sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Entrevista com o arquitecto João Ortega

Senhor arquitecto, começamos, sempre, pelo local de nascimento. É aí que tudo começa. Nasceu numa das maiores cidades do mundo, é caso para perguntar, o que faz um “paulista” em Bragança?

Nascer em São Paulo, penso que, foi um acidente na minha vida. Nunca me naturalizei português, continuo com naturalidade brasileira, e se tenho algumas questões em me considerar português, não tenho nenhumas em me considerar transmontano, ou seja, o nascimento em São Paulo, foi um acidente, de resto, tirando o período de formação superior, sempre estive em Bragança e, portanto, não me parece que me possa chamar “paulista”, agora, sou transmontano, certamente.
Eu diria que não há, tirando o facto de lá ter nascido, mais nenhuma relação, neste momento, com a cidade de São Paulo, ou com o Brasil; mantenho a nacionalidade brasileira, mas a minha ligação é aqui a Trás-os-Montes, primeiro por força da idade que tinha e de os meus pais serem daqui e aqui residirem e depois por uma opção de ter vindo para Bragança depois de ter acabado a licenciatura.

Que recordações guarda da sua infância e da sua adolescência? Foi uma adaptação difícil?

A minha infância decorreu muito perto de Bragança, e diria que em condições, de alguma forma, particulares e até excepcionais; os meus pais trabalhavam aqui perto num local chamado Minas da Ribeira que é um mundo à parte, porque não sendo um espaço urbano, e hoje faço essa afirmação com todo o peso que o urbano significa, também pela minha formação profissional, não sendo um espaço urbano também não era um espaço rural; a minha infância é vivida num espaço protegido, um espaço que estava bem delimitado, e que nos fornecia uma segurança muito grande; eu vivi lá até as minas fecharem em 1973, e de facto penso que era um óptimo sítio para ter vivido a infância.

Concluiu o ensino secundário em Bragança, na escola secundária Emídio Garcia; segui depois para Lisboa onde se licenciou em arquitectura e imediatamente regressou à cidade de Bragança. Não é um percurso muito usual nos dias que correm, fale-nos desse percurso.

Até à entrada na faculdade a ideia que tinha do mundo era uma ideia aqui do lugar, aqui de Bragança. A passagem por Lisboa e os cinco anos de formação superior são, necessariamente, de alargar horizontes e de ver outros mundos, no entanto, e sobretudo nos dois últimos anos de formação superior, foi-se tornando cada vez mais claro, que não era uma cidade ou um espaço com aquelas características do local onde eu queria viver e, por isso, a decisão de regressar a Bragança, que era tempo em que eu me formei, e que em conversa ainda muito recentemente com algumas pessoas mais novas que eu, estava eu convencido que eram hoje as coisas diferentes, mas afinal não são; efectivamente a saída para o ensino superior significa para Bragança, no que eu posso chamar já o meu tempo, a saída de gente que não regressou, dos que andaram comigo no liceu, regressou, anos depois, um outro que continua cá em Bragança; de resto todos os meus amigos e colegas de liceu que entraram no ensino superior, acabaram por ficar fora de Bragança, e isso, parece-me que significou e continua a significar, para Bragança, uma perda muito significativa de pessoas que certamente interessariam à região.

Sim, porque a partir do momento em que se formam é que elas podem contribuir de alguma forma para o desenvolvimento da região…

Não me parece que sejam só aquelas que se formam no ensino superior, serão todas, e penso que esta é que é a questão fundamental da região, é a necessidade de haver cá pessoas mas, certamente, aquelas que têm formação ao nível superior seriam desejáveis à região.

Acabou o curso de arquitectura e desde então tem desenvolvido a sua actividade profissional aqui em Trás-os-Montes. Nunca sentiu o apelo dos grandes centros?

