sexta-feira, 22 de março de 2024

SÓ SEI QUE NÃO VOU POR AÍ! (Teresa Martins Marques)


(Aqui têm um exemplo da função social da literatura em que eu acredito.)

O «Cântico Negro» de José Régio (Poemas de Deus e do Diabo - 1925) é um dos textos de maior notoriedade na poesia portuguesa do século XX , tornando-se pelo seu veemente tom declamatório  um hino emblemático de rebelião, a própria rebelião por antonomásia, vindo a adquirir a função social que Régio certamente lhe não previra: Poema-bandeira de todo o inconformismo, de toda a incompreensão, de toda a diferença relativamente a uma norma-doxa que é, ou se supõe ser, por demais impositiva e violentadora da individualidade do homem.

Corroborando esta «tradição de leitura» do poema, afigura-se-nos um trágico grito de solidão na diferença, consubstanciado na rejeição do caminho que é o dos outros, o «nunca ir por aí». Os outros, são delimitados no poema como «alguns com olhos doces», «estendendo-me os braços, e seguros / De que seria bom que eu os ouvisse». (vv 1,23, – 1ª est.). Não existe qualquer marca textual que incrimine estes outros como possuidores de más intenções relativamente ao Eu poético. A alteridade que se estabelece entre Eu e os Outros é baseada na diferença, o que não implica necessariamente ainda um juízo de valor. Esse juízo surge mais tarde (5ª estrofe) através da desvalorização que os Outros sofrem relativamente ao Eu:

«Corre nas vossas veias, sangue velho dos avós.

e vós amais o que é fácil!»

Os Outros representam o velho, o ultrapassado (romântica recusa da «herança») vista da perspectiva do Eu que representa o novo, tudo o que é preciso conquistar: «Se vim ao mundo, foi

Só para desflorar florestas virgens,

E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada,

O mais que faço não vale nada» (4ª estrofe)

Os Outros («Vós») representando o velho, não poderão compreender o novo, ainda que lhe «estendam os braços». Quer se leia este estender de braços como solidariedade amiga ou imposição camuflada de hipocrisia, o certo é que o gesto redunda em inútil pois o Eu não acredita que a sua salvação dependa deles:

«Ao que busco saber nenhum de vós responde» (v. 3, 3ª est.)

[...]

«Como, pois, sereis vós

Que me dareis impulsos, ferramentas, e coragem

Para eu derrubar os meus obstáculos?» (vv 1-3 – 5ª est.)

Os Outros representam a quietude na pacatez da ordem estabelecida dentro dos conceitos do Útil («as estradas», «os tectos»), do Belo («os jardins», «os canteiros») do Sapiente («regras, e tratados, e filósofos, e sábios).

A utilização cumulativa da vírgula e da copulativa «e» transmite ao verso um tom de redundância, de organização desmesurada que ressalta ainda mais pelo violento contraste do 5º verso desta 6ª estrofe: «Eu tenho a minha Loucura!»

A loucura vista como um «bem» porque singular, porque produto de uma singular forma de individualidade, assumida como uma glória – maiusculada – em contraponto com a enumeração dos «teres» dos Outros. Loucura que é a suprema honra do Eu, a luz da sua noite/vida: «Levanto-a, como um facho a arder na noite escura». (v. 6 – 6ª est.). «Eu amo o Longe e a Miragem,

Amo os abismos, as torrentes, os desertos...»

(vv. 6, 7 – 5ª est.);

assumindo o canto de raiva sangrenta:

«E sinto espuma e sangue e cânticos nos lábios...

(v. 7 – 6ª est.);

assumindo a fatalidade da sua origem:

«Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo»

(v. 4 – 7ª est.).

O 2º verso da 7ª estrofe – «Todos tiveram pai, todos tiveram mãe» soa mais como um lamento do que como gloriosa afirmação de diferença que nem a condição de intemporalidade (o velho sonho do homem) consegue colmatar:

«Mas eu que nunca principio nem acabo».

Condição de eternidade no sofrimento, pela diferença, carregando uma culpa original que o transcende e que o condiciona:

«Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém»

(v. 1 – 7ª est.).

«Mais ninguém», excluindo os Outros, exclui também o próprio sujeito que passa à condição de «objecto guiado» e se perde, perdendo a liberdade. É a imagem de um Prometeu agrilhoado pelo que há de contraditório no seu ser dividido entre os impulsos positivos simbolizados por Deus e os impulsos negativos simbolizados pelo Diabo.

O sujeito poético tem consciência da sua condição de herói romântico e da necessidade de «derrubar os obstáculos» (v. 3-5ª est.) que o separam afinal de umanorma, podendo ler-se «obstáculos» como os primeiros muros de incomunicação que o cercam e que sente não poder derrubar, numa (lógica) contradição inscrita na duplicidade do (seu) ser.

A última estrofe insiste nessa contradição explicando a vida do sujeito poético através de metáforas que vão da exuberância («A minha vida é um vendaval que se soltou / É uma onda que se alevantou» (vv. 4, 5) até à pequenez da matéria:

«É um átomo a mais que se animou».

Átomo a mais entre tantos outros (semelhantes) mas que se animou, isto é adquiriu uma anima que lhe concedeu a diferença. O próprio título do poema inscreve em si mesmo a conotação positiva «cântico» e a negativa «negro» que para além da associação a satânico, implica o negrume da vida do homem complexamente oblíqua mas cuja  grandeza consiste, segundo Nietzsche, em ser uma ponte e não um fim e o que podemos amar no Homem é justamente a transição e a perdição.

Ponte como forma de vida superior (átomo com anima) que liga (pela inteligência) as restantes formas de vida entre si. Como ponte é transição para o divino (a perfeição) que não atinge e por isso se perde e se destrói através da auto-ironia com que se aceita, mas também se recusa.

O sujeito poético diferente dos Outros e diverso em si mesmo inscreve-se numa tradição romântica em que predominam «o desafio à norma, ao razoável, ao racional, a obsessão do diferente, o desejo de permanência na ruptura. Permanência do Eu, ruptura com tudo o que possa ser ou transformar-se no «não-eu». 

 

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