quinta-feira, 16 de junho de 2016

“Os citadinos têm um interesse de brincadeira pela província” (Entrevista retirada do Jornal Nordeste, publicada em 15/06/2016)



J. Rentes de Carvalho, um dos mais reconhecidos autores portugueses da actualidade, divide os dias entre Estevais, Mogadouro, de onde os pais eram naturais e a Holanda, onde se radicou há 60 anos. Numa entrevista, ao Jornal Nordeste, o escritor fala do seu mais recente romance e da ligação a Trás-os-Montes. Rentes de Carvalho entende que os citadinos têm uma ideia romântica do mundo rural e considera que a falta de vocabulário está na origem da violência. O autor de 86 anos critica ainda a inexistência de um plano de desenvolvimento para o interior. 

Não era, até há alguns anos, muito reconhecido em Portugal apesar de na Holanda vender muito. Podemos dizer mesmo que era um “best-seller” na Holanda…
Ainda sou. Foi em função do meu primeiro livro publicado na Holanda, que era um muito malicioso sobre o país e os Holandeses e contra toda a expectativa eles gostaram tanto que ainda hoje depois de 72 ainda é um “best-seller”.

Mas em Portugal não era tão conhecido até há cerca de 7 anos, quando começou novamente a ser publicado.
O meu primeiro livro saiu em 1968 e foi muito elogiado, principalmente pela figura que então mais contava na crítica, Saramago. Dois anos depois saiu o segundo livro e, à boa maneira portuguesa, o primeiro livro elogia-se, o segundo casca-se, e fui acusado de não saber conjugar verbos, de criar personagens tolos. Então perdi a relação com Portugal e comecei a escrever na Holanda. O meu primeiro livro sai lá em 72, o segundo, “Revolução, Portugal a Flor e a Foice” em 74. Uns após os outros quase todos foram “best-sellers”, inclusive “O Rebate”, que tinha sido tão mal tratado em Portugal, e foi considerado uma obra-prima. Portanto, não tenho razões de queixa, tento encolher os ombros e aceitar o destino.

E nunca ficou sentido, magoado com essas críticas?
Não, para ficar sentido teria de dar muita importância ao desdém e isso era estúpido. Se não gostam de mim, então deixem lá.
A pessoa estando bem onde está e sendo bem tratada, não tem razão nenhuma de ter fel. Claro que é um pouco triste, ao fim e ao cabo não escrevo para os holandeses, escrevo para a minha gente, na minha língua. Mas não me magoa, só dá pena. Mas não dá pena por mim, dá pena por outros.

Passa parte do ano em Estevais, porque é que tem essa necessidade? É uma necessidade vir cá?
Não. Esta casa onde estamos foi construída pelo meu avô materno sozinho. Era para a filha, que nessa altura tinha 12 ou 13 anos, e mais propriamente para o neto (tinha a certeza que ia ter um neto macho), e ele faleceu logo depois da casa estar pronta. Os meus pais, que viviam em Gaia, vinham aqui uma vez por ano e, quando se reformaram, vieram para aqui, mas depois a casa ficou esburacada e a cair. Então ou nós recuperávamos a casa, em honra ao homem que a fez ou deixávamos cair e nunca mais voltávamos, seria o fim da minha relação com Portugal. Achámos que era mais decente honrar a memória do avô, em 1998 a casa foi recuperada e desde então nós fazemos três meses em Amesterdão e vimos para aqui três meses e voltamos.


É uma relação afectiva com esta terra?
É, porque eu não tenho aqui família. Tenho uns primos em quinto grau e alguns amigos, mas a relação é afectiva, pelo lugar que foi da minha infância porque eu vinha para aqui desde que me conheço, nas férias até aos 19 anos. Deixa uma marca muito funda, depois eu estive 14 anos sem vir a Portugal e depois dessa altura quando vim a partir de 74 então a ligação tornou-se mais forte e agora é fortíssima.

