bom, cobria tudo mas, era fácil calá-la, a televisão também não era importante, isto como primeiro meio de comunicação, porque só emitia a sério a partir das seis horas, entre as duas e as seis horas tinha a telescola. Dizia lá, nesse manuscrito que, o principal meio de comunicação era nessa altura o Rádio Clube Português e esse é que era fundamental, e foi. 

Ele adoptou essa estratégia; isto só para dizer que quando falei sobre a importância dos meios de comunicação e quando decidi tomar a televisão, foi por ingenuidade e inexperiência. Se fosse um combatente experiente teria respondido, provavelmente, como responderam os paraquedistas: “Pois, sim senhor é importante e, se depois a coisa dá para o torto, como é que é?” Porque isto, quer queiramos quer não… tudo está bem quando corre bem e hoje é fácil dizer que o Regime estava preso por um fio mas, na altura sabia-se lá se estava preso por um fio, o que é que íamos encontrar pela frente ou não, os riscos que íamos correr, ninguém sabia.


Fotografia de Jorge Morais (inédita)


    "Quero também disponibilizar-vos uma foto que eu próprio tirei e que 
nunca foi vista: a visita de Mário Soares a Bragança (Presidência Aberta, 1987) e entrada no velho comboio para um pequeno percurso que, creio, terá sido até Frechas ou assim (não tenho bem a certeza). 

    Esta foto podereis colocá-la no vosso site, se assim o entenderdes, talvez no 25 de Abril, agora que faz 50 anos. Acho que ficava bem no dia da efeméride." (Jorge Morais)

    Obrigado Jorge Morais por esta foto.


O texto que se segue foi retirado de uma crónica do Eng. Jorge Nunes, no Jornal Nordeste.

    "Na visita oficial feita a Bragança, a 29 de abril de 1985, o Primeiro-ministro Dr. Mário Soares, reagindo às preocupações apresentadas pelo Presidente da Câmara Municipal, Eng.º José Luís Pinheiro, relativas ao destino da Linha do caminho de Ferro do Tua, manifestou reservas quanto á viabilidade de manutenção da linha, lembrando os pesados défices das empresas públicas de transportes.

    Também durante a Presidência Aberta, de 15 a 26 de fevereiro de 1987, realizada na cidade de Bragança, o tema foi abordado em notícia relativa à viagem do Presidente da República, feita de comboio entre Bragança e a estação de Frechas. 

    Esta foi a última locomotiva a vapor que partiu da estação de Bragança, registado o momento por Jorge Morais." 
   
    Para além da foto acima publicada, Jorge Morais registou o momento do fim do comboio em Bragança com outras fotos, como refere Jorge Nunes. 

    Neste dia marcante dos 50 anos do "25 de Abril", ainda não recuperámos o comboio que se apresenta aqui ao lado, na vizinha Espanha. 
    
    A história repete-se. Fomos a última cidade a receber o comboio, em 1906. Voltaremos a ser os últimos? Alguma vez teremos comboio?
    
     Fica-nos a foto de Jorge Morais para não perdermos a esperança.


Maria Cepeda  


sábado, 13 de abril de 2024

SE EU SOUBESSE


Na biblioteca, pensava em ti.

A hora tardava. 

A tua presença não era aqui.


Onde estás no denso minuto 

que agora passou

quando penso em ti na biblioteca?


Observo universos tão longe de nós, 

dispersos em galáxias anãs

e nos teus olhos o nascer das manhãs.


Maria Cepeda

sexta-feira, 22 de março de 2024

POEMA XVII






Fechou-se o diálogo 

amiga.


Ter-se-á fechado uma 

porta

um desejo

uma vontade

ou um túnel

voluntário 

estranho

indeciso?


Um túnel

esbatido

sem trilhos e sem luz

no fundo.


Que diálogo era

amiga?


Quando nos sentaremos 

ansiosos no café

na fonte

na beira do rio?


Quando falaremos de nós

ininterruptamente?!

(que coisa diferente)


Talvez não mais, amiga.


O túnel esbateu-se

por completo.


Já não há vontade 

nem porta.


E para sempre, amiga: 

que diálogo era o nosso

em que tanto ou tudo 

ficou

por dizer?


