(Excerto da Biografia que escrevo sobre Amadeu Ferreira)
«Tive febre tifóide complicada por volta dos três ou
quatro anos. Lembro-me de episódios para tomar os medicamentos, porque eu não
os queria tomar, nomeadamente comprimidos. Lembro-me de um episódio em que o
médico me quer obrigar a tomar o comprimido e eu acabo por vomitá-lo. Lembro-me
também de um momento em que eu acabei por conseguir tomar os comprimidos.
Estava sentado numas escadas e era um dia de sol não muito quente.
Lembro-me desse sol amarelado a bater em mim e eu sem frio a tentar beber um
copo de água. Digamos que a memória dessa doença é uma memória que está bem
viva. Há um episódio de que eu me lembro muito fortemente e que me deixou muita
impressão, com o qual sonhei sempre ao longo da vida e ainda hoje me vem nos
sonhos. É um episódio que terá acontecido por essa altura, talvez ligeiramente
antes. É um episódio em que eu estou a dormir durante a noite, estava muito
quente, admito que estivesse cheio de febre, não sei, e eu estava deitado na
cama. Nós dormíamos num quartinho, estavam os meus pais numa cama ao lado e eu
e o meu irmão Abel dormíamos numa cama pegada à deles, tudo no mesmo quarto, um
quarto que hoje olho para ele e vejo-o tão pequenino que nem cabe lá uma cama,
mas naquela altura cabiam duas. Estou eu deitado, acordado, e sinto, a meio da
noite, uns olhos a quererem perseguir-me, uns olhos a quererem comer-me, uns
olhos a quererem agarrar-me, uns olhos muito fortes, muito vivos, que me
perseguem. Então encho-me de coragem, não digo nada, levanto-me da cama, agarro
nos olhos, vou à lareira da cozinha, que era um cantinho onde se punham os paus
a arder, agarro na tenaz, abro a cinza, agarro nos olhos, espeto-os lá e
dou-lhes com a tenaz em cima. Mato os olhos e ficam lá enterrados. Os olhos
nunca mais me perseguiram. Eu voltei todo contente para a cama e adormeci. Tive
sempre a sensação, ao longo da vida, que aqueles olhos eram a morte que me
perseguia, era a morte que me queria agarrar, que me queria levar, e que, de
alguma maneira, eu enterrei na cinza, que era a maneira que eu tinha de me ver
livre dela. Depois passei a associar isso à situação de eu me ter curado. Não
sei se isto é verdade ou não, mas é aquilo que ficou na minha memória. É um
episódio que se associou a mim ao matar a morte, o que é uma coisa
contraditória. A morte não se mata. Um episódio, talvez, dos mais antigos, dos
mais vivos e dos mais fortes que nunca me esqueceu ao longo da vida.»
Escrito
por Teresa Martins Marques.
Retirado
do Facebook.
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