domingo, 27 de novembro de 2022

Entrevista realizada ao Doutor José Ribeiro

 


Entrevista realizada ao Dr. José ribeiro, natural de Celorico de Basto, nascido a 23 de novembro de 1963 a viver no Porto.

Médico cardiologista a desempenhar as funções de Diretor da Unidade de Tórax e Circulação desde 2018 e Chefe do Laboratório de ecocardiografia desde 2001 no Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia/Espinho e Consultor de cardiologia na Unidade de Saúde Local do Nordeste - Hospital de Bragança desde 1998 (há 24 anos, mais de duas décadas).

 

Esta entrevista foi realizada na unidade hospitalar de Bragança, no dia 22 de outubro de 2022, sábado, perto das dezanove horas, depois das consultas do Doutor José Ribeiro.

Enquanto eu colocava o material necessário à entrevista a postos, fomos conversando. O Dr. José Ribeiro é um grande conversador, dono de uma personalidade única, alegre e atento a todos os detalhes e nuances.


Maria Cepeda (M.C.): Boa tarde senhor Doutor José Ribeiro. É uma honra poder entrevistá-lo. Consideramo-lo quase um transmontano já que nos cuida dos corações há mais de duas décadas. O seu curriculum é impressionante.

Dr. José Ribeiro (DR.J.R.): Esta entrevista também significa que há a motivação de conhecer um pouco mais e procurar perceber um pouco melhor algumas coisas que já conhecemos e foi o resultado da nossa interação ao longo destes anos em que vou seguindo, como médico, o senhor Marcolino; já não sei quantos anos, mas já são alguns.

(M.C.): Já são alguns, sim senhor, talvez dez. Uma vez marcámos, até nem sei se foi o doutor que marcou, uma consulta em Gaia/Espinho e uma colega sua, de que não recordo o nome, consultou o Marcolino e depois da consulta, chamou por si que estava, casualmente, no corredor, e disse: “Ó Zé, este é para ti. Vais vê-lo lá em Bragança.” E assim tem sido. (Risos)

(DR.J.R.): Esta foi, para mim, uma semana dura, mesmo para esquecer. Além de toda a actividade clínica e na gestão… hoje vinha por aí acima a conduzir e pensei “Bragança custa um bocadinho porque é muito trabalho e tudo isso, mas senti um certo alívio de deixar para trás aquela pressão toda em Gaia e vir tratar os doentes aqui a Bragança. É caricato não é? Foi o alívio de vir trabalhar. 

(M.C.): (Risos) Sim. O alívio de vir trabalhar. Por acaso. Eu acredito…

(DR. J.R.): É engraçado não é?

(M:C:): É muito interessante…

(DR.J.R.): Portanto, há coisas que têm esse lado relativo. Esse percurso em Bragança não foi premeditado. Foi, um bocadinho, o somatório de várias coisas e foi também, talvez, o corolário de uma determinada forma de estar na vida. Depois a gente acaba por ter algum apego às pessoas, aos doentes e tudo culminou com isto.

(M.C.): Depois deste preâmbulo, vamos dar início à entrevista propriamente dita. É natural de Celorico de Basto, nascido a 23 de novembro de 1963, a viver no Porto. Médico cardiologista, a desempenhar as funções de Diretor da Unidade de Tórax e circulação, entre muitas outras, como está plasmado no seu curriculum.

Como é natural, começaremos pelo princípio. Fale-nos brevemente da sua infância e juventude.

(DR. J.R.): Falar da minha infância é um pouco remeter-me à minha origem na família onde nasci e cresci. Eu tenho cinco irmãos. Uma família de classe média. Filho de um gestor comercial e de uma comerciante. E desde muito cedo passei a ser, não só como irmão mais velho, mas também porque a situação assim o impunha, numa altura em que não havia grandes preconceitos em relação ao trabalho infantil e coisas do género, a ser um ajudante importante para a família e tive contacto com a loja que a minha mãe tinha, um contacto comercial no qual eu passava muitas horas. Era um estabelecimento que estava aberto sete dias por semana, em horário alargado.

            Claro que, a minha infância não se resume apenas a isso, mas uma boa parte do meu tempo foi passado na ajuda desse tipo de atividade a ponto de, como adolescente, a ter assumido, um pouco, como minha tarefa.

Portanto, tive esta experiência que me somou competências importantes em termos da relação com os outros; em termos da capacidade da comunicação. Teve algum enviesamento no meu crescimento porque não fui muito criança. Como eu costumo dizer, sempre fui desajeitado a jogar à bola porque não tive grande oportunidade de jogar à bola como compreendem.

A minha infância foi uma infância feliz, própria de quem tem muitos irmãos. Uma infância de responsabilidade precoce de quem é irmão mais velho e é obrigado, também, a trabalhar e depois há aqui um efeito da própria personalidade.

Personalidade porquê? Porque a pessoa que mais me marcou em termos educacionais foi a minha avó. A avó Camila que é o meu ídolo desde criança. Era uma senhora com uma visão muito católica e até um tanto aristocrática, em que as regras eram muito bem definidas. Em que ninguém podia dizer aquilo que lhe apetecia, sem perguntar aos outros se não estava a importunar. Em que, quando nos sentávamos à mesa, ninguém falava até que ela desse a ordem de que se podia falar. Foi uma educação desse género, que achei que me tinha moldado mais do que aquilo que eu, hoje, sou capaz de admitir. Portanto, nós somos aquilo que realmente somos e isso dita muito do nosso percurso.

(M.C.): Sem dúvida nenhuma, sim. Já agora, pergunto-lhe se sempre quis fazer medicina e porquê a cardiologia?

(DR.J.R.): Essa é uma boa pergunta porque eu nunca pensei ser médico até escolher a medicina. Curiosamente queria ser engenheiro químico. (Risos)

(M.C.): Pois. É igualzinho. (Risos)

(DR.J.R.): Eu queria ser engenheiro químico. Preparei-me para isso. Estudei e muito. Sei, ainda, muito de química. Até ao dia em que fiz a candidatura em que era preciso escolher a faculdade e o curso e aí pus medicina em primeiro. Entrei em medicina porque tinha boa nota. Não me pergunte o porquê desta decisão porque eu não sei responder. Sei que não fiquei triste e sei que os meus pais ficaram contentíssimos por eu ter entrado em medicina. Mas até aí foi tudo a pensar em química.

Estudei os últimos três anos na escola secundária em Amarante. Fiz quimicotecnia. Aprendi imenso de química, até processos químicos sabia. Havia algo para além do meu gosto quase inato pela astronomia. Havia também, algum gosto pela física atómica, química… algo desse género. Sempre achei o átomo e o sistema solar como algo muito parecido em termos dinâmicos.

(M.C.): Sim… A astronomia, todos os dias temos uma notícia nova e a química também. Não sei se tem acompanhado…

(DR. J.R.): Tenho acompanhado. Hoje, se estiver a dar algo na televisão sobre esses assuntos, fico atento imediatamente. Sempre fui muito proativo, ia à procura de coisas novas, sempre gostei imenso de ler. Tinha a sorte de, na minha adolescência, somar histórias fantásticas. Tinha uma vizinha que me emprestava livros de cowboys. Cheguei a ler nas férias, novecentos e cinquenta livros.