Marcolino Cepeda

FLORIR


teimosamente, insistentemente, 
persistem em florir amarelas, belas
e de tanto insistir, a primavera, 
todos os anos, acontece
e agradece por vir florir

flores amarelas, belas,
roxas, algumas azuis,
brancas até e violetas,
pequeninas violetas
que me fazem sorrir

gosto de estar no jardim
sem pensar, sem ouvir, 
sem ver o fim de existir
de tantas e tantas crianças
envoltas em sangue
que já não conseguem sorrir

Maria Cepeda (Poema e fotografia)

 

SÓ SEI QUE NÃO VOU POR AÍ! (Teresa Martins Marques)


(Aqui têm um exemplo da função social da literatura em que eu acredito.)

O «Cântico Negro» de José Régio (Poemas de Deus e do Diabo - 1925) é um dos textos de maior notoriedade na poesia portuguesa do século XX , tornando-se pelo seu veemente tom declamatório  um hino emblemático de rebelião, a própria rebelião por antonomásia, vindo a adquirir a função social que Régio certamente lhe não previra: Poema-bandeira de todo o inconformismo, de toda a incompreensão, de toda a diferença relativamente a uma norma-doxa que é, ou se supõe ser, por demais impositiva e violentadora da individualidade do homem.

Corroborando esta «tradição de leitura» do poema, afigura-se-nos um trágico grito de solidão na diferença, consubstanciado na rejeição do caminho que é o dos outros, o «nunca ir por aí». Os outros, são delimitados no poema como «alguns com olhos doces», «estendendo-me os braços, e seguros / De que seria bom que eu os ouvisse». (vv 1,23, – 1ª est.). Não existe qualquer marca textual que incrimine estes outros como possuidores de más intenções relativamente ao Eu poético. A alteridade que se estabelece entre Eu e os Outros é baseada na diferença, o que não implica necessariamente ainda um juízo de valor. Esse juízo surge mais tarde (5ª estrofe) através da desvalorização que os Outros sofrem relativamente ao Eu:

«Corre nas vossas veias, sangue velho dos avós.

e vós amais o que é fácil!»

Os Outros representam o velho, o ultrapassado (romântica recusa da «herança») vista da perspectiva do Eu que representa o novo, tudo o que é preciso conquistar: «Se vim ao mundo, foi

Só para desflorar florestas virgens,

E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada,

O mais que faço não vale nada» (4ª estrofe)

Os Outros («Vós») representando o velho, não poderão compreender o novo, ainda que lhe «estendam os braços». Quer se leia este estender de braços como solidariedade amiga ou imposição camuflada de hipocrisia, o certo é que o gesto redunda em inútil pois o Eu não acredita que a sua salvação dependa deles:

«Ao que busco saber nenhum de vós responde» (v. 3, 3ª est.)

[...]

«Como, pois, sereis vós

Que me dareis impulsos, ferramentas, e coragem

Para eu derrubar os meus obstáculos?» (vv 1-3 – 5ª est.)

Os Outros representam a quietude na pacatez da ordem estabelecida dentro dos conceitos do Útil («as estradas», «os tectos»), do Belo («os jardins», «os canteiros») do Sapiente («regras, e tratados, e filósofos, e sábios).

A utilização cumulativa da vírgula e da copulativa «e» transmite ao verso um tom de redundância, de organização desmesurada que ressalta ainda mais pelo violento contraste do 5º verso desta 6ª estrofe: «Eu tenho a minha Loucura!»

A loucura vista como um «bem» porque singular, porque produto de uma singular forma de individualidade, assumida como uma glória – maiusculada – em contraponto com a enumeração dos «teres» dos Outros. Loucura que é a suprema honra do Eu, a luz da sua noite/vida: «Levanto-a, como um facho a arder na noite escura». (v. 6 – 6ª est.). «Eu amo o Longe e a Miragem,

Amo os abismos, as torrentes, os desertos...»

(vv. 6, 7 – 5ª est.);

assumindo o canto de raiva sangrenta:

«E sinto espuma e sangue e cânticos nos lábios...

(v. 7 – 6ª est.);

assumindo a fatalidade da sua origem:

«Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo»

(v. 4 – 7ª est.).

