J. Rentes de Carvalho, um dos mais reconhecidos autores
portugueses da actualidade, divide os dias entre Estevais, Mogadouro, de onde
os pais eram naturais e a Holanda, onde se radicou há 60 anos. Numa entrevista,
ao Jornal Nordeste, o escritor fala do seu mais recente romance e da ligação a
Trás-os-Montes. Rentes de Carvalho entende que os citadinos têm uma ideia
romântica do mundo rural e considera que a falta de vocabulário está na origem
da violência. O autor de 86 anos critica ainda a inexistência de um plano de
desenvolvimento para o interior.
Não era, até há alguns anos, muito
reconhecido em Portugal apesar de na Holanda vender muito. Podemos dizer mesmo
que era um “best-seller” na Holanda…
Ainda sou. Foi em função do meu primeiro livro publicado
na Holanda, que era um muito malicioso sobre o país e os Holandeses e contra
toda a expectativa eles gostaram tanto que ainda hoje depois de 72 ainda é um
“best-seller”.
Mas em Portugal não era tão conhecido até há
cerca de 7 anos, quando começou novamente a ser publicado.
O meu primeiro livro saiu em 1968 e foi muito elogiado,
principalmente pela figura que então mais contava na crítica, Saramago. Dois
anos depois saiu o segundo livro e, à boa maneira portuguesa, o primeiro livro
elogia-se, o segundo casca-se, e fui acusado de não saber conjugar verbos, de
criar personagens tolos. Então perdi a relação com Portugal e comecei a
escrever na Holanda. O meu primeiro livro sai lá em 72, o segundo, “Revolução,
Portugal a Flor e a Foice” em 74. Uns após os outros quase todos foram
“best-sellers”, inclusive “O Rebate”, que tinha sido tão mal tratado em
Portugal, e foi considerado uma obra-prima. Portanto, não tenho razões de
queixa, tento encolher os ombros e aceitar o destino.
E nunca ficou sentido, magoado com essas
críticas?
Não, para ficar sentido teria de dar muita importância ao
desdém e isso era estúpido. Se não gostam de mim, então deixem lá.
A pessoa estando bem onde está e sendo bem tratada, não
tem razão nenhuma de ter fel. Claro que é um pouco triste, ao fim e ao cabo não
escrevo para os holandeses, escrevo para a minha gente, na minha língua. Mas
não me magoa, só dá pena. Mas não dá pena por mim, dá pena por outros.
Passa parte do ano em Estevais, porque é que
tem essa necessidade? É uma necessidade vir cá?
Não. Esta casa onde estamos foi construída pelo meu avô
materno sozinho. Era para a filha, que nessa altura tinha 12 ou 13 anos, e mais
propriamente para o neto (tinha a certeza que ia ter um neto macho), e ele
faleceu logo depois da casa estar pronta. Os meus pais, que viviam em Gaia,
vinham aqui uma vez por ano e, quando se reformaram, vieram para aqui, mas
depois a casa ficou esburacada e a cair. Então ou nós recuperávamos a casa, em
honra ao homem que a fez ou deixávamos cair e nunca mais voltávamos, seria o
fim da minha relação com Portugal. Achámos que era mais decente honrar a
memória do avô, em 1998 a casa foi recuperada e desde então nós fazemos três
meses em Amesterdão e vimos para aqui três meses e voltamos.
É uma relação afectiva com esta terra?
É, porque eu não tenho aqui família. Tenho uns primos em
quinto grau e alguns amigos, mas a relação é afectiva, pelo lugar que foi da
minha infância porque eu vinha para aqui desde que me conheço, nas férias até
aos 19 anos. Deixa uma marca muito funda, depois eu estive 14 anos sem vir a
Portugal e depois dessa altura quando vim a partir de 74 então a ligação
tornou-se mais forte e agora é fortíssima.
Sente necessidade de passar tempo nesta
aldeia quando está na Holanda?
