sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

Imaterial fundamental - Editorial do Jornal Nordeste de 17-12-2019


No estado actual do nos­so conhecimento, construí­do à custa da razão, não é possível conceber o mundo e a humanidade sem os inte­grar nessa estrutura radical, cósmica, essencial, a maté­ria, secularmente demoniza­da, pretendida refugo incó­modo, dispensável na eterni­dade, notável fantasia de de­siludidos, empenhados em sacudir as escórias da vida.
Naturalmente a mate­rialidade não é assimilá­vel à existência que, no ca­so dos seres vivos, aparece com componentes que reco­nhecemos como emanações de processos materiais, mas não podem ser simplesmen­te reduzidas à expressão dos equilíbrios, desequilíbrios ou reequilíbrios molecula­res, antes devem ser entendi­das como realidades empol­gantes, embora efémeras no tempo cósmico, que podem ser engolidas num qualquer buraco negro, possibilidade indescartável que nos con­duz à angústia do confron­to com o absurdo do defini­tivo nada.
Entretanto, sendo a hu­manidade um produto do que emana da matéria, tam­bém constitui uma realida­de diferente, com a caracte­rística singular de dispor de condições para se subtrair aos desígnios estritamente físicos, até de os condicio­nar, deixando marcas notó­rias nos ritmos do universo.
Embora reféns desta trá­gica condição, os humanos geraram realidades inefáveis como as emoções, os senti­mentos, as linguagens, afi­nal a cultura, que parecem li­bertar-nos do determinismo natural, pelo menos é o que gostávamos que acontecesse, porque queremos acreditar que a memória terá o con­dão de permanecer mesmo sobre as cinzas, o pó a que estamos condenados
Assim nos vamos alimen­tando das esperanças, tal­vez vãs, mas reconfortantes, de dar algum sentido às vi­das de todos os dias, mobili­zando o legado dos que nos precederam. Por isso valori­zamos vestígios, sinais, ruí­nas, tradições dedicando-lhe afectos e mobilizando esfor­ços para os manter como re­ferências. São a nossa alma.
O reconhecimento dos caretos de Podence como pa­trimónio imaterial da huma­nidade pela Unesco é uma palpitação global ao mesmo ritmo, uma forma de parti­lhar o destino.
As festas de Inverno que sobrevivem no território am­plo do Noroeste Peninsular têm agora mais condições para atrair gente, com tudo o que isso significa ao nível do dinamismo económico, mas também no contacto com a magia do que está além do vi­sível e do quantificável, o tal imaterial que nos acompanha na passagem pelo planeta.
Talvez tivesse sido pos­sível conjugar esforços pa­ra promover uma candida­tura de todas as festas com máscaras do distrito e do la­do espanhol, mas as coisas são como são e os méritos fi­cam para quem os conquista, com trabalho, coragem e de­terminação.
O reconhecimento dos outros é um alento e as vidas fazem-se desses prazeres de nos encontrarmos nas ale­grias, nas festas, no espan­to de nos sentirmos profun­damente próximos dos con­temporâneos e dos que por cá passaram há mais ou me­nos tempo.
Apesar de nos gastarmos todos os dias a garantir o su­porte material da vida, sen­timos que fundamental para sermos o que somos é o ima­terial, que geramos perma­nentemente sem saber como nem porquê.

Escrito por Teófilo Vaz, Diretor do Jornal Nordeste

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