Lembro-me da amizade que fiz com algumas pessoas que eram testemunhas de Jeová… não queria saber muito de religião, mas tinham livros e davam-me os livros de graça que eu lia. Desde a amizade que eu tinha com dois senhores que eram irmãos e tinham uma tipografia que editava o jornal da terra e que moravam na minha rua; eu não saía de lá porque me proporcionavam leituras. Cheguei mesmo a estar inscrito na embaixada da União Soviética em Lisboa porque esses meus vizinhos eram comunistas e me influenciaram, só porque, assim, me proporcionavam livros que eu sempre lia de uma forma crítica. Portanto, sempre gostei de ler, tinha sede do conhecimento.

O meu gosto pela química, por exemplo, levou-me a ter montado na cooperativa de vinhos onde o meu pai trabalhava, um laboratório de análise de vinhos. Aprendi, com isso. Pus o laboratório a funcionar, através do qual os sócios da cooperativa classificavam as uvas e recebiam de acordo com a qualidade do seu vinho analisado através do mosto.

(M.C.): Com que idade?

(DR.J.R.): Tinha os meus dezasseis anos, dezassete.

(M.C.): Puxa! E entrou para medicina com os dezoito da praxe. Incrível!

(DR.J.R.): Sim. Nessa altura eu não sabia muito disso, mas já tinha alguns conceitos. Aquilo também não era muito difícil. Montei o laboratório que assentava em duas técnicas. Arranjei um espectrofotómetro que media no vinho mosto o teor de glicose e conforme a glicose que tinha… quanto mais tivesse, mais álcool ia ter depois de fermentado e, portanto, era mais ou menos simples. Arranjei umas tabelas e aquilo funcionou e creio que ainda hoje, o laboratório funciona e bem, se calhar com alguns métodos mais sofisticados.

Na altura, eu ganhava algum dinheiro e pagavam-me algumas horas no tempo das vindimas e com isso financiei alguns dos livros mais caros que eu tinha. Ainda no secundário tinha alguns livros em espanhol porque em Portugal não havia grande coisa e depois os livros de medicina que eram muito caros.

(M.C.): Então, foi uma inspiração, digamos assim, que o fez colocar o X na medicina. Estou a brincar obviamente mas, alguém que queria ser químico, de repente virou e fez medicina… E agora pergunto: Porque Cardiologia? Porque essa especialidade?

(DR.J.R.): Fiz o curso de medicina de uma forma muito fundamental, aprendendo de uma forma muito sequiosa todo o conhecimento desde a anatomia à fisiologia, mas a fisiologia… ainda hoje os meus colegas me dizem que em fisiologia eu me distingo de uma forma especial, tal como na imagem médica. Mas isso tem a ver com a minha curiosidade de saber porque é que as coisas acontecem. Tudo tem uma lógica. A cardiologia tem um pouco isto tudo. A cardiologia não é propriamente a ciência de apenas um órgão, o coração, que tem uma função dinâmica e que compreende muita coisa. Desde a dinâmica dos fluidos, porque funciona como uma bomba e faz circular o sangue obedecendo às leis da física, porque exerce uma força. Se nós pensarmos que o coração trabalha de uma forma espontânea devido a um impulso elétrico que se gera espontaneamente e que há como que uma pilha natural que faz o coração trabalhar… Isto tudo é genial.

(M.C.): É genial realmente.

(DR.J.R.): Portanto, tudo isso me fascinou e, a dada altura, tornou-se uma escolha lógica. Já que estou na medicina, isto consegue congregar alguns desses meus interesses de vária ordem, numa mesma disciplina: Cardiologia.

(M.C.): Veja senhor Doutor, nós conhecemo-lo há alguns anos, mas não o conhecemos de todo porque, quem vê um médico competentíssimo a fazer o que tem de fazer e mais ainda, vimos a descobrir uma pessoa que poderia ter sido tudo o que quisesse, porque em qualquer área por onde enveredasse, seria notável.

(DR.J.R.): Possivelmente isto tem a ver, com o nosso empenhamento. A grande força motriz é a nossa curiosidade e o nosso gosto por uma ou outra área, o que nos leva, também, a procurar mais e mais. Depois, há aqui, um fundo comum que é o trabalho. Eu costumo dizer que ninguém pode ser um bom cirurgião se operar apenas uma vez por mês. Não estou a dizer que seja mau. Digo que não consegue. Há aqui esta lógica: a gente que faz muito e faz muitas vezes tem uma maior probabilidade de vir a ser muito bom nisso.

            (M.C.): Tenho na mão o seu curriculum. São doze páginas resumidas e acaba por ser muito técnico para mim. Sou professora. Não sou da medicina. O que eu comprovo, sem dúvida, é o enorme trabalho em que se meteu e em que todos os dias se mete. É impressionante o que faz e como tem tempo para fazer. E eu, por mais viciada em trabalho que seja, ainda me custa compreender como tem tempo para tudo. E fico extremamente admirada ao ponto de dizer “Caramba! Será que sou capaz de entrevistar este senhor?”

(DR.J.R.): Talvez, o segredo esteja, por um lado, na minha capacidade de trabalho e esta curiosidade permanente e ainda, a capacidade de congregar à minha volta, determinadas pessoas.

Eu tive a oportunidade de conhecer um pouco do mundo, pela minha curiosidade. Sair do país foi também à procura disso. Estive algum tempo na Bélgica, onde contactei com situações muito diferentes. Estamos a falar de há quase três décadas, num hospital muito mais evoluído, já com uma experiência enorme em transplante cardíaco. Foi na altura em que, em Portugal, pouco se falava desse assunto. Depois disso estive algum tempo em Londres, aonde contactei, na Universidade de Londres, com algumas coisas sobre investigação.

Todas estas experiências deixaram em mim mais do que um fascínio. Deixaram em mim uma responsabilidade de trazer para cá qualquer coisa. Mais uma vez, vem ao de cima, a minha característica de irmão mais velho que, habituado a lidar com os mais novos, nos traz, ao longo da vida, algumas vantagens na relação entre pares, na capacidade de dinamizar equipas. Tudo isto é o corolário dessa capacidade.

(M.C.): Depois da especialidade não se deu tempo para descansar. Quer falar-nos do seu percurso académico e profissional?

(DR.J.R.): O meu percurso académico é mais balizado no tempo. Foi um percurso que não foi muito recheado daquelas atividades de queima das fitas e algo assim. Foi muito focado. Sou bastante exigente e na altura chamava a mim muita da responsabilidade de ajudar a educar os meus irmãos. Portanto, eu não tinha muito tempo livre. Fiz, durante vários anos, durante o curso, esta experiência com a análise dos vinhos; fiz algum trabalho nas finanças e aprendi como é que aquilo funciona. Fiz toda uma série de coisas que na altura permitiram adquirir novas competências.

