domingo, 1 de dezembro de 2019

ENTREVISTA AO PROFESSOR ADRIANO MOREIRA (1º excerto)

Esta entrevista foi realizada no dia 19 de outubro de 2019, em Bragança, na Pousada de São Bartolomeu.
Tivemos, para esta entrevista, o apoio da Câmara Municipal de Bragança na pessoa da Senhora Vereadora da Cultura, Dra Fernanda Silva a quem agradecemos a disponibilidade, gentileza e paciência. Obrigada Fernanda.
Agradecemos, também, à Prof. Doutora Lídia Machado dos Santos, que faz o favor de ser nossa amiga, a colaboração e o empenho que imprimiu a este projeto. Obrigada Lídia. 
Falta-nos agradecer, de coração, ao Senhor Professor Adriano Moreira por nos ter concedido esta maravilhosa entrevista e à sua dignissíma esposa, Dra Mónica, pela paciência que teve em nos aturar, pois ultrapassámos bastante o tempo prevista para a realização da entrevista. 

Convém acrescentar que o Senhor Professor Adriano Moreira é uma personalidade única, com uma lucidez impressionante, uma inteligência viva, uma cultura abismal e um sentido de humor inteligente e muito jovem. Foi um enorme prazer termos passado por esta experiência. 
Bem haja Senhor Professor. 

Esta conversa foi gravada e transcrita. Conforme combinado com o nosso entrevistado, foi-lhe enviada para que a colocada à sua disposição para que fizesse as alterações que assim entendesse. Assim foi. O que aqui apresentamos, está à sua maneira. 


Entrevistadoras (Entrv.): “Quando olho para trás, a memória mais antiga que tenho é a de estar sentado numa pedra, no Bairro de Campolide, e haver, à minha frente, um charco e eu a pensar como é que se podia viver naquele meio, naquela pobreza. É a primeira e mais antiga recordação que tenho. Devia ter quatro ou cinco anos, por aí.”

Senhor Professor, é impressionante que, com tão tenra idade, se tenha apercebido das condições tão ingratas em que vivia e que tenha tomado consciência disso. Quer comentar?

Prof. Doutor Adriano Moreira (Prof. Doutor A.M.): Sabe que, a experiência é existência, e nós todos somos, como dizia o Ortega, históricos, fazemo-nos…, e a circunstância varia e nós enfrentamo-la e eu, de facto tinha… apesar de ter uma vida pobre, (nós éramos pobres), tinha conforto, que a maior parte dos garotos não tinha, e isto porque a minha mãe também era diferente…

Entrv.: A sua mãe era costureira…

Prof. Doutor A.M.: Era, mas o pai dela era uma pessoa muito informada. Vivia na aldeia de Grijó, mas tinha vivido no Brasil. Ela, por exemplo, sabia o João de Deus de cor, o Guerra Junqueiro de cor porque o pai a animava e portanto já tinha outra visão da vida e isso explica também como é que, com tantas dificuldades, já percebessem o que hoje se chama “elevador social” e que, (e eu acho isto heróico), os dois filhos tinham de tirar curso superior

Entrv.: Naquele tempo… e dadas as circunstâncias…

Prof. Doutor A.M.: E conseguimos! A minha irmã já está com oitenta e tal anos. É médica e tem um doente com o qual ela se preocupa… É comigo! E lá aparece. E, portanto, eu via aquelas crianças que não tinham uma casa onde recebessem os cuidados que eu recebi. A diferença estava na minha formação. E foi por isso que percebi.

Entrv.: O avô do Senhor Professor foi uma referência no seu crescimento literário e social?

Prof. Doutor A.M.: Foi. Esse meu avô era extraordinário. Era o pai da minha mãe e tinha uma casa melhor do que a do meu avô paterno, que eu não conheci, e tinha uma pedra a servir de banco cá fora. Eu devo dizer que essa pedra está lá em Lisboa na minha casa porque a junta autónoma das estradas tirou a pedra para corrigir a rua e eu quis a pedra, e portanto está lá e tem em cima uma inscriçãozinha que diz: “Banco do avô Valentim”. Era onde ele lia o jornal. Ele tinha tomado, parte muito jovem, com 18 anos talvez, ou menos…, numa espécie de levantamento por causa de impostos teve de sair do país… e foi assim que ele foi para o Brasil - que era para onde iam os portugueses -, e lá esteve, uns dois anos, jovem. Não sei porquê, porque acontece em tantas ocasiões, não apenas às pessoas, mas também aos movimentos, adotam flores. Ele usava sempre um cravo e, quando não havia cravos, uma folha! Era assim! E, portanto, já tinha uns livros, alguns extraordinários: tinha um livro sobre Nietzsche, tinha um livro sobre a segurança internacional, etc.. Eu herdei esses livros num caixotinho que agora estão cá na biblioteca de Bragança. Eram um tesouro para ele.