Podemos encarar o apelo dos grandes centros de duas formas: por um lado a falta de qualidade de vida que um centro determina, não é uma opção a falta de qualidade que nós lá temos para viver, e nesse aspecto a minha opção de regressar a Bragança, é uma decisão consciente de que eu quero viver num local que me proporcione vida, e é coisa que entendo que uma metrópole não proporciona, hoje em dia e, mesmo no passado, embora as metrópoles sejam relativamente recentes, historicamente, as grandes áreas urbanas só começaram a crescer depois da revolução industrial e, portanto, mesmo na história não temos exemplos que possamos considerar muito antigos.
Ao nível profissional, ao nível do que é desenvolver uma carreira profissional, é evidente que um lugar como Bragança não é o melhor local para desenvolver uma carreira profissional e, se há vinte anos atrás, acreditava naquilo que considero, hoje, algumas miragens sobre o que seria o desenvolvimento da informática e de podermos trabalhar num determinado lugar para o mundo inteiro, a verdade é que o mundo evoluiu espantosamente nestes últimos vinte anos mas, a verdade é que ficou no mesmo sítio, ou seja, é falso que se possa trabalhar em Bragança ou noutro local menos central e ter as oportunidades de desenvolvimento de uma carreira, de conseguir determinados trabalhos sem estar junto do poder e a questão é essa que, a partir do momento em que determinarmos uma ambição para o trabalho que queremos fazer, ou lidamos de muito perto com o poder ou não é de certo num local como Bragança que conseguiremos desenvolver isso.

Não é, portanto, de opinião que, com a chegada da Internet, a banda larga, as televisões, as rádios, que nem por isso um profissional pode sair do seu “mundinho” para o mundo todo, mesmo estando em Bragança?

Há vinte anos, quando terminei o curso de arquitecto, e eu tinha um grupo de amigos que se encontrava aqui de férias, o grupo de amigos do liceu, mas que regressava de férias para nos encontrarmos aqui; é muito mais fácil encontrarmo-nos aqui do que em Lisboa, é muito mais fácil ter aqui um grupo de amigos com o qual possamos desenvolver uma determinada ideia ou pensamento, e portanto, evoluirmos em conjunto, do que em Lisboa num espaço onde o encontro é virtualmente impossível, por isso eu acreditava que seria possível ter aqui um grupo que efectivamente tivesse ambição ao nível do pensamento, ao nível de desenvolver determinadas situações, e que poderíamos estender isso ao mundo inteiro porque o mundo é hoje demasiado pequeno, mas a verdade é que isso não é assim; no momento em que o tempo de estudante acabou, no momento em que as férias acabaram e passamos ao trabalho, aquilo que nos resta é uma realidade em todos os sentidos, demasiado pequena, demasiado tacanha e o grupo de férias perdeu-se, está perdido pelo mundo, esse encontro não acontece e não é pelo facto de estarmos ligados a uma máquina que as oportunidades, quer económicas, quer intelectuais aparecem, quer dizer, a Internet é para mim uma grande desilusão.

Prefere o contacto pessoal, não é?

Não é uma questão de preferência de determinadas coisas que acontecem quando as pessoas se encontram, num espaço e num ponto comum, e a Internet não proporciona isso.

A sua vida profissional assenta inteiramente na formação da sua vida académica, é fácil se arquitecto em Bragança?

Ser arquitecto em Bragança não é fácil, não é fácil nem ser arquitecto em Portugal e muito menos em Bragança, primeiro porque a generalidade da população nem sequer tem assimilado o termo arquitecto, não apenas ao nível de gente com formação académica reduzida mas, mesmo ao nível de licenciados sem saberem a distinção entre um engenheiro e um arquitecto, e sou frequentemente tratado por engenheiro, como se isso fosse um elogio; a guerra entre engenheiros e arquitectos é uma guerra para mim terminada, quer dizer, a Morfopolis, que é a empresa de que já falou e da qual eu sou o proprietário, o gestor, o director e por ai fora é uma empresa que desde o início teve engenheiros a trabalhar, tem neste momento engenheiros a trabalhar que são absolutamente indispensáveis para nós, conduzir-nos uma obra desde o princípio ao fim, no entanto as nossas actividades são complementares, não são sequer semelhantes, são complementares, e portanto, eu não tenho que falar mal dos engenheiros, nem os engenheiros têm que falar mal dos arquitectos, na minha opinião; agora no meio em que nem o termo está assimilado, é evidente que não é fácil ser arquitecto.

Fale-nos da sua ideia de arquitectura?