Uma necessidade não, mas é uma obrigação sentimental,
para com o meu avô, os meus pais, a aldeia. Porque ao fim ao cabo não é lugar
onde nasci mas foi o local onde fui gerado, e fui nascer a Vila Nova de Gaia. A
força das minhas raízes transmontanas é mais forte do que posso conceber, é uma
ligação que não é só física e espiritual, mas uma espécie de ligação com os
antepassados, com o cheiro, com o clima, com o ambiente, com a mudança. É a
ilusão de que estando aqui presente junto alguma coisa, mas não junto coisa
nenhuma.
Esteve fora do país muitos anos, saiu de
Portugal por motivos políticos. Sentia saudades também de Trás-os-Montes?
Tinha saudades de tudo. Estive 14 anos fora da minha
pátria. Quando saí de Portugal saí zangado com o país, não correspondia à ideia
que tinha de um país decente, com uma divisão e sociedade tão estúpida, os
mandões e os mandados, era uma situação que me entristeceu. Fui embora com a
ideia de nunca mais voltar a Portugal, mas depois começou a saudade e a ausência
da família a doer.
Saiu por motivos políticos, mas estava
envolvido na política?
Não, mas naquele tempo bastava ter amigos comunistas,
como era o meu caso, para ser logo suspeito, é uma atitude estúpida que há nos
regimes ditatoriais, quando o cidadão é menos que uma formiga.
Mas foi muito à portuguesa, o meu pai tinha um amigo que
era inspector da PIDE e disse-lhe “o teu rapaz corre o risco de um dia acabar
na cadeia, porque anda com uns sujeitos que não são assim muito finos” e eu fui
embora.
O seu mais recente livro passa-se em
Trás-os-Montes e fala de violência extrema e maldade, porquê esses temas?
Na história, o personagem principal mata o homem rico da
terra, porque abusava da irmã e ele assistiu a esse abuso desde pequenino, o
que ele não sabe é que por detrás desse abuso há uma história ainda mais grave
e mais complexa, que o leitor só vai saber no fim do livro.
O personagem é violento, mas tem todas as razões para
isso. Tem poucas palavras ao seus dispor, é um homem simples, magoado, por
razões graves, mas, porque lhe faltam essas palavras, de cada vez que é
confrontado com uma situação que não compreende ou de que não gosta reage à
porrada. Se as pessoas olharem à volta vão dar-se conta de que há uma
quantidade de pessoas que conhecem que, mesmo tendo alguma capacidade de
vocabulário, reagem sempre com violência, com as mãos ou com os pés. O
vocabulário não dá para exprimir a sua raiva, e a que fica dentro não sai em
palavras, mas com violência.
Diz-se muitas vezes que os portugueses são um
povo de brandos costumes, não concorda com isso?
Não, discordo. Brandos costumes, porquê? Porque somos
muito gentis com os estranhos? Os transmontanos pelo menos não são assim tão
doces e nem precisam ser, a vida não faz as pessoas doces.
Achamos que somos de brandos costumes, mas por dentro
sabemos que não somos.
Casos de assassinato por motivo fútil ainda
acontecem, por vezes. É característico do Portugal profundo?
É característico das sociedades que sofrem de uma
quantidade de complexos, politicamente há igualdade, mas socialmente a
igualdade não está em parte nenhuma.
E essa desigualdade entre as pessoas obriga a reacções
muito violentas, que começam no seio da família.
É um bocadinho contraditório com o povo de brandos ou
mansos costumes.
Na cidade as pessoas têm mais possibilidades de escape,
mas aqui estão metidas dentro de casa e já nem vão à rua, fecham-se. E depois
levantam-se questões fúteis, pelas mais pequenas razões, um buraco na rua, uma
partilha e um caminho, as pessoas descambam logo na violência. A pátria não
cuidou de nós, se tivesse cuidado eramos talvez mais doces.
Os velhos ainda se vão matando uns aos outros, mas é
difícil na nossa idade apresentar umas pauladas.
Mas esse é outro drama, o despovoamento e o
declínio populacional.
Estamos em Estevais, uma das aldeias típicas da morte
lenta, há talvez uma dúzia e pessoas acima dos 40 anos, bebés há dois ou três e
o resto têm todos acima de 70 anos. Ao fim e ao cabo isto é uma morte lenta.