Assim resumiria o meu percurso no tempo académico. Não fui o aluno brilhante com a melhor nota do curso. Fui um aluno com uma nota média alta e que já tinha mais ou menos definido o que é que gostava mais e aquilo de que gostava menos.

Cheguei ao final do curso e havia duas áreas, curiosamente, de pouca semelhança. Ou a Psiquiatria, que é uma área muito diferente, ou a Cardiologia, com a Cardiologia a ganhar claramente. E foi essa a opção.

Depois de entrar em Cardiologia foi uma ligação total. Fui parar ao Hospital de Gaia, onde a Cardiologia quase não tinha nada. Estava no início e fui um dos primeiros médicos internos no serviço. Posso dizer que vivia no hospital. Isso deu-me a oportunidade de aprender imenso. Já nessa altura sobressaia o gosto pela imagem de diagnóstico. E porquê? Porque eu achava extraordinária a ecocardiografia que, ainda hoje faço com alegria. Faço com muita facilidade porque é realmente um gosto imenso. Ter uma sonda de ultra-sons, encostá-la ao peito de alguém, e ver o que se passa lá dentro, é extraordinário. Eu ficava encantado e ainda hoje fico. Portanto, dediquei muito do meu tempo a conhecer isso até ao ínfimo pormenor. Até, inclusive, ler os manuais das máquinas o que agora nenhum médico faz e eu fazia.

Depois desta fase do internato, já como especialista, aí sim, fui procurar outras fontes de conhecimento fora do país para abrir horizontes, para perceber melhor. Muitas destas saídas foram a expensas minhas.

Terminada a especialidade, logo após essa experiência internacional, deu-se uma coincidência que foi uma espécie de atropelo processual sobre a minha continuidade em Gaia. Tinha que se abrir um concurso. Havia lá umas dificuldades e na altura achei que não foi feito tudo aquilo que eu merecia como profissional no hospital. Surgiu a oportunidade de abrir um concurso em Bragança. Perguntei: “Quantos médicos cardiologistas há em Bragança?”. “Nenhum.” “Nenhum? Então cá está um!” Irreverência pura, confesso. Completamente. Não sou transmontano. Conhecia mal Bragança. Acho que era a segunda vez que eu vinha a Bragança, mas vim de Londres e na semana seguinte estava em Bragança. Concorri. Fiquei em primeiro. Cheguei cá e pronto. Também posso contar porque é que as coisas acontecem mas, a partir daí Bragança passou a significar muito, até hoje.

(M.C.): Há alguns anos, numa consulta que fez ao meu marido no hospital de Bragança, falou-se do seu tempo de estudante universitário no Porto. Referiu as amizades que daí resultaram e, embora tenha sido uma breve conversa, julgamos que dessa experiência, pode ter nascido a sua vontade de ajudar os transmontanos. Quer falar disso?

(DR.J.R.): Beneficiou muito daquilo que eu sou como pessoa e de ter essa capacidade extra de perceber os outros numa dimensão multissensorial mais do que apenas esta minha experiência com, por exemplo, um colega de quarto que era cego e viveu comigo muitos anos. Permitiu-me conhecer melhor o mundo e ter uma perceção de um mundo diferente e que depois, não vou negar, também teve alguma relevância. Ao contrário daquilo que fui presenciando de alguns colegas que vinham para Bragança e que ficavam desiludidos em pouco tempo, fruto da interioridade, fruto das dificuldades que aqui encontraram.

Eu sempre tive uma visão um pouco diferente. Procurei olhar para as pessoas e perceber, estou a falar sobretudo dos colegas, os médicos que cá trabalham e perceber porque é que não fazem melhor. Porque é que isto é assim? E comecei a perceber que havia aqui muito valor intrínseco. Havia aqui muita gente competente, capaz, só que um tanto ou quanto acomodada e como não sou de me dar por vencido, na altura, lembro-me do Diretor do Hospital, Dr. Carlos Vaz, que ainda é hoje, que me perguntava: “Ribeiro é para ficar cá?” E a resposta era: “Enquanto cá estiver é para sempre.” Ele ficava a olhar para mim e dizia: “Vamos trabalhar, vamos fazer coisas. Arregaçar as mangas. Vamos lá.”

Comecei a montar o serviço de Cardiologia como se fosse cá ficar. Era preciso medicação nova para a urgência que não havia… toca a fazer isso. Havia um desfibrilhador muito bem guardado que pouco servia e que fui motivando as pessoas a utilizá-lo. Tive até algumas histórias curiosas nessa motivação dos colegas. Um dia foi preciso. Era um doente já conhecido e que recorria ao hospital com a mesma doença de ritmo cardíaco. Eu estava em Macedo de Cavaleiros. Ligaram-me e eu disse: “Vou já. Vão fazendo”. E o vão fazendo, foi usar o desfibrilhador. Se havia dia em que tinha de correr mal, foi nesse mesmo dia. Aquilo correu mal. A arritmia degenerou numa arritmia pior e era preciso carregar num botão do desfibrilhador que eu não tinha ainda ensinado muito bem e eles aprenderam por eles, por analogia de que era preciso isso. O homem salvou-se.

Cheguei cá, encontrei a equipa, médicos, todos a suar porque tinham passado um mau bocado. As coisas podiam ter corrido mal. Lá lhes dei esse apoio: “Muito bem! Foram fantásticos!” Hoje estou convencido de que deve ter sido a maior lição que tiveram, porque nunca mais houve problemas com os botões do desfibrilhador, que passou a ser usado muitíssimo bem a partir daí. Às vezes há estas histórias que só acontecem se nós as procurarmos e dinamizarmos isso. Fui encontrando muitos colegas de muita qualidade que foram fazendo coisas e que foram, digamos, bebendo neste dinamismo uma vontade de fazerem eles próprios mais e melhor.

Recordo-me de ficar um pouco chocado quando se obrigava um transmontano a ser transferido para outro hospital em circunstâncias de risco elevadíssimo com um enfarte, por exemplo. Nessa altura, convenci as pessoas responsáveis a fazerem essa evacuação de helicóptero. E a primeira evacuação foi feita comigo porque um doente com um enfarte tem de ir com acompanhamento médico e tem que ir com todas as condições.

Houve aqui muita coisa que foi mudando, fruto desses primeiros meses aqui em Bragança. Tive colegas que foram extraordinários, que sempre tiveram essa boa relação para comigo e porque eu acredito que muito da interioridade se muda através das pessoas, mais do que através de acessibilidades ou equipamentos. As pessoas é que são fundamentais.

(M.C.): Concordo sem dúvida nenhuma, pois nós podemos ter as melhores auto-estradas do mundo, mas se não as usarmos, para que é que elas servem? Podemos ter um aeroporto supersónico, mas se não tivermos aviões, também não serve para nada. O que faz a diferença são as pessoas. É a vontade das pessoas. É o facto de quererem fazer.