O 2º verso da 7ª estrofe – «Todos tiveram pai, todos tiveram mãe» soa mais como um lamento do que como gloriosa afirmação de diferença que nem a condição de intemporalidade (o velho sonho do homem) consegue colmatar:

«Mas eu que nunca principio nem acabo».

Condição de eternidade no sofrimento, pela diferença, carregando uma culpa original que o transcende e que o condiciona:

«Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém»

(v. 1 – 7ª est.).

«Mais ninguém», excluindo os Outros, exclui também o próprio sujeito que passa à condição de «objecto guiado» e se perde, perdendo a liberdade. É a imagem de um Prometeu agrilhoado pelo que há de contraditório no seu ser dividido entre os impulsos positivos simbolizados por Deus e os impulsos negativos simbolizados pelo Diabo.

O sujeito poético tem consciência da sua condição de herói romântico e da necessidade de «derrubar os obstáculos» (v. 3-5ª est.) que o separam afinal de umanorma, podendo ler-se «obstáculos» como os primeiros muros de incomunicação que o cercam e que sente não poder derrubar, numa (lógica) contradição inscrita na duplicidade do (seu) ser.

A última estrofe insiste nessa contradição explicando a vida do sujeito poético através de metáforas que vão da exuberância («A minha vida é um vendaval que se soltou / É uma onda que se alevantou» (vv. 4, 5) até à pequenez da matéria:

«É um átomo a mais que se animou».

Átomo a mais entre tantos outros (semelhantes) mas que se animou, isto é adquiriu uma anima que lhe concedeu a diferença. O próprio título do poema inscreve em si mesmo a conotação positiva «cântico» e a negativa «negro» que para além da associação a satânico, implica o negrume da vida do homem complexamente oblíqua mas cuja  grandeza consiste, segundo Nietzsche, em ser uma ponte e não um fim e o que podemos amar no Homem é justamente a transição e a perdição.

Ponte como forma de vida superior (átomo com anima) que liga (pela inteligência) as restantes formas de vida entre si. Como ponte é transição para o divino (a perfeição) que não atinge e por isso se perde e se destrói através da auto-ironia com que se aceita, mas também se recusa.

O sujeito poético diferente dos Outros e diverso em si mesmo inscreve-se numa tradição romântica em que predominam «o desafio à norma, ao razoável, ao racional, a obsessão do diferente, o desejo de permanência na ruptura. Permanência do Eu, ruptura com tudo o que possa ser ou transformar-se no «não-eu». 

 

quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

Liliputinar (Ernesto Rodrigues)

 


Não devemos ter medo das palavras: Putin começou simpático e acabou ditador. Assim posso resumir conversa de há dias com o embaixador João Diogo Nunes Barata, que nos representou em Moscovo entre 2002 e 2004.

Putin é um ressabiado: acaba o curso de Direito na cidade natal, São Petersburgo, e entra no KGB, cujos herdeiros dominam, hoje, a Federação Russa. Os chefes não lhe reconhecem grandes qualidades, sendo destinado, pois, à tranquila Dresden, na República Democrática Alemã. Um espião de primeira viria para o Ocidente.

Antes dos seus 40 anos, dissolve-se a União Soviética (1991), e um sonho que o inspira a partir do mandato presidencial de 2004-2008: reprimir dentro, conquistar fora. A NATO (em coma, diria Macron) não percebeu; tomada a Crimeia (2014), o Ocidente nem buliu. Convinha, sobretudo, à Alemanha de Merckel, essa locomotiva europeia alimentada pela energia russa. Agora, com gás em reserva para o próximo Inverno, e as necessidades de petróleo em queda, não só sai afectada a economia russa (a par de outras sanções, cujos efeitos ainda mal se sentem), como se conclui isto, simples: Europa refém da energia e propaganda russas não é uma Europa independente. A partir daqui, Putin inventou-se historiador para justificar o que poucos viam. No pretexto de desnazificar quem lhe fazia frente (um país dirigido por um judeu), mal informado (vergonha de espião), quis, como fizera na Crimeia, pisar Kiev em três dias. O sonho de 1991 começava a concretizar-se – ou isso parecia.