Entrv.: Desculpe, mas esse caixotinho era toda a biblioteca, todo o espólio do avô do senhor Professor.

Prof. Doutor A.M.: Era.

Entrv.: Que ele guardava como verdadeiras relíquias…

Prof. Doutor A.M.: Era um tesouro para ele. Ora bem, e, portanto, a minha mãe foi educada por ele e, por isso, é que ela tinha aquela sensibilidade.

Entrev.: E por isso essa visão do mundo.

Prof. Doutor A.M.: E para além disso, ela era muito inteligente. Começou a fazer costura em Lisboa para ajudar a família. Para verem o que era a vida naquele tempo, quando eu me formei, fiz o estágio, e fui para o Ministério da Justiça onde consegui um lugar: ganhava três vezes mais do que o meu pai,

Entrev.: O seu pai era polícia…

Prof. Doutor A.M.: E morreu subchefe ajudante. Eu estive à despedida dele dos seus subordinados. Fez um tão bom discurso que eu pensei assim: “louvada faculdade!”

Entrv.: Só uma curiosidade, senhor Professor, se me permite…De entre o espólio literário do avô fazia parte Guerra Junqueiro…

Prof. Doutor A.M.: Fazia. O Guerra Junqueiro era muito popular. 

Entrv.: O avô era contemporâneo de Guerra Junqueiro. Ele faleceu em 1923 e o senhor Professor nasceu em 1922…

Prof. Doutor A.M.: Mas não diga!

Entrv.: Ah, essas coisas não se dizem!

Prof. Doutor A.M.: Depois eu ainda tive mais razões para me interessar por Guerra Junqueiro porque uma das pessoas que teve mais importância na minha formação e vida pública, foi o Almirante Sarmento Rodrigues que era casado com a descente do Guerra Junqueiro e foi ele que presidiou às cerimónias do centenário, - o que naquele tempo, naquele regime, era preciso ser transmontano porque ele era marinheiro e recebia ordens: mas, o Guerra Junqueiro era da família da sua mulher e fez uma bela celebração do Guerra Junqueiro. Portanto, foi assim neste ambiente familiar que cresci naquele bairro de Campolide… Naquele tempo Lisboa tinha muitos bairros, eu atualmente acho que só já há uma região que é bairro…o resto é Lisboa, mas ali era bairro e na esquina do beco, onde vivia, havia uma casa melhor, e uma senhora que tinha uma bibliotecazinha e era, salvo erro, tia de um dos marinheiros do barco que foi afundado na guerra de 14, comandado por Augusto de Castilho, que tem uma estátua em Vila Real, afundou-se salvando um barco português. E essa senhora, entre outras coisas, por exemplo, tinha a coleção do Júlio Verne! Umas encadernações fantásticas, ela emprestava-me cada volume… e eu tinha um cuidado enorme. Li a coleção toda.

Entrv.: Grande vizinha também lhe digo…

Prof. Doutor A.M.: Tinha outros livros que também me emprestava. E gostava muito de conversar com miúdos e criei lá alguns amigos para a vida… depois fiz a instrução primária num colégio que havia lá… não do Estado. Mas era aquilo tão pobre… eu ainda me recordo que custava por mês vinte escudos.

Entrv.: Era dinheiro…

Prof. Doutor A.M.: Era dinheiro naquele tempo…E a senhora tinha um filho doente epilético, mas era uma grande professora. Depois fui para o Passos Manuel e, agora, tenho de pensar o seguinte: quando eu fui para o Passos Manuel tinha 9 para 10 anos, fiz exame muito cedo, e tinha de ir de Campolide para o Passos Manuel a pé.

Entrv.: Mas não era de castigo?