(DR.J.R.): Todos, em geral. Eu não sei se algum dia tive a oportunidade de contar uma das maiores lições que recebi de um transmontano. Estava na consulta e aparece-me uma senhora, próximo dos sessenta anos que não tinha um braço. Não tinha um braço e queixava-se de uma dor no peito. Depois de conversar um pouco, dei comigo a dar-lhe algumas lições de moral, por bem, por causa da sua ansiedade, pois achei que não havia ali muita doença. E aquilo era também muito stresse e ansiedade. E a senhora, a dada altura, passou a falar e disse-me: “Olhe doutor, eu fui a primeira mulher em Trás-os-Montes, não foi a usar calças, foi a trabalhar numa fábrica que na altura era uma coisa impensável. Fui trabalhar para uma fábrica de madeira. Tinha dezassete anos. Então, quis o destino que eu cortasse uma mão numa máquina. Toda a gente foi extraordinária. Pegaram na mão, meteram-na em um saco de gelo, trouxeram-me para o hospital. No hospital foram todos muito rápidos a atender-me. Puseram-me numa ambulância a caminho do Porto para o hospital de Santo António e na altura eram seis horas e meia de viagem.”

Aos anos que vai, eu calculo que pela idade da senhora, perante o contexto, estaremos a falar de há mais ou menos quarenta, cinquenta anos atrás. Entretanto, os bombeiros e toda a gente muito eficiente… mas eram seis horas. A viagem começou depois do almoço e os bombeiros iam a passar por Penafiel pelas oito da noite e resolveram parar para ir comer alguma coisa. E a senhora que ia com o braço garrotado e a mão no gelo chegou lá e em vez de ficar com a mão, ficou sem o braço.

Então ela contava isto de forma muito resignada e dizia: “Sabe, pode pôr aqui os melhores médicos da Clínica Mayo, sejam eles quem forem. Mas se não ensinar até o próprio bombeiro ou a funcionária da limpeza ou toda a gente, isto nunca consegue ser excecional.”

Esta foi das maiores lições até hoje. Ouvi em silêncio. Fiquei sem palavras para a senhora. Fiquei até um pouco envergonhado de estar ali a dizer à senhora que não se devia stressar, porque, realmente, mostrou que tinha tido uma vida feliz, teve filhos e foi uma pessoa normal e que não ficava de forma nenhuma magoada com a situação. Fizeram o que, na altura, sabiam fazer. Foi uma grande lição.

(M.C.): Realmente é uma grande história. De outubro a dezembro de 1996 foi-lhe concedida uma bolsa avançada na Bélgica, na cidade de Aalst. Fale-nos, por favor, dessa experiência e do que daí resultou para a sua vida profissional.

(DR.J.R.): Esse é um hospital já avançado. É um hospital onde eu próprio procurava melhorar as minhas competências na área da imagem de diagnóstico, mas depois acabei por encontrar lá um pouco de tudo. Vivia a dois quarteirões, vinha a pé para o hospital e estava lá desde muito cedo e rapidamente o Diretor me convidou a fazer parte de vários projetos, desde seguir os doentes com transplante cardíaco, muito para além daquilo que estava previsto que eu fizesse.

Foi um período de grande experiência, muito gratificante por um lado, mas ao mesmo tempo também de abrir horizontes. Permitiu-me perceber realmente, que a saúde em Portugal precisava de mais, de muito mais. Sentia-se, sem dúvida, a diferença. Claro que trouxe essa experiência, e isso acabou por ser determinante em muitas outras coisas. Depois, de uma forma serena, também persistente, fui-a implementando no dia a dia. Fazendo novas iniciativas e até contaminando, entre aspas, os colegas para fazermos mais e melhor.

(M.C.): Desde 2001 desempenha as funções de Chefe do Laboratório de Ecocardiografia do Centro Hospitalar de Gaia e a partir de 2018 desempenha as funções de Diretor da Unidade de Tórax e Circulação do mesmo centro hospitalar. É, ainda, Consultor de Cardiologia da Unidade de Saúde Local do Nordeste, no Hospital de Bragança, cargo que desenvolve desde 1998, apenas para citar alguns dos cargos. Como consegue conciliar tudo o que faz?

(DR.J.R.): A responsabilidade pelo laboratório de ecocardiografia é consequência natural do meu gosto pela ecocardiografia e um certo reconhecimento, neste momento, a nível nacional do nível de competência atingido. Foi fácil porque é algo de que eu gosto. Brincam comigo os colegas de Gaia porque me chamam o Cristiano Ronaldo da ecocardiografia.

(M.C.): Muito bem. É um grande elogio, não há dúvida.

(DR.J.R.): É engraçado porque não é propriamente trabalho. É algo de que gosto. Depois achei, que pensarmos apenas na nossa vida, por muito bons que sejamos, pensar centrados apenas em nós e não transmitir conhecimento, é pensar muito curto na vida. Foi, talvez, dos exercícios mais difíceis que tive de fazer, que foi ensinar, algo que julgo fazer muito bem. Porque olhar para os colegas a fazer mal e ter a paciência, respirar e esperar que eles façam um bocadinho melhor, não é fácil. Mas isso também me ensinou muito e criei um grupo de trabalho extraordinário. Tenho vários seniores a trabalhar comigo lá. Só sou chamado quando há alguma coisa mais complicada. Então estou lá eu e é assim que eu tenho de encarar as coisas. A partir daqui, chego à conclusão de que já tenho gente muito preparada. E assim, construí um laboratório de imagem já muito voltado para o futuro e para as novas tecnologias.

(M.C.): E conseguiu apetrechar um laboratório preparado para o futuro.

(DR.J.R.): Neste momento é o mais bem equipado do país. Recebe entre vinte a trinta formandos por ano, que vêm lá para aprenderem a fazer ecocardiografia. Tem catorze ecógrafos ligados em rede que debitam informação para o arquivo de imagem. Foi o primeiro laboratório digital do país a partir de 2003…

(M.C.): Que maravilha. Em 2001 entrou, em 2003 já tinha isso tudo!

(DR.J.R.): Isso foi fruto de uma investigação feita na área de imagem com a Universidade de Aveiro, onde fui o especialista que desenhou o que os engenheiros fizeram. Salvaguardei para o hospital uma versão de demonstração e passámos a fazer isso. Depois, este desenvolvimento, ainda deu para fazer uma missão internacional de ajuda a Moçambique. Este programa foi o mais longo programa de telemedicina transcontinental. Já acabou, mas ainda durou três anos e meio. Foi fruto dessa evolução tecnológica mas, sobretudo, construímos um laboratório que hoje faz mais de doze mil exames por ano. É, neste momento, o mais bem apetrechado do país, sem dúvida nenhuma.

Isso é apenas uma parte do meu tempo porque depois começaram a surgir outros desafios um pouco mais elevados e nisto nós também não podemos olhar para trás e fazer só aquilo de que se gosta mas, em determinadas alturas, sermos capazes de dar um pouco das nossas competências para outros voos e fui convidado para dirigir a unidade de gestão integrada do tórax e circulação que compreende quatro serviços: pneumologia, cirurgia vascular, cirurgia cardíaca e cardiologia e aí vêm ao de cima algumas das competências da gestão. Usar bem os meios.