A arquitectura, eu penso que o desafio de ser arquitecto é um desafio de tentarmos vencer a complexidade, que noutras profissões tendem cada vez mais para a especialização, em que um médico tende cada vez a ser mais especialista de determinada matéria e é quase impossível tocar em todo o âmbito da sua própria profissão, ou então toca-se muito ao de leve, eu diria que o grande desafio da arquitectura é que continua a ser a profissão mais próxima do renascimento no sentido do Leonardo Da Vinci que é alguém que domina o saber do seu tempo na sua quase totalidade; é evidente que o saber técnico daquela altura era muito reduzido, e portanto, era possível a um homem só conseguir abancar todo esse universo, hoje isso não é possível ao nível técnico, de facto, nós temos que ir cada vez mais para a especialização, mas a arquitectura é acima de tudo bom senso, é uma capacidade de lidar com uma série de conhecimentos de âmbito muito diverso e conseguir ligar numa única coisa, que será a obra de arquitectura.

A arquitectura é mais que uma boa e arrojada construção. É a resposta. A função e a exigência, não apenas física ou fisiológica mas, sócio cultural. Quer comentar esta afirmação?

O que eu lhe disse antes, acho que já lhe responde um pouco a tudo isso. O arquitecto deve coordenar uma série de saberes. Não significa que os domine na sua totalidade pois, é impossível a uma pessoa só, dominar todo o conhecimento que a humanidade desenvolveu e que detém mas, o arquitecto tem de usar o bom senso para coordenar todos os saberes que o rodeiam; eu penso, de facto, que é esse o grande desafio e a arquitectura pode tocar todos esses saberes lidando com eles, usando acima de tudo o bom senso.

O que destacaria na arquitectura contemporânea portuguesa?

A arquitectura contemporânea portuguesa é formada por uma série de nomes que têm muita importância a nível mundial e, portanto, nesse aspecto estamos bem. Agora, esse reconhecimento a nível mundial, de maneira nenhuma, foi transportado para o interior do território e, se calhar, aquilo que está a ser feito implica inclusivamente perversidade no sentido de que toda a gente quer uma “obrazita” do arquitecto A, B, C ou D que são os três ou quatro nomes sonantes que existem na arquitectura portuguesa.

E já agora o que destaca na arquitectura contemporânea a nível mundial?

A nível mundial a arquitectura desenvolve-se por caminhos absolutamente díspares. É impossível falar hoje de corrente arquitectónica como no passado mas, isso acontece ao nível da arte em geral, da arquitectura e por ai fora, portanto não é possível. Tal como em Portugal, existem, também, a nível mundial alguns nomes de topo que são aqueles que a comunicação social vai divulgando mas, a arquitectura que se desenvolve hoje no mundo é muito mais do que isso e, aí sim, a facilidade de comunicação, a força de informação entre o mundo inteiro é hoje praticamente instantânea, o que possibilita o desenvolvimento de correntes díspares. Do que é preciso ter ideia é que a arquitectura não é a verdade de um só caminho, de um só sentido… a arquitectura são múltiplas verdades de sentidos múltiplos e sem qualquer problema, opostos. O que é verdade para um arquitecto, o que é branco para um arquitecto pode ser preto para outro e os dois terem igual validade.

Foi inaugurada recentemente a sede da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de Bragança, uma obra sua, que consideramos emblemática, onde tudo parece ter sido pensado até ao ínfimo pormenor, onde a arte e a funcionalidade dão as mãos num casamento quase perfeito, quer falar-nos dessa obra?