Sente necessidade de passar tempo nesta aldeia quando está na Holanda?
Uma necessidade não, mas é uma obrigação sentimental, para com o meu avô, os meus pais, a aldeia. Porque ao fim ao cabo não é lugar onde nasci mas foi o local onde fui gerado, e fui nascer a Vila Nova de Gaia. A força das minhas raízes transmontanas é mais forte do que posso conceber, é uma ligação que não é só física e espiritual, mas uma espécie de ligação com os antepassados, com o cheiro, com o clima, com o ambiente, com a mudança. É a ilusão de que estando aqui presente junto alguma coisa, mas não junto coisa nenhuma.

Esteve fora do país muitos anos, saiu de Portugal por motivos políticos. Sentia saudades também de Trás-os-Montes?
Tinha saudades de tudo. Estive 14 anos fora da minha pátria. Quando saí de Portugal saí zangado com o país, não correspondia à ideia que tinha de um país decente, com uma divisão e sociedade tão estúpida, os mandões e os mandados, era uma situação que me entristeceu. Fui embora com a ideia de nunca mais voltar a Portugal, mas depois começou a saudade e a ausência da família a doer.

Saiu por motivos políticos, mas estava envolvido na política?
Não, mas naquele tempo bastava ter amigos comunistas, como era o meu caso, para ser logo suspeito, é uma atitude estúpida que há nos regimes ditatoriais, quando o cidadão é menos que uma formiga.
Mas foi muito à portuguesa, o meu pai tinha um amigo que era inspector da PIDE e disse-lhe “o teu rapaz corre o risco de um dia acabar na cadeia, porque anda com uns sujeitos que não são assim muito finos” e eu fui embora.

O seu mais recente livro passa-se em Trás-os-Montes e fala de violência extrema e maldade, porquê esses temas?
Na história, o personagem principal mata o homem rico da terra, porque abusava da irmã e ele assistiu a esse abuso desde pequenino, o que ele não sabe é que por detrás desse abuso há uma história ainda mais grave e mais complexa, que o leitor só vai saber no fim do livro.
O personagem é violento, mas tem todas as razões para isso. Tem poucas palavras ao seus dispor, é um homem simples, magoado, por razões graves, mas, porque lhe faltam essas palavras, de cada vez que é confrontado com uma situação que não compreende ou de que não gosta reage à porrada. Se as pessoas olharem à volta vão dar-se conta de que há uma quantidade de pessoas que conhecem que, mesmo tendo alguma capacidade de vocabulário, reagem sempre com violência, com as mãos ou com os pés. O vocabulário não dá para exprimir a sua raiva, e a que fica dentro não sai em palavras, mas com violência.

Diz-se muitas vezes que os portugueses são um povo de brandos costumes, não concorda com isso?
Não, discordo. Brandos costumes, porquê? Porque somos muito gentis com os estranhos? Os transmontanos pelo menos não são assim tão doces e nem precisam ser, a vida não faz as pessoas doces.
Achamos que somos de brandos costumes, mas por dentro sabemos que não somos.

Casos de assassinato por motivo fútil ainda acontecem, por vezes. É característico do Portugal profundo?
É característico das sociedades que sofrem de uma quantidade de complexos, politicamente há igualdade, mas socialmente a igualdade não está em parte nenhuma.
E essa desigualdade entre as pessoas obriga a reacções muito violentas, que começam no seio da família.
É um bocadinho contraditório com o povo de brandos ou mansos costumes.
Na cidade as pessoas têm mais possibilidades de escape, mas aqui estão metidas dentro de casa e já nem vão à rua, fecham-se. E depois levantam-se questões fúteis, pelas mais pequenas razões, um buraco na rua, uma partilha e um caminho, as pessoas descambam logo na violência. A pátria não cuidou de nós, se tivesse cuidado eramos talvez mais doces.
Os velhos ainda se vão matando uns aos outros, mas é difícil na nossa idade apresentar umas pauladas.

