Sabes filha, anteontem, fiquei bastante
cansada. Já sou velhota. Estas poucas recordações de que te falei, são uma
pequeníssima parte das muitas que tenho. Não sei se Deus me dará a capacidade
de continuar a contar-te a minha vida, repleta de tantas vidas que me tocaram e
que eu quero acreditar, também toquei.
Em 1918, como se não bastasse tudo aquilo
porque tínhamos passado, recebemos a Gripe Espanhola. Tu sabes melhor do que eu
quantas vidas se perderam por esta Europa fora. Portugal não foi exceção.
Diz-se que por cá, podemos ter chegado às cem mil mortes.
Às vezes penso que a vida é uma sucessão de
dias maus onde se engancham alguns dias bons como elos de uma cadeia.
Sei pouco do que vem nos livros, querida
neta. Muito pouco. Soube, no entanto, retirar da vida muitos ensinamentos.
Estive sempre atenta. Foi assim que me tornei uma pessoa sábia. Sim.
Considero-me uma pessoa sábia e… analfabeta. Não é presunção. Nunca fui tal
coisa. Soube captar os sinais e aprender com eles. Soube ouvir as pessoas e
fazer as minhas análises. Aprendi, com muito sofrimento, a viver de acordo com
o pouco ou o muito que me calhava. Pouco, muitas vezes. Muito, com alguma
parcimónia.
“Vê minha querida, que palavra cara me
ensinaste! Tenho aprendido muito contigo. Ainda consigo aprender apesar da
idade que tenho e da vida que levei.”
Sei que tu sabes muito mais do que eu sobre
estes acontecimentos de que te falei da história de Portugal e do mundo. Mas…
não sei se por ter vivido essas coisas, algumas como simples ecos, outras como
dores de alma e corpo que nos marcavam para a vida toda, mesmo quando já não
existiam, muitas décadas depois…
Perdi alguns familiares e amigos com a
epidemia do tifo provocada pelos parasitas que nos infestavam e que infestavam,
soube muito mais tarde, os nossos soldados nas trincheiras.
“Sabes, filha, dói-me a pobreza e a
ignorância das minhas gentes, ainda mais agora do que no momento em que as vivi.”
“Mas, avó! Como pode doer mais agora do que
naquele tempo em que a avó passou por tudo aquilo?”
“Não tinha consciência de nada filha. Vivia
apenas. Era o fatalismo a que estávamos habituados. Não conhecíamos outra
coisa. Uns podiam ter um pouco mais do que a maioria, mas não havia nada do que
hoje é normal.”
O meu pai era um homem bem informado.
Chegavam-lhe as notícias, com alguns dias de atraso, claro, através do meu tio
padre. Sabes que a aparição de Fátima era… como é que tu costumas dizer? É mais
uma das tuas palavras caras… Tabu! Sim, é isso mesmo! Tabu! Não nos queria falar
daquilo. Dizia que não passava de uma moda, que qualquer dia já ninguém falaria
de tal coisa. Passados tantos anos, vemos que se enganou redondamente.
Quando a I Grande Guerra acabou, eu já tinha
quinze anos. Era uma rapariguinha trabalhadora. Muito franzina, mas muito valente. Não
media as consequências da minha falta de força física. Bastava-me a minha
grande força mental e anímica.
Sabes, agora reconheço que não era burra. Esta
palavra não te agrada, sei. Tens de me dar um desconto. Afinal sou uma velha
que praticamente nunca saiu do lugar onde nasceu.
Descobri, desculpa a imodéstia, que era
inteligente e vivaz. Sabia tirar o melhor partido de quase todas as situações
que surgiam. Reconheciam-me alguma sabedoria apesar da minha pouca idade e
começaram a levar-me a sério muito cedo. Não era tarefa fácil naquele tempo em
que a hegemonia masculina era incontestável.
Houve muitas tristezas na minha vida e os
meus quinze anos recém-feitos, trouxeram-me a morte da minha irmã mais velha,
ceifada pela Gripe Espanhola.
Sofri desmesuradamente. Pensei que morreria
com ela. Queria que tudo acabasse. Não me apetecia fazer nada até que tive de
fazer tudo para salvar a minha querida mãe.
Sabes, querida? Acredito que temos o dia da
nossa morte marcado, desde o momento exato em que nascemos. Quando a minha mãe,
depois de cuidar da Arminda noite e dia, sem descanso, caiu doente, não chorei,
não tive medo.
De alguma forma, e olha que não sou daquelas
beatas que passam a vida na igreja a bater com a mão no peito, eu sabia que
conseguiria salvá-la.
Não faças essa carinha de admiração, filha!
Não te sei explicar… há coisas que não têm explicação.
São horas de descansar. Já sabes que quero o
meu chazinho na cama… amanhã é um novo dia.
Maria Cepeda
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