A sede da Caixa de Crédito Agrícola de Bragança, é sem dúvida, dentro da minha carreira de arquitecto, uma das obras mais significativas. Primeiro porque foi levada, do princípio ao fim, com o mesmo empenhamento e com os mesmos princípios, porque a minha actividade como arquitecto na região, tem levado sobretudo um sentido pragmático, ou seja, independentemente das ideias que eu tenha, eu tenho que me adaptar, quer à situação, ao local, ao cliente, à cultura do cliente, à disponibilidade financeira do cliente, o empenho do cliente em levar a obra até ao fim ou não. O que é muito frequente é começar com grandes entusiasmos mas, o entusiasmo acaba por esmorecer logo nas primeiras dificuldades… ora, essa não foi a situação que aconteceu na caixa de Crédito Agrícola Mútuo. Primeiro por força do principal responsável da construção, o director da Caixa em Bragança, o Sr. Adriano Diegues que, para além de cliente, foi alguém que continuamente pôs desafios ao próprio projecto e, aquilo que eu tenho hoje, muito consciente, é que é impossível fazer uma boa obra de arquitectura sem ter um cliente exigente e, nesse aspecto, ele não foi apenas um cliente exigente, que exigia que aquilo se fizesse bem, pagando é certo o custo que a obra teve mas, mais do ser exigente foi alguém que, continuamente, ao longo de todo o processo, me impôs a mim como arquitecto desafios no sentido de que a obra fosse cada vez melhor, e isso produziu o resultado que ali temos.

Foi a exigência da parte dele que fez andar o projecto?

Se nós não temos um cliente que impõe um grau de exigência mas, antes pelo contrário, vai continuamente cortando a ambição da obra e, isso é o habitual, não conseguiremos fazer uma obra de qualidade.

Tem, também, desenvolvido muita obra em Vila Flor, quer falar-nos dessa sua actividade?

Vila Flor é um concelho onde eu trabalho já há quinze, dezasseis ou dezassete anos. Sinceramente não tenho esses números de cor, dou assistência à câmara municipal no licenciamento de obras particulares e tenho lá um dos meus principais projectos que, é o centro cultural de Vila Flor, centro cultural que teve algumas reacções não muito positivas, ao longo da sua construção; após a sua utilização é um projecto que eu considero muito ambicioso mas, onde falhou, claramente, a componente de o executarmos com qualidade, e também aquilo que era fundamental para que a obra fosse utilizada na sua plenitude.
Fale-nos, por favor, do património arquitectónico da Igreja na nossa região; haverá talvez muito a fazer…

Sinceramente penso que, daquilo que eu conheço, tem sido preservado com mais ou menos erros mas, de alguma maneira, tem vindo a ser preservado. Pelo menos eu não conheço nenhuma situação de clara necessidade de intervenção urgente. As intervenções iam sempre sendo necessárias mas, também, não será um assunto que eu domine na totalidade. Poderei conhecer alguns casos em particular mas, não tenho uma ideia do conjunto.

Existe em Trás-os-Montes uma arquitectura tipicamente transmontana?

Existem características que tornam o espaço de Trás-os-Montes típico mas, não me parece que isso seja hoje, quer dizer, existe ao nível da arquitectura popular, não ao nível da arquitectura erudita. Trás-os-Montes sempre foi uma região pobre, sempre atraiu muito poucos arquitectos e, portanto, mesmo algumas obras de referência que nós vemos por aqui, do passado e com valor, são mais obras de mestres-de-obras que, atenção, não tem nada de mal. Era gente que tinha aprendido a arte, de alguma forma e, depois, vieram aqui fazê-la. Portanto, ao nível da arquitectura erudita, tirando, se calhar, e posso estar a cometer algum erro mas, tirando a passagem do arquitecto Viana de Lima, aqui por Bragança, se calhar, não é de referenciar outra passagem significativa.

Existem construções características interessantes espalhadas pela nossa paisagem, como por exemplo, os pombais que são uma construção bem transmontana. Em sua opinião o que deve ser preservado?

Aquilo que mantenha Trás-os-Montes vivo.

Ou seja, tudo que seja tipicamente transmontano?