Eis a inspiração para, entre Março e Julho (em menos de quatro meses), compor o meu nono romance editado, Liliputine, que descreve momentos fortes da História europeia desde a morte de Estaline, em 1953 (Estaline é modelo de Putin, que não fala às crianças do acordo germano-soviético de 1939, para cada país devorar a sua parte na Polónia). Saliento duas invasões: em 1956, na Hungria; em 1968, já não só os tanques soviéticos, mas também outras forças do Pacto de Varsóvia, na Checoslováquia. O actual czar, liliputiano, tem outro modelo: Pedro, o Grande – que, todavia, media dois metros e três. Resumindo.

José de Arimateia e Maria de Jesus têm um filho, João Baptista, em 1956, e vivem as ilusões de uma Hungria livre. Arimateia participa no levantamento de Budapeste, conviva de Lukács Mária, que dera à luz um filho do embaixador soviético Yuri Andropov, e este rapta. Andropov será futuro secretário-geral do PCUS, na morte de Brejnev, em 1982. Milhares de vencidos são desterrados para várias regiões da União Soviética. Arimateia vive em Kaliningrado até Agosto de 1968: intérprete no exército que invade a Checoslováquia e põe fim à Primavera de Praga, salva uma adolescente, Hana, em cuja casa se refugia até 1971. Recusando contactar os comunistas portugueses no exílio, entra na vida de Miroslav, editor do realismo socialista europeu e latino-americano, e da empregada Krista, trazendo esta família para Lisboa.

Hana e João Baptista alimentam uma relação vigiada, suspensa entre 1979 e 1985, quando aquela acompanha Miroslav e Krista para Berlim Oriental – onde Lukács Mária lhe apresenta um espião soviético vindo de Dresden – e João Baptista faz espionagem (ou isso julga) ao serviço de Berlim Ocidental. Reencontram-se na Hungria e, em 1986, nasce Magda Baptista, hoje docente de Estudos Europeus, que organiza este romance-reportagem em 49 cenas muito cinematográficas.

O glorioso 1989 separa o casal: Hana entrega-se, de vez, ao espião de Dresden, nascendo Boris. Foge com os filhos para Moscovo. Os bons ofícios de Lukács Mária são recompensados com a visita do filho István, que não voltará a ver. João Baptista busca a filha, enquanto cicatriza a dor pelas capitais do Ocidente e, na pele de jornalista, visita a Roménia – sem encontrar Miroslav e Krista, aí desde 1985 – do ditador Ceausescu em fim de ciclo.

Abandonada, Hana entrega Magda ao pai João Baptista, diplomata em Roma (1992). Já, com a Revolução de Veludo, Miroslav e Krista regressam a Praga, onde Hana os visita, e sabe que o pai e mãe vivem em Moscovo. Cumprirá uma vingança, antes de, nas linhas finais, sofrer castigo. Sequestrada no silêncio, não acompanha o crescimento do filho, que encontra os verdadeiros avós, e se faz atirador de elite ao serviço do novo czar – Putin, seu pai –, cujo historial de vida é parcialmente referido, quando não imaginado.

João Baptista virara conselheiro em Moscovo; afastado desse cargo, regressa como administrador de empresas, fornecendo o palácio presidencial. Tarde percebemos que Lukács István, sósia de Putin, é o seu interlocutor: morto este, não se prossegue a mesma política? A invasão da Ucrânia obriga à fuga e a medidas solidárias que se impõem às democracias.

Liliputine funde As Viagens de Gulliver e sua ilha de Liliput com Putin(e), nome donde deriva ‘liliputinar’, cujos presente do conjuntivo e imperativo significam: «reduza Putin à sua pequenez ou insignificância». Olha-se ao complexo estalinista de quem, no seu metro e sessenta e oito, se sonha um novo Pedro, o Grande. No seu palácio de medos, repressivo da liberdade de expressão, e do qual fogem os que podem (um milhão, um milhão e meio), anuncia-se o estertor de um genocida, quem dera o regresso de um novo Gorbatchov. É exigência das democracias morais que se queiram independentes em todos os domínios defender os nossos valores.

 

Retirado de www.mdb.pt