Até a minha experiência comercial da adolescência me veio trazer algumas mais-valias mas foi, sobretudo, a capacidade de motivar equipas, de ouvir os colegas, de interagir, de levá-los a fazer mais e melhor. Tem sido este o segredo desta função. Claramente, no sistema nacional de saúde em crise e com grandes dificuldades é aqui que tem feito a diferença, a minha função. Não é minha ambição natural essa direção. Tive oportunidade de ir mais alto, bem mais alto até do que isso no hospital, mas sempre contive porque acho que sou mais útil noutras coisas.

Outras opções poderiam comprometer outras atividades como vir a Bragança. Para dar continuidade a este percurso, a obra tornou-se maior que o obreiro e Bragança passou a ser mais importante que eu próprio. Hoje, aparece alguém no hospital de Gaia, de Bragança e vêm logo os colegas “Ó Zé? Está aí alguém da tua terra. Eu não sou de Bragança, mas para todos os efeitos, passei a ser. Portanto, foi uma sequência, uma boa relação com os médicos daqui e quando voltei para Gaia ficou essa boa relação e aceitei vir cá uma vez por mês. O meu telefone está permanentemente disponível para me ligarem quando precisarem de alguma coisa. E esta atitude foi sendo interpretada como uma mais-valia e até uma prova dessa amizade.

Os médicos de medicina interna de Bragança fizeram muito pela cardiologia, com a minha ajuda. Fui estabelecendo Gaia como uma porta aberta e eu como elemento facilitador da ida dos doentes daqui para Gaia. Eu tinha a perfeita noção de que não era justo neste mundo, alguém ser pior tratado só porque teve menos sorte, em vez de nascer em Gaia, nascer em Bragança. Isto estava subjacente. Depois tinha cá excelentes médicos: a Dra. Teresa Ramos, a Dra. Prudência, o Dr. Ângelo e muitos outros. Alguns deles já não estão entre nós. Pessoas de um valor extraordinário que através desta nossa amizade, desta interação se criou aqui uma multiplicação de competências.

Tenho a perfeita noção de que houve um período de ouro em Bragança, porque as pessoas passaram a ter melhores cuidados de saúde e isso, de alguma forma, teve a ver com esta dinâmica. Para mim, isto não é trabalho.

Fica esse entusiasmo e depois há uma altura a partir da qual são os próprios doentes. Há doentes que eu sigo há muitos anos e que a dada altura me custava deixá-los. Como é que eu vou deixar isto? Era muito difícil. Eu partilho com vocês aquilo que tenho neste momento na memória.

O que eu acabei de fazer, num internamento, com uma doente que eu sigo há muitos anos, e não fiz mais do que comprovar que o coração dela está em sofrimento, mas é um sofrimento abdominal, num contexto de oitenta e nove anos as resistências são menores, mas vim de lá confortado porque, além de a cumprimentar, consegui extrair-lhe um sorriso apesar de ter uma sonda nasogástrica. A senhora olhou para mim, sorriu e prometeu-me algo que eu lhe pedi que foi “vai vencer isto porque eu vou ficar à sua espera na próxima consulta.” E o sorriso da senhora fica comigo. Eu não sei, não tenho a certeza, mas são estas pequenas coisas que também nos alimentam.

(Nota da entrevistadora: Antes de ir ter connosco para esta conversa, foi ver uma senhora com oitenta e nove anos, internada no hospital de Bragança, recém-operada à zona abdominal. Foi a filha da senhora que lhe fez o pedido.)

(M.C.): A vida sem estas pequenas coisas não tem muita importância…

(DR.J.R.): Há este lado humano, estas pequenas coisas, que em Bragança são particularmente importantes. Vejo os brigantinos ou bragançanos, como a gente queira chamar, como um povo diferente. Têm-se vindo a atenuar estas características com a abertura mas, daquilo que tem menos valia, de algum recatamento ao primeiro contacto, próprio das pessoas de Bragança, compensa largamente, na sua capacidade de criar laços de amizade que são eternos. E mais, um amigo de Bragança, não só é um amigo para sempre, como quem vier connosco é amigo também.

(M.C.): É verdade. Não há dúvida nenhuma que assim é.

(Dr.J.R.): É curioso. Isto é único.

(M.C.): Fale-nos, por favor, do Time do Coração sobre Doenças Cardíacas Estruturais.

(DR.J.R.): Esse é a cereja no topo do bolo. Gaia é o motor da inovação. Muito do que se faz em inovação em Gaia tem a ver com esta procura permanente. Tive aqui um grande mentor. Um homem que eu admiro e que foi o criador do serviço de Cardiologia de Gaia, que foi o Doutor Vasco Gama de quem sou amigo pessoal e que muito admiro. A quem muito devo e que me inspirou muito neste caminho. O Dr. Vasco reformou-se já há uns anos e deixou o serviço e é preciso que alguém também vá pensando nisto.

A área da cardiologia, sobretudo nos últimos dez, doze anos tem mudado muito, imenso, imenso. Cada vez mais tratamos o coração sem ser preciso abrir o peito. Através de novas técnicas como substituir válvulas, corrigir defeitos congénitos… nós fazemos muitos tratamentos hoje em dia, já sem abrir o peito, sem ser necessário cirurgia cardíaca.

Ora. Qual é o segredo? O segredo é nós sermos capazes de, primeiro: fazer um bom diagnóstico e conhecer bem o problema, mas depois ser capaz de trabalhar dentro do coração com o recurso à imagem.

(M.C.): Lá está a imagem…

(DR.J.R.): Como atingi este nível de conhecimento da imagem, acabei por ser aqui o elemento privilegiado em tudo isto. E como sou curioso e não me dou por vencido, tudo o que há de inovação… fiz muitos amigos a nível mundial. Há dias falava com um amigo israelita que está numa dessas empresas Startup na área da medicina e disse-lhe: “Olha, eu vou ter que ver em breve porque quero ter isso cá em Gaia.

Há muitos procedimentos, hoje em dia, que são feitos em Gaia pela primeira vez. Isto é um pouco o resultado desta procura e abrimos portas para que assim seja, mas as empresas também reconheceram a equipa de Gaia como gente hábil e com experiência capaz de fazer bem as coisas. Portanto, muitos destes procedimentos são muito bem analisados por uma equipa multidisciplinar de vários especialistas, que inclui cirurgião cardíaco, intensivistas, especialista em imagem, cardiologista de intervenção e anestesista, a que nós chamamos de “heart team”, ou seja, equipa do coração.