Não, na minha opinião não, porque o tipicamente transmontano só faz sentido enquanto sustente uma comunidade viva. A questão da defesa do património é, hoje, uma má consciência do século XX ou XXI e uma má consciência que vem da nossa enorme capacidade de destruir, ou seja, até há muito pouco tempo as obras importantes eram feitas em cima e com as pedras de outras obras importantes. Foi assim que se encarou o património ao longo de todos os séculos. Se o passado tivesse tido a má consciência sobre o património que nós temos hoje, a catedral de São Pedro não teria sido feita porque estava a original igreja fundada por São Pedro. A questão é que nós nunca tivemos, no passado, a capacidade de destruir que temos hoje. Hoje somos capazes de alterar a paisagem, somos capazes de tornar Trás-os-Montes, plano. Se alguém tiver interesse em que isso aconteça, o homem tem hoje a capacidade técnica para o fazer. Então, como somos capazes de destruir tanto, temos que nos agarrar com unhas e dentes a pequenos sinais, a pequenas coisas que têm o valor que têm e que deve ser relativizado. Eu não estou a dizer que o património deve ser destruído… estou a dizer que ele só é válido e, isso leva-nos um pouco mais mas, a arquitectura também não se limita ao seu campo restrito e isso dizia eu há pouco. O desafio é exactamente poder tocar todas as coisas. O património só tem sentido enquanto pertencente a uma comunidade viva, porque de resto é museu e, posso dizer que, aquilo que chocou tanto, que vinha esta semana num jornal aqui da região, uma placa em Mogadouro a dizer “Aldeias Abandonadas”, muito pior é porem lá aldeias típicas se elas estão efectivamente abandonadas. Nós temos de olhar de frente para as coisas e encará-las. São típicas em quê? Uma aldeia típica é uma aldeia cheia de gente, com pessoas, com animais, culturas, e por ai fora! Portanto, se põem lá uma placa a dizer “aldeia típica” para uma aldeia abandonada, estão a cometer um erro enorme. Somos cegos enquanto quisermos ser cegos e não querermos ver a realidade do que temos à frente.

Não existe, na nossa região, uma grande tradição solarenga. Recebe muitas propostas de reabilitação de casas tradicionais ou ainda continuamos com a ideia de que o que é moderno e estrangeiro é que é bom?

Continuamos com as duas ideias mas, no sentido de que o património é para ser preservado e, portanto, tem de ser preservado de tudo um pouco mas, continuamos, também, a aceitar que aquilo que vem de fora é que é realmente bom e melhor do que aquilo que nós produzimos.

E a zona histórica de Bragança? Que caminhos seguir para conseguir tirar um melhor partido desse património?
           
Não vejo a cidade de Bragança como algo que vive por si só. Penso que, não sei se é a pergunta que me está a fazer mas, se calhar, vou desviá-la um pouco. Eu penso que a questão é: “Que futuro temos para a nossa região?” Acho que a questão é essa. Porque não é dinamizando o turismo na zona histórica de Bragança? Iremos ter capacidade para sustentar a vida na região de Trás-os-Montes? Que futuro eu vejo para a região de Trás-os-Montes? Não é, certamente, pelo turismo. O turismo é, na minha opinião, uma miragem em que o políticos nos acenam, quando andam atrás dos nossos votos. Tirando isso, o turismo dará sustento a meia dúzia de famílias em todo o Trás-os-Montes. Se queremos Trás-os-Montes com meia dúzia de famílias então, efectivamente, o futuro da região de Trás-os-Montes é o turismo. Se queremos Trás-os-Montes como uma região viva, aí a questão é muito diferente, e a questão, na minha opinião, passa por uma questão tão radical como reformularmos o próprio conceito de democracia. A democracia nasceu de um princípio em que cada homem era igual a outro homem e tinha direito a um voto. Ora, eu entendo que esse é um princípio correcto até a este momento ninguém conseguiu inventar um melhor mas, sinceramente, penso que é chegada a altura de refazermos um pouco a direcção do que é a democracia. Eu entendo que o território, também, tem uma palavra a dizer sobre a democracia, não apenas os homens, porque os homens não vivem sem o território e o território humanizado porque, também, podemos entender que ele não precisa do homem, o homem precisa do território mas, o território não precisa do homem. No espaço da cultura ocidental em que nos integramos, na Europa em que nos integramos, o território é efectivamente humanizado e, portanto, se queremos gente em Trás-os-Montes temos que entender que só pelo espaço que ocupamos temos determinados direitos e direitos que são, na minha opinião, não exigíveis sobre o ponto de vista do subsídio ou de pedirmos uma esmola a quem é mais rico do que nós. Efectivamente, somos uma região pobre, temos poucos recursos mas, as coisas não se podem por, no sentido de que quem é mais rico, tem que nos subsidiar de alguma forma, não é na minha opinião dessa forma, que as coisas poderão evoluir.

