domingo, 26 de junho de 2016

Outros tempos - 2º capítulo



Sabes filha, anteontem, fiquei bastante cansada. Já sou velhota. Estas poucas recordações de que te falei, são uma pequeníssima parte das muitas que tenho. Não sei se Deus me dará a capacidade de continuar a contar-te a minha vida, repleta de tantas vidas que me tocaram e que eu quero acreditar, também toquei. 
Em 1918, como se não bastasse tudo aquilo porque tínhamos passado, recebemos a Gripe Espanhola. Tu sabes melhor do que eu quantas vidas se perderam por esta Europa fora. Portugal não foi exceção. Diz-se que por cá, podemos ter chegado às cem mil mortes.
Às vezes penso que a vida é uma sucessão de dias maus onde se engancham alguns dias bons como elos de uma cadeia.
Sei pouco do que vem nos livros, querida neta. Muito pouco. Soube, no entanto, retirar da vida muitos ensinamentos. Estive sempre atenta. Foi assim que me tornei uma pessoa sábia. Sim. Considero-me uma pessoa sábia e… analfabeta. Não é presunção. Nunca fui tal coisa. Soube captar os sinais e aprender com eles. Soube ouvir as pessoas e fazer as minhas análises. Aprendi, com muito sofrimento, a viver de acordo com o pouco ou o muito que me calhava. Pouco, muitas vezes. Muito, com alguma parcimónia.
“Vê minha querida, que palavra cara me ensinaste! Tenho aprendido muito contigo. Ainda consigo aprender apesar da idade que tenho e da vida que levei.”
Sei que tu sabes muito mais do que eu sobre estes acontecimentos de que te falei da história de Portugal e do mundo. Mas… não sei se por ter vivido essas coisas, algumas como simples ecos, outras como dores de alma e corpo que nos marcavam para a vida toda, mesmo quando já não existiam, muitas décadas depois…
Perdi alguns familiares e amigos com a epidemia do tifo provocada pelos parasitas que nos infestavam e que infestavam, soube muito mais tarde, os nossos soldados nas trincheiras.
“Sabes, filha, dói-me a pobreza e a ignorância das minhas gentes, ainda mais agora do que no momento em que as vivi.”
“Mas, avó! Como pode doer mais agora do que naquele tempo em que a avó passou por tudo aquilo?”
“Não tinha consciência de nada filha. Vivia apenas. Era o fatalismo a que estávamos habituados. Não conhecíamos outra coisa. Uns podiam ter um pouco mais do que a maioria, mas não havia nada do que hoje é normal.”
O meu pai era um homem bem informado. Chegavam-lhe as notícias, com alguns dias de atraso, claro, através do meu tio padre. Sabes que a aparição de Fátima era… como é que tu costumas dizer? É mais uma das tuas palavras caras… Tabu! Sim, é isso mesmo! Tabu! Não nos queria falar daquilo. Dizia que não passava de uma moda, que qualquer dia já ninguém falaria de tal coisa. Passados tantos anos, vemos que se enganou redondamente.
Quando a I Grande Guerra acabou, eu já tinha quinze anos. Era uma rapariguinha trabalhadora. Muito franzina, mas muito valente. Não media as consequências da minha falta de força física. Bastava-me a minha grande força mental e anímica.
Sabes, agora reconheço que não era burra. Esta palavra não te agrada, sei. Tens de me dar um desconto. Afinal sou uma velha que praticamente nunca saiu do lugar onde nasceu.
Descobri, desculpa a imodéstia, que era inteligente e vivaz. Sabia tirar o melhor partido de quase todas as situações que surgiam. Reconheciam-me alguma sabedoria apesar da minha pouca idade e começaram a levar-me a sério muito cedo. Não era tarefa fácil naquele tempo em que a hegemonia masculina era incontestável.
Houve muitas tristezas na minha vida e os meus quinze anos recém-feitos, trouxeram-me a morte da minha irmã mais velha, ceifada pela Gripe Espanhola.
Sofri desmesuradamente. Pensei que morreria com ela. Queria que tudo acabasse. Não me apetecia fazer nada até que tive de fazer tudo para salvar a minha querida mãe.
Sabes, querida? Acredito que temos o dia da nossa morte marcado, desde o momento exato em que nascemos. Quando a minha mãe, depois de cuidar da Arminda noite e dia, sem descanso, caiu doente, não chorei, não tive medo.
De alguma forma, e olha que não sou daquelas beatas que passam a vida na igreja a bater com a mão no peito, eu sabia que conseguiria salvá-la.
Não faças essa carinha de admiração, filha! Não te sei explicar… há coisas que não têm explicação.
São horas de descansar. Já sabes que quero o meu chazinho na cama… amanhã é um novo dia.

Maria Cepeda 

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