Não há sangue novo nem renovação.
Aqui não há qualquer possibilidade de fixação. Às vezes
dá-me vontade de rir, quando dizem: “vamos desenvolver o turismo em
Trás-os-Montes”. Mas eles são tolos! O que se lhes mete na cabeça? Que os
turistas vêm para Trás-os-Montes? O que se vê são uns pássaros de arribação nas
estradas ou a andar de bicicletas, a dar umas voltinhas. Ou o governo faz
realmente alguma coisa por Trás-os-Montes ou a província fica uma espécie de
reserva, como fizeram na América para os índios ou como o jardim zoológico,
fecham aquilo e pronto. Estamos por cá meio sozinhos.
Acha que o turismo não é solução para os
problemas da região?
Pois claro que não. Em Moncorvo há uma casa de turismo de
habitação e uma residencial, em Mogadouro o hotel fechou. Como quer os turistas?
Vão ficar numa tenda no meio da rua.
Tem de haver um planeamento, uma visão de futuro, a
vontade e os meios. Como somos poucos e os nossos votos contam pouco, não
recebemos coisa nenhuma nem temos poder de decisão.
Ouvimos aquela laracha do primeiro-ministro de que “com o
túnel do Marão, Trás-os-Montes vai servir de ponta de lança para a entrada na
Europa”, mas eles estão tolos ou acham que somos nós tolos.
Haverá mais trânsito para Bragança, mas para este lado,
no verdadeiro nordeste, há quatro concelhos Mogadouro, Moncorvo, Freixo e
Alfândega, que estão num buraco, e aqui ninguém vem.
Mesmo que houvesse dinheiro, teria de haver um plano de
desenvolvimento e olhar realmente para aquilo que poderia ser feito numa
província desértica. É uma questão de criar condições para que as pessoas
sintam a possibilidade de se instalar aqui e não é para vir criar galinhas mas
para desenvolver a economia. Não é com bocadinhos, nem com tretas e com festas,
mas com um plano de desenvolvimento.
Trás-os-Montes para eles é o eixo Vila Real, Mirandela,
Bragança, mas para cá não existimos, só temos boas palavras, mas muito
obrigado, agradeço.
Mas se cada vez somos menos, menos peso
teremos. Como se resolve isso?
A democracia não funciona em função do peso das pessoas,
mas do interesse do país e da região. Se há uma zona subdesenvolvida os
governos têm a obrigação de a desenvolver, se não desenvolve é porque não olha
para a região. Se somos poucos é mais uma razão para sermos ajudados e para que
nos sejam dadas as possibilidades de desenvolvimento.
A personagem do livro foi baseada em alguma
história que conhece?
Não, eu tenho muito boa cabeça, eu minto como o diabo.
Mas observo o que acontece à minha volta vejo como as pessoas reagem e
interagem.
Mas vi uma explosão de força bruta de um homem que tinha
uma mula presa a uma corda e por uma razão qualquer desatou aos pontapés a
barriga do animal. Eu tive de sair dali, virei as costas fechei os olhos para
não ver mais. Isso foi o disparo do que é possível acontecer com as pessoas, é
uma violência animal e incompreensível.
O meio rural é muito descrito neste livro.
Acha que é uma forma de quem não é daqui conhecer este meio?
Não, não. Os habitantes da cidade em Portugal têm uma
ideia romântica da província, acham que é os velhinhos, os animaizinhos, as
florzinhas, as noites de luar. Não têm ideia.
O citadino não faz ideia do que seja, tem um interesse de
brincadeira pela província.
Vivem num mundo totalmente citadino e ignoram o resto do
país. Podem ler as palavras, mas as situações não lhes dizem nada.
Têm uma noção muito romântica da província. Ainda agora
esse cantor disse que os transmontanos são feios e desdentados (risos). Esse
homem dá, de maneira caricata, a falta de ideia que as pessoas têm de Trás-os-Montes
e da província.
Só mostra, nem sequer a ignorância, mas o desinteresse.
Por:
Olga Telo Cordeiro.
Retirado
de: www.jornalnordeste.com
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