Heart Team é isto mesmo, é a equipa do coração. São vários especialistas que fazem uma análise para saber se este doente específico tem ou não tem condições para ser tratado. Às vezes não tem porque já é tarde demais. Outras vezes não tem porque pela idade do doente não beneficia muito e o risco não compensa. Outras vezes não tem porque não há ainda, dispositivos inventados para isso. Quando chegamos à conclusão de que há, a equipa prepara-se e fazemos o tratamento. Por ano, procedimentos deste tipo, já fazemos, mais ou menos, entre duzentos a duzentos e trinta. É um centro de referência a nível nacional.

(M.C.): Que maravilha.

(DR.J.R.): Não só na formação mas, também, no tratamento destes doentes. São normalmente tratamentos muito caros. Estamos a falar de muitos milhares de euros por doente. Como tal, tem que ser muito bem escrutinado… e feito por equipas bem preparadas.

(M.C.): Serviço Nacional de Saúde?

(DR.J.R.): Serviço Nacional de Saúde e tem que ser feito pelos melhores.

(M.C.): Sem dúvida nenhuma porque é muito dinheiro que ali está. E não se pode correr o risco de não resultar.

(DR.J.R.): É isto tudo que sobressai de Gaia como aquela imagem que as pessoas têm hoje em dia do Hospital de Gaia na área cardiovascular, que é realmente uma referência. Não são só as notícias mas também aquilo que as pessoas sentem. Vão à procura de algo que consiga trazer-lhes melhor qualidade de vida e que conseguem encontrar aí. Por outro lado, está esta equipa que se dinamiza, que se motiva, que às vezes também se sente cansada, mas que depois, há sempre alguém que diz “vamos lá porque este é o caminho.”

(M.C.): Por isso é que nós estamos aqui. Senão também não estávamos, a esta hora da noite, num sábado.

(DR.J.R.): Sinto-me realmente um felizardo porque consigo congregar os dois lados do exercício da medicina, muito diferentes, mas que me compensam.

(M.C.): No livro “Um século de história da Cardiologia em Portugal”, com 650 páginas, publicado há 2 anos, a sua participação inclui um texto sobre a Cardiologia em Bragança, que abarca o período desde a inauguração do Hospital de Bragança até à atualidade. Quer falar-nos um bocadinho mais desta experiência? Sabe, com certeza, dizer-nos porque é que não existe aqui, neste hospital, ou no de Mirandela ou no de Macedo de Cavaleiros um serviço de Cardiologia como deve ser…

(DR.J.R.): Essa é uma boa questão. Em primeiro lugar, porque é que este livro passou a ter um texto sobre Bragança? Porque eu próprio achei que não devia ser uma página em branco. É preciso falar de Bragança. Porquê? Porque em Bragança, estou a falar do Nordeste, vive gente com tanto mérito ou às vezes mais, do que gente que vive em Lisboa ou no Porto. Agora, isto é uma luta que eu não tenho que lutar por Bragança, mas vou fazendo o mínimo que considero capaz de atenuar essa grande dificuldade. Porque é que as pessoas não ficam em Bragança? Porque é que Bragança não teve este direito? Não é só a Cardiologia. É mais abrangente que isso. Ao longo deste tempo, também já refleti sobre isto, já pensei… cheguei até a reunir com alguns amigos da área de Bragança e a voluntariar-me para integrar alguma equipa do lobby sobre Bragança, mas eu acho que, aqui, a grande diferença tem a ver com dificuldades do próprio sistema nacional de saúde que, em determinadas regiões, se acentuam ainda mais. E porque? Porque às vezes se considera que se pusermos em Bragança mais um pouco de dinheiro para isto ou para aquilo, eles entendem-se e já fica tudo resolvido. Mas não é. Não é esse o caminho. E não é esse o caminho porque muitas vezes esse dinheiro que é dado a Bragança não se organiza da melhor forma. Não é única e exclusivamente falta de meios, mas é a incapacidade de valorizar os seus recursos humanos, porque isto faz-se com pessoas. Nós podemos pensar que muitas das pessoas ilustres deste país no Porto e, sobretudo, em Lisboa, algumas no governo e outras noutras áreas, são de Bragança.

Bragança viu nascer muitas das pessoas de maior competência a vários níveis. Porque é que não as tem cá? Aí é que está o cerne, mesmo, do problema, porque tudo isto deve e só se resolve, com pessoas. Claro que as acessibilidades também, mas faltou um plano estratégico capaz de fazer de Bragança, quem diz Bragança, eu não sei se o Nordeste precisa de três hospitais… se não seria melhor ter algum pelo meio, equidistante, mas quem sou eu para estar aqui a dar sugestões maiores. Reconheço que há coisas que poderiam, se cativássemos essas pessoas, ir mais longe. Nestes anos, quase um quarto de século, das obras que mais marcou o desenvolvimento de Bragança foi o IPB (Instituto Politécnico de Bragança). E porquê? Porque fixou conhecimento e fixou pessoas com um elevado nível de formação tendo capacidade de multiplicar esse conhecimento. A universidade é, realmente, um excelente exemplo. É o motor, é o embrião de muito do desenvolvimento. A nível da saúde sempre existiu esta dificuldade porque as pessoas se acomodam, nem todos têm a mesma reação que eu tive que foi olhar para as pessoas e pensar “se não fazem melhor, se calhar é porque não sabem. É porque há algo mais.”

Fui falando com outros colegas que quando chegavam cá, não estavam para isso. É um pouco o preço que Bragança paga. Se não olharmos para essa situação, obviamente que um dia, Bragança vai ter especialistas, mas apenas as sobras dos grandes centros. Precisamos de gente competente e também não é dando subsídios de interioridade que vão atrair essas pessoas. Longe disso. É preciso que as pessoas venham para cá mas que sintam “que não estagnam. Precisam de sentir que têm os dois lados. Eu tenho o top da tecnologia na cardiologia em Gaia e um bocadinho do coração aqui.

Este texto no livro “Um século de história da Cardiologia em Portugal” foi propositado. Falei com os colegas e disse-lhes “Bragança também existe e no livro também deve ir.” Não é preciso muito. Quando vim para cá, não havia nada. Não me acobardei. Trazia o estetoscópio e como é que eu ia ver o coração dos transmontanos só com o estetoscópio?

Falei com o Dr. Telmo Moreno que tinha um ecógrafo para ver as barrigas e disse-lhe: “Olhe, não tem sonda para cardíacos mas não interessa. Posso usá-lo para ver os corações?” “Ó Zé, claro.” Ficou a olhar de lado pra mim pensando o que é que eu iria fazer. Comecei a usá-lo para os doentes. Para muitos fez a diferença. Mais. Sentei-me no Word a fazer os relatórios. Ao fim de um mês e meio já tinha feito cento e cinquenta relatórios de ecocardiogramas e depois, fiz uma cartinha bem escrita. Falei com o Dr. Carlos Vaz. Falei com o cardiologista pediátrico que vinha cá, excelente, o Dr. José Monterroso, top da cardiologia pediátrica. Bragança, nisso, teve sorte e fiz uma cartinha dirigida ao Professor Rodrigues Gomes que era, na altura, o Presidente da Fundação Calouste Gulbenkian a dizer “sou um transmontano, gosto muito disto, sei umas coisas de eco e não temos um ecógrafo e precisávamos de um ecógrafo para os doentes cardíacos. Tenho aqui o José Monterroso que sabe muito das crianças e precisa e tal…”. Depois falei com o Dr. Vaz, falei com mais uns amigos, umas cunhas, jogos políticos e tal. Bom, um mês depois da carta ter chegado à Gulbenkian o Professor Rodrigues Gomes deu o aval e ofereceu vinte e sete mil contos para comprar um ecógrafo para Bragança.