Aproveito a sua dica para voltar à zona histórica de Bragança. Parece-lhe que as casas degradadas da zona histórica de Bragança têm que ser reabilitadas por nós, não por subsídios que venham de fora?

Têm que ser reabilitadas por nós mas, não me deixou concluir porque eu ia-lhe dizer como é que, na minha opinião, isso será realizável ou não. Primeiro porque Portugal tem que adquirir uma formação, já que não tem a tradição do ordenamento do território, não é sustentável, quer dizer, o território não é um local de liberalismo, é um local que com a dimensão da transformação que nós conseguimos impor, é um local que tem que ser planeado e como tal aquilo que acontece em relação ao litoral, não é apenas em Portugal, é no fundo em todo o mundo ocidental ou em vias de ser ocidentalizado porque a questão é que a cultura ocidental está efectivamente a dominar o mundo. O litoral exerce uma atratibilidade sobre as pessoas que o interior nunca conseguirá exercer, o que é preciso fazer é que é preciso ter consciência que a concentração excessiva num determinado local tem custos elevadíssimos e eu não defendo que os de Lisboa financiem a minha estadia em Trás-os-Montes. Agora a questão é saber, se o lisboeta está a financiar os custos daqueles que vivem em Trás-os-Montes ou se somos nós que estamos a financiar os custos elevadíssimos da enorme concentração populacional num determinado lugar, claramente, somos nós que estamos a financiar porque, senão vejamos: vamos ao essencial, num ano em que a seca nos está ali à porta onde é que Lisboa e um local que tenha quatro ou cinco milhões de habitantes têm recursos sequer para sobreviver. Onde está a água, onde está a capacidade de retenção de água, que é fundamental, quer dizer, qualquer ser vivo morre ao fim de poucos dias se não tiver água, não é certamente em Lisboa que é possível fazer a retenção da água sequer para eles poderem sobreviver; agora a concentração exagerada da população num determinado local significa custos demasiado elevados, que alguém paga, mas não são as pessoas que lã vivem, são as pessoas que vivem no resto do território, mas também o abandono do território tem custos elevadíssimos. Eu propunha uma medida muito simples. A maior parte do território abandonado pertence ao estado, o estado que pague uma multa por abandonar o território, não é preciso que me dê subsídios para eu recuperar o território histórico de Bragança, o estado que pague uma multa pelo território que tem abandonado e que não pode estar abandonado, mas no dia que isso acontecer então terá chegado à conclusão que tinha que ser distribuída a população por todo o território; ora se nós recuarmos na história e nos arrogarmos mais inteligentes do que no passado, se nós recuarmos na história, D. Dinis foi isso que fez, a maior parte das cidades foram fundadas numa tentativa de perceber, ou o território está ocupado ou é um território perdido, quer dizer é assim desde sempre na história ocidental, mas hoje esquecemo-nos disso, hoje podemos viver todos em Lisboa tranquilamente, temos todos os serviços à nossa volta, todo o poder à nossa volta, portanto, é lá que estamos bem, parece; não é isso que eu penso, mas parece que é lá que estamos bem, e abandonamos o resto do território, depois quando arde no verão arde porque está abandonado; agora se está abandonado alguém foi o culpado e, esse alguém, tem que pagar essa culpa e o pagamento dessa culpa significa o distribuir a população pelo território, o distribuir a riqueza pelo território, então nesse dia não é preciso recuperar o centro histórico de Bragança para o turismo; nesse dia o centro histórico foi recuperado pelas pessoas que cá vivem.

Que fazer para estancar de vez a desertificação nas aldeias?