Mas esse é outro drama, o despovoamento e o declínio populacional.
Estamos em Estevais, uma das aldeias típicas da morte lenta, há talvez uma dúzia e pessoas acima dos 40 anos, bebés há dois ou três e o resto têm todos acima de 70 anos. Ao fim e ao cabo isto é uma morte lenta. Não há sangue novo nem renovação.
Aqui não há qualquer possibilidade de fixação. Às vezes dá-me vontade de rir, quando dizem: “vamos desenvolver o turismo em Trás-os-Montes”. Mas eles são tolos! O que se lhes mete na cabeça? Que os turistas vêm para Trás-os-Montes? O que se vê são uns pássaros de arribação nas estradas ou a andar de bicicletas, a dar umas voltinhas. Ou o governo faz realmente alguma coisa por Trás-os-Montes ou a província fica uma espécie de reserva, como fizeram na América para os índios ou como o jardim zoológico, fecham aquilo e pronto. Estamos por cá meio sozinhos.

Acha que o turismo não é solução para os problemas da região?
Pois claro que não. Em Moncorvo há uma casa de turismo de habitação e uma residencial, em Mogadouro o hotel fechou. Como quer os turistas? Vão ficar numa tenda no meio da rua.
Tem de haver um planeamento, uma visão de futuro, a vontade e os meios. Como somos poucos e os nossos votos contam pouco, não recebemos coisa nenhuma nem temos poder de decisão.
Ouvimos aquela laracha do primeiro-ministro de que “com o túnel do Marão, Trás-os-Montes vai servir de ponta de lança para a entrada na Europa”, mas eles estão tolos ou acham que somos nós tolos.
Haverá mais trânsito para Bragança, mas para este lado, no verdadeiro nordeste, há quatro concelhos Mogadouro, Moncorvo, Freixo e Alfândega, que estão num buraco, e aqui ninguém vem.
Mesmo que houvesse dinheiro, teria de haver um plano de desenvolvimento e olhar realmente para aquilo que poderia ser feito numa província desértica. É uma questão de criar condições para que as pessoas sintam a possibilidade de se instalar aqui e não é para vir criar galinhas mas para desenvolver a economia. Não é com bocadinhos, nem com tretas e com festas, mas com um plano de desenvolvimento.
Trás-os-Montes para eles é o eixo Vila Real, Mirandela, Bragança, mas para cá não existimos, só temos boas palavras, mas muito obrigado, agradeço.

Mas se cada vez somos menos, menos peso teremos. Como se resolve isso?
A democracia não funciona em função do peso das pessoas, mas do interesse do país e da região. Se há uma zona subdesenvolvida os governos têm a obrigação de a desenvolver, se não desenvolve é porque não olha para a região. Se somos poucos é mais uma razão para sermos ajudados e para que nos sejam dadas as possibilidades de desenvolvimento.

A personagem do livro foi baseada em alguma história que conhece?
Não, eu tenho muito boa cabeça, eu minto como o diabo. Mas observo o que acontece à minha volta vejo como as pessoas reagem e interagem.
Mas vi uma explosão de força bruta de um homem que tinha uma mula presa a uma corda e por uma razão qualquer desatou aos pontapés a barriga do animal. Eu tive de sair dali, virei as costas fechei os olhos para não ver mais. Isso foi o disparo do que é possível acontecer com as pessoas, é uma violência animal e incompreensível.

O meio rural é muito descrito neste livro. Acha que é uma forma de quem não é daqui conhecer este meio?
Não, não. Os habitantes da cidade em Portugal têm uma ideia romântica da província, acham que é os velhinhos, os animaizinhos, as florzinhas, as noites de luar. Não têm ideia.
O citadino não faz ideia do que seja, tem um interesse de brincadeira pela província.
Vivem num mundo totalmente citadino e ignoram o resto do país. Podem ler as palavras, mas as situações não lhes dizem nada.
Têm uma noção muito romântica da província. Ainda agora esse cantor disse que os transmontanos são feios e desdentados (risos). Esse homem dá, de maneira caricata, a falta de ideia que as pessoas têm de Trás-os-Montes e da província.
Só mostra, nem sequer a ignorância, mas o desinteresse.

Por: Olga Telo Cordeiro.
Retirado de: www.jornalnordeste.com

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