(M.C.): Que maravilha! (Risos)

(DR.J.R.): (Risos) É verdade.

(M.C.): Naquela altura era muito dinheiro.

DR.J.R.) Era. Foi a Fundação Calouste Gulbenkian que fez essa oferta e esse senhor ainda é vivo. Há meio ano encontrei um amigo comum e fiz questão de lhe mandar um abraço e agradecer em nome de todos os transmontanos, quero que se sinta bem e muito lhe agradeço o gesto que fez. E aquele ecógrafo fez muito bem a muita gente enquanto durou e foram para aí uns dezasseis anos.

(M.C.): Temos muito que lhe agradecer doutor.

(DR.J.R.): O meu maior conforto é a paixão por aquilo que eu faço também.

(M.C.): Mesmo assim temos muitíssimo que lhe agradecer. E se não agradecemos é porque somos ingratos. Muito obrigado pelo que tem feito por nós.

Sendo consultor no programa da manhã da RTP1 “Praça da Alegria” sobre problemas relacionados com o coração e formas de o manter saudável, que importância atribui a este tipo de conteúdos?

(DR.J.R.): Não foi bem por acaso, mas quase. Derivou de algumas relações de amizade, alguns contactos de pessoas que eu conheço da RTP e do facto de o Hospital de Gaia ficar muito próximo, no monte da Virgem. Era necessário alguém que fosse um pouco mais além no aconselhamento da população. Eu também sou crítico em relação a algumas coisas que andam aí nos media de aconselhamento, que depois atinge níveis de algum exagero. Como se tornasse as pessoas, ao responsabilizá-las demasiado, que são uns desgraçados que fazem tudo mal. Nós temos de seguir vivendo. Vivendo com qualidade. O aconselhamento tem de ser sensato. Com base nisto também não me contento apenas em dizer mal dos outros. Se há alguém que não faz bem “Ó Zé, sai do conforto e vai.” O palco, a televisão e as câmaras de televisão não é o meu conforto natural.

(M.C.): O que é engraçado desculpe interrompê-lo, é que está perfeitamente à vontade.

(DR.J.R.): As pessoas dizem-me isso, mas sinto ali uma tensão grande. As câmaras atemorizam-me um pouco. Mas resolvi, em determinados momentos em que estive ligado à direção da Sociedade Portuguesa de Cardiologia, tínhamos algumas, eu estive dezasseis anos ligado à instituição Sociedade Portuguesa de Cardiologia. Ainda queriam que eu me candidatasse para a presidência e eu respondi “já não tenho tempo para tudo.” Depois tenho este equilíbrio que é preciso ter e então, nós, médicos cardiologistas, temos a responsabilidade de prevenir. Porque sabemos o que custa tratar. Custa a todos. Custa ao doente, custa ao sistema nacional de saúde. É importante prevenir e foi com base nisso que sempre que tenho algum tempo lá vou eu, preparo algumas coisas e vou à televisão em datas específicas como o dia mundial do coração, dia vinte e oito de outubro, e aproveitamos também para chamar a atenção das pessoas. A televisão é um bom meio de comunicação de massas. Portanto, há alguns bons conselhos para as pessoas.

(M.C.): Há uma coisa que eu valorizo imenso que é, mesmo que o Jorge Gabriel e a Sónia Araújo queiram virar para outro lado que é o que se usa mais, o Doutor diz: “Não. Ainda tenho que acrescentar isto.” Acho interessante.

(DR.J.R.): Não são técnicas de media. É a verdade. São técnicas da entrevista que temos também que perceber qual é a nossa mensagem principal, porque muitas vezes se vai para coisas que as pessoas gostam de ouvir, bombásticas; aquilo que muitas vezes se vê na televisão, às vezes de forma errada. São alarmistas, que deixam as pessoas mais tristes. A pessoa fica a pensar “Meu Deus, tenho o meu colesterol a 210! Que mal! E Agora? O que me vai acontecer?” Não vai acontecer nada. Só tem é que se ir fazendo o melhor que pode e sabe. Mas viver feliz. Depois tem aqui o balanço entre uma coisa e outra…

(M.C.): O tal equilíbrio…

(DR. J.R.): É fundamental.

(M.C.): Por acaso achei interessante. E pensei “Valente! É mesmo assim.” Nós não temos que dizer o que querem que digamos. Temos que dizer aquilo que é. E, às vezes, é preciso pezinhos de lã, mas é preciso dizer. Tem uma boa postura, muito calmo, muito bom!

(DR. J.R.): Aqui há uns anos, tenho de lhe mandar esse vídeo, fui a um programa, fui à Praça da Alegria, com o Malato e a Merche Romero. Já foi há uns anos valentes e entretanto, durante a entrevista, eles ficam assim meio perplexos porque havia uma senhora ao telefone que queria entrar em direto. E a produtora estava um bocado aflita “Ó pá, não podemos negar” e então pôs-se a senhora em direto. Quem era a senhora em direto? Era a mulher de um doente daqui de Bragança. “Esse senhor que está aí é um santo. Ele tratou do meu marido.” Bem. Aquilo foi uma coisa tal, que quando saí da televisão, o meu telemóvel era só mensagens. Hei-de mandar o vídeo.

(M.C.): Foi muito bom. Dessas situações que enchem o coração. Obrigado. Agradecemos pelo vídeo.

(DR. J.R.): Foi extraordinário. “Esse senhor é um santo. Tratou o meu marido que foi operado em Gaia.” Foi uma situação muito particular. O senhor subia uma rampinha para ir para o emprego e parava a meio com dor no peito. Quando o vi, disse “Dor no peito? Espere aí. Cateterismo e tal. Vai já para Gaia. Foi operado no período de oito dias e ficou bem. Era a altura em que a maior parte das pessoas com esta doença, caiam para o lado e não acordavam. E aquilo ficou tão marcado naquela família que o senhor parecia outro. O que ele não sofreu sem medicação, sem nada. Não conseguia fazer nada. Foi marcante.  

(M.C.): Como está a saúde em Portugal? Como está o SNS?

(DR. J.R.): Está em franca dificuldade. Está em franca dificuldade, muito por… Eu direi que o SNS tem bons profissionais. O SNS tem, ainda, potencialidades. Foi, na minha opinião, alvo de uma visão não estratégica, em termos, sobretudo, de gestão de recursos humanos, errada nos últimos anos. Errada em duas coisas: Considerando-se que gerir o sistema nacional de saúde como empresas, hospitais que é similar a gerir outra empresa qualquer e não é bem assim. E isto foi muito motivado pelo acréscimo de custos porque os cuidados de saúde começaram a ficar cada vez mais caros e nós começámos a ter mais gente a precisar de cuidados. Começámos a ter a perceção do diagnóstico das doenças que acresce os custos e fomos buscar bons gestores, muito bons gestores, mas aplicados a uma área com muitas particularidades.