Prof. Doutor A.M.: Não… não! Fazia ginástica, e acontecia que, quando voltava é que custava mais porque era sempre a subir! Lá fiz o curso ginasticado. Depois fui para a Faculdade de Direito que era no Campo de Santana. Não havia transporte, nem dinheiro para pagar, portanto passei cinco anos a pé, a ir e a vir. E era fácil aquilo. Nessa altura, comecei a pensar que tinha de apoiar a minha irmã que era mais nova… ela fez um bom curso. Depois, estes dois transmontanos, eu e ela, havíamos de nos ligar ao Ultramar porque ela foi médica para Lourenço Marques, casou com um oficial da Força Aérea, médico também, e depois tive de andar envolvido naquelas guerras, de maneira que somos africanos regressados.

Entrv.: Senhor Professor, usa muitas vezes a expressão, “a maneira portuguesa de estar no mundo”. De que forma é diferente da maneira transmontana de estar no mundo?

Prof. Doutor A.M.: Eu a transmontanos julgava que não tinha de explicar!...

Entrv.: Pedimos-lhe que nos explique… Nós queremos ouvi-lo e transcrever o que nos disser…

Prof. Doutor A.M.: Há uma coisa que eu acho importantíssima nos transmontanos. Primeiro, são solidários. Olhe, quando nós fomos viver para Lisboa, eu vinha passar as férias aqui com o meu avô, sempre. Naquele tempo eram três meses, e para chegar cá era duro. Apanhava-se um comboio aí pelas oito horas à noite e chegava-se à estação de Grijó no dia seguinte, por volta das sete e meia da tarde. Chegava a Grijó, que ainda era longe, a cavalo num burro que estava lá à minha espera e lá ia eu… E então ficava em Grijó e era felicíssimo aqueles três meses. Tinha um primo, o Alexandre, que era como se fosse meu irmão. Já morreu há bastantes anos. Era tão bom… conhecíamos tudo, andávamos por todos os lados. O meu avô tinha uma propriedadezinha para aí com um hectare, mas era à beira de um ribeiro e a gente ia lá, tomava banho no ribeiro, corria com as cobras d´água, enfim… era uma vida…

Entrv.: Esses três meses eram fundamentais para recuperar energias… e para recarregar baterias.

Prof. Doutor A.M.: Era! E depois ainda me lembro sempre de amigos do tempo do meu pai e que ali estavam reformados. Lembro-me, por exemplo, de um, o chamado Zé Fiscal porque ele tinha sido guarda-fiscal. Quando eu comecei a ser conhecido, ele cada coisa que via no jornal, cortava e trazia no bolso, e quando eu chegava mostrava-me. Um grande amigo. E havia outros… O Zé Peras, que trabalhava na agricultura da família dos Mirandas, e uma jovem, hoje senhora, que foi fazer um curso de enfermagem em Lisboa na escola Rockfeller, conviveu os três anos connosco, é uma amiga, sobretudo da minha irmã, porque é mesmo da idade dela. A querida Lucília.

Eu vou amanhã a Grijó a uma festa que eles me vão fazer. Mas há pouco tempo, foi no dia 6 de setembro, dia dos meus anos, imagine o que eles fizeram: com as técnicas atuais, arranjaram maneira de ligar uma emissão de imagem para a minha televisão, em Lisboa.

E eu em Lisboa, sentado numa cadeirinha, com os 14 netos à volta, (estão sempre),… vem aquilo de repente… a aldeia toda junta a cantar-me os parabéns e ela, Lucília, fez um poema… e leu o poema! Fantástico! Então, eu amanhã tenho que lá ir porque eu fiz também uma bibliotecazinha para eles, como pediram. E querem inaugurá-la. E querem que seja domingo porque os padres só estão livres no domingo àquela hora.

Aquela aldeia mereceu-me sempre grandes cuidados. Conforme fui podendo, por exemplo, conseguir por lá a eletricidade, que ia daqui das barragens… passava pela aldeia, e lá andavam de candeia. Consegui que pusessem lá a eletricidade. Também consegui o esgoto, uma segunda escola e o coreto da festa. De maneira que, o largo do coreto chama-se Adriano Moreira, a biblioteca chama-se Adriano Moreira.

Entrv.: É uma homenagem justa!

Prof. Doutor A.M.: Porque me inquietou, foi a falta de crianças…

Entrv.: Não há crianças, infelizmente. Em Trás-os-Montes é flagrante. 


Realizada por Maria e Marcolino Cepeda e Lídia Machado dos Santos

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