sábado, 25 de abril de 2020

DA SERENIDADE POSSÍVEL (Editorial do Jornal Nordeste, 7 de Abril de 2020)


O que mais dói é ver a Primavera a fugir de nós, quando sempre a celebrá­mos como garantia de re­novação da vida, pelo me­nos para mais um ano, ou cem, tudo dependia do sol, das flores e das folhas tenras que, a cada manhã, nos am­paravam o ânimo.
As folhas e as flores aí es­tão, serenas, sem vaidades, como sempre. Nós é que não estamos com os mes­mos olhos da alma, que se fi­ca triste como a noite ou se deixa tomar pela raiva que transparece sempre da re­signação, mesmo se sabe­mos que o que acontece tem ou há-de ter uma explicação racional e se não nos tivésse­mos deixado enredar no co­modismo, na displicência, na lassidão, poderíamos es­tar a encarar a situação com outra tranquilidade.
De facto, pelo menos os mais informados, sabíamos que havia grande probabili­dade de que surgissem pan­demias, porque a natureza é como é. Alguns foram aler­tando para ciclos observá­veis ao longo do tempo e não faltou quem dissesse que ca­da século traria algumas perturbações, mais ou me­nos tremendas.
Até se fizeram filmes so­bre o assunto, que agitaram as gentes, abriram os por­tões da adrenalina, provo­caram arrepios e respirações ofegantes. Ao mesmo tem­po alimentou-se difusa ideia de que poderia haver gente maléfica, a mandar em par­te do mundo, ou nele todo, que estaria a dar-se a capri­chos diabólicos e a deliciar­-se com uma situação do gé­nero. Mais uma forma de tentar iludir as probabilida­des reais de um fenómeno que, objectivamente, pode­ríamos ter sob um controle preventivo mais apertado e, por isso, mais eficaz.
Poderíamos, naturalmen­te, todos os que estamos por este mundo, mesmo se temos que reconhecer que há bas­tante tempo não se conhe­ciam tão notórios retrocessos nos modelos de gestão políti­ca das comunidades, dos es­tados e, por consequência, na dificuldade de encontrar so­luções solidárias, num mun­do que esperávamos estives­se a encaminhar-se para mais dignidade, depois de expe­riências, do último século, que demonstraram as misé­rias de que somos capazes.
Quando chegam notícias da verdadeira selva que têm sido, a nível internacional, os negócios dos equipamentos de apoio à recuperação e de prevenção da infecção, não estamos longe do aguçar das unhas e do arreganhar dos dentes entre grupos rivais de símios numa qualquer flo­resta, real ou imaginária.
Os protagonistas são qua­se sempre os mesmos, mas o inquietante é que recolhem o apoio de milhões de troglo­ditas que os legitimaram, em sistemas confundíveis com esse modelo nobre, construí­do penosamente ao longo de séculos, a que chamamos de­mocracia.
Entretanto, continuamos a confrontar-nos, todos os dias, com notória dificulda­de de acesso a informação sólida, o que prejudica a se­renidade, talvez a arma fun­damental para não darmos campo ao pânico e à insta­lação do caos, que não apro­veitam a ninguém.
Esperemos que os proce­dimentos dos responsáveis nacionais nos levem a porto seguro, donde nos seja possí­vel encarar o horizonte com a profundidade que impeça o florescimento da descon­fiança, o avolumar dos te­mores e, principalmente, que não nos deixe tomar pelo de­sespero
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Escrito por Teófilo Vaz, Diretor do Jornal Nordeste

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