Na gestão dos recursos humanos, nomeadamente, alguns sinais errados na redução dos horários que fará sentido noutras áreas, mas que aqui pode não fazer. Em vez de compensar as pessoas reduzindo-lhes os horários, reduzir os horários dos profissionais de saúde, é um convite declarado para irem fazer coisas ao particular e ainda por cima, não lhes aumentámos os vencimentos. Mais uma razão têm para o fazer. Esse é o primeiro. O segundo: na gestão de recursos humanos, e esse eu acho particularmente importante, muito pouca gente fala nisto, mas é o lado mais importante da gestão de recursos humanos na saúde que é, recrutamento dos profissionais de saúde, que passou a ser com muito rigor, com muitas regras, com muitas bolsas de recrutamento, com base em muitos critérios objetivos, mas falhou o principal que é selecionar as boas pessoas. E isto é que é difícil. Enquanto eu já ando há trinta e tal anos nesta vida, eu recordo que quando a gente queria contratar um médico ou enfermeiro, entre pares, falávamos entre nós, “É boa pessoa ou não é” e depois, então, era contratado. Obviamente que ninguém ficaria de fora, mas, se calhar, a área para onde ia era a mais adequada à sua personalidade e ao seu comportamento. Nós, agora, não. Achamos que, de acordo com as regras. Que as regras são assim, não podemos… É uma perseguição alterar isso e passámos a não observar esse princípio. E porquê? Por uma coisa que toda a gente compreende. Na saúde é fundamental que o profissional seja, de base, boa pessoa. Bom profissional e competente ensina-se. Ser boa pessoa não se ensina. Ou se é ou não se é. E isto é um problema. Se se puser num cesto de maçãs, uma maçã que não está boa, dá cabo de tudo. É por isto que eu luto em Gaia: ter uma equipa de boas pessoas. Mesmo aqueles que eu, às vezes, acho que podem ser um desafiozinho, faço tudo para que sejam boas pessoas. Essa é a diferença e o SNS tem este senão. Eu temo que tenhamos gente que gere o SNS a pensar “É preciso dinheiro, vamos mandar dinheiro.” Não sei se só o dinheiro vai resolver.

(M.C.): Gastam-se fortunas e ficamos com o mesmo problema.

(DR. J.R.): Não sei se é preciso fazer mais consultas e mais curtas… O que é preciso é que o doente sinta que foi convenientemente tratado.

(M.C.): Trás-os-Montes é uma das regiões mais bonitas de Portugal. No entanto, está cada vez mais deserta. Na sua opinião, o que se poderá fazer para reverter essa situação?

(DR. J.R.): Para dar uma resposta um pouco mais precisa, não chega a beleza, é preciso criar dinâmicas socioeconómicas que permitam que as pessoas tenham o conforto de viver cá e para ter esse conforto de viver cá, isto pode levar décadas, não é de um dia para o outro, porque um casal jovem vem para cá, mas depois fica a pensar onde é que vou por os meus filhos… não tenho um colégio capaz; onde é que os meus filhos vão nascer se eu não tiver uma boa maternidade; e por aí adiante. É toda uma série de coisas…

Isto resulta até de uma conversa que eu tive com um colega cardiologista brasileiro que esteve cá até há quase um ano atrás. O Dr. Rodrigo, que a dada altura, ele adorava Bragança, gostava muito de viver em Bragança, mas era casado e tinha uma esposa. E a esposa não tinha um cinema para ir. Não tinha algumas coisas de que sentia falta e acabou por regressar ao Brasil e não voltou.

Portanto, lá está. São estes sinais que eu fui observando e que determinam muita desta dificuldade. Bragança precisa disso. Tem aldeias onde nasceram alguns dos homens mais importantes de Portugal. Realmente há muita gente mas esta dinâmica foi sempre centrífuga. E inverter isto… pode eventualmente ser elencado na universidade e funcionar aqui como um polo dinamizador mas, sobretudo, criar dinâmicas de investimento com base em resultados. Não só pôr cá mais dinheiro.

(M.C.): Para terminar, que personalidade ou personalidades mais o marcaram ao longo da sua vida?

(DR. J.R.): Essa é capaz de ser a pergunta mais difícil. Eu não sou muito de culto da personalidade A ou B. Do ponto de vista profissional, o Dr. Vasco Gama, que foi Diretor do Serviço de Cardiologia de Gaia, de quem sou amigo. Somos muito diferentes em personalidade mas cresci com ele e eu complementava muito da metodologia de trabalho dele, do empenhamento. Conheci, no hospital de São João, um grande transmontano, o Dr. Manuel Quintas, médico cinco estrelas, de exceção que muito me ensinou daquilo que é a capacidade de diagnóstico e, sobretudo, o raciocínio que o médico deve ter numa procura incessante pela causa do ponto de vista patológico da doença e foi alguém que me marcou, um médico extraordinário, até com um sentido de humor, de uma forma descontraída. Dali saía sempre qualquer coisa que me deixava de boca aberta e que me fazia perguntar a mim próprio “como é que eu não pensei nisto?” Foi, realmente, um grande ensinamento.

Não sou muito do culto de, apenas, personalidade. Isto porque, para mim, quando falo com as pessoas, e isso talvez, tenha a ver com a minha aprendizagem ao longo da vida, eu procuro sempre ouvi-las e tenho presente, aquilo que dizia o meu avô: “Aprende-se, sempre, mais a ouvir do que a falar.” E olhar para as outras pessoas percebendo que por muita razão que eu tenha, pode haver uma verdade além da minha que não seja menos válida que a minha própria. Se eu for capaz de perceber isso, eu fico, de certeza, mais rico. E é um pouco desta análise de perceber os outros, sejam os meus doentes que me ensinam muito, sejam os pares, as pessoas, até as pessoas que eu dirijo, a minha equipa… digo-lhes isso muitas vezes e é sentido. “Eu aprendo muito convosco.”

Não tenho muito esse culto da personalidade. Procuro eu próprio ser o mais discreto possível, porque também não acho que deva ser por aí. Aquilo que fica no futuro é a nossa obra e prefiro que um dia se lembrem de mim, não porque eu sou José Ribeiro, mas porque alguma coisa ficou como rasto por onde eu passei. É aquilo que me conforta.

(M.C.): Ficará muita coisa! Muita coisa mesmo! Muito obrigado Doutor. Foi um gosto. Muito lhe agradecemos por esta entrevista. Não sei se já fez outras, assim, deste género. Esta, a exemplo de outras, será publicada no nosso blogue, Nordeste com Carinho. Mais uma vez, muito obrigado. 


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