Que fazer? Ordenar o território, mas também temos que ser claros que a eventualidade de algumas aldeias desaparecerem existe; agora a questão é que nós não devemos ser levados pela corrente dos acontecimentos, não podemos ser levados porque as coisas desaparecerão, mas devemos fazer as coisas com determinados objectivos; a generalidade dos municípios de Trás-os-Montes está neste momento a rever o plano de directores municipais, os planos de directores municipais que foram feitos à dez anos com a maior das boas vontades, por quem não sabia fazer planos dos directores municipais, porque era a primeira vez que se estavam a fazer em Portugal, foram feitos com boa vontade e também os concelhos que não tinham PDM (plano director municipal) não podiam candidatar-se a fundos europeus, foram com uma série de erros, na minha opinião, dez anos depois devíamos ter aprendido com os erros, e tal não me parece que tenha acontecido, a generalidade do território de Trás-os-Montes é classificada como reserva ecológica, ora a questão é que as regras definidas para a reserva ecológica fazem com que um pastor que queira construir uma corriça não o pode fazer numa reserva ecológica, porque o estado o proibiu, mas quando no verão o pastor que até é acusado de ser um dos fomentadores dos fogos florestais, se tivesse a sua corriça no meio de um zona de reserva ecológica certamente não quereria que essa zona ardesse, agora se ela esta absolutamente deserta por culpa do estado e é preciso que se diga isso, porque ela se esta deserta é porque o estado proibiu qualquer actividade humana nessas zonas com a melhor das boas vontades, com a melhor das ideias que temos que ter reserva ecológica, que isto vai ser muito bonito, que é para mostrar-nos as paisagens aos turistas, mas isso conduziu a desertificação, ora aquilo que eu acho que dez anos depois se deveria fazer é que a revisão dos PDM, deveria ser feita com objectivos claros e transmiti-los as populações, se nós queremos que uma determinada aldeia tenha cinquenta habitantes, se queremos que tenha mil deve ser lá escrito e dito, daqui a dez anos nos queremos atingir esse objectivo é evidente se eu quero aumentar a população numa determinada zona, tem que ser feita a custa de outra zona, mas temos um exemplo muito claro, a união Europeia estabelece cotas para a produção de alimentos porque percebeu que não interessava que toda a gente produzisse o mais possível, é preciso atingir um equilíbrio e se Portugal atingir um equilíbrio com dez milhões de habitantes, aparentemente parece-me que é um numero em que podemos concordar, se quero que uma determinada zona aumente, se estabelece como objectivo que uma determinada zona aumente populacional mente, isso tem que ser feita a custa de outro, mas isso era relativamente difícil de faze-lo, o produtor produzir mais leite do que a cota que lhe foi atribuído tem uma multa a pagar, o aglomerado que tiver mais habitantes do que o objectivo que foi previsto atingir tem uma multa a pagar, para que o outro possa atingir o objectivo que também foi pré estabelecido.

Conquistar a estabilidade?

Conquistar a estabilidade, desenhada, prevista, porque a estabilidade conseguimo-la eternamente, nós vamo-nos adaptando, agora que dizer, temos que nos ir adaptando a uma realidade que nos caí aos trambolhões pela frente ou a uma realidade que queremos desenhar e construir, a uma realidade que queremos que seja assim, se eu vivi numa determinada aldeia e quero saber se daqui a 10 anos o meu filho vai ter condições de se fixar nessa aldeia ou não, agora se for aquilo que vier a acontecer eu não faço a mínima ideia, portanto, eu não tenho nenhuma previsão e num pais que pelos vistos aquilo que nos falta são ideias porque por lutar parece-me que estamos a estabelecer objectivos a atingir para cada uma das regiões, para coda um dos aglomerados, aldeias, vilas, cidades, se calhar era capaz de ser uma ideia mobilizadora pelo menos para lutarmos pela viragem.

Posto isto, sem fazer futurologia o que espera para o futuro de Trás-os-Montes?

Um futuro francamente negro, porque não me parece, primeiro esta ideia que eu aqui disse venha de alguma forma a ser concretizada, não vejo sinceramente à minha volta gente com disponibilidade, capacidade, interesse para lutar por um futuro da região, mas um futuro em que nós pré determinamos o sítio onde queremos chegar, aquilo que vejo é gente acomodada, se calhar com razão porque a história não nos tem animado, mas numa região onde o passado é um ciclo que foi o regresso dos retornados e que trouxe gente para a região, passado um ciclo que foi o dos emigrantes que traziam não gente mas dinheiro para a região, passado um ciclo que foi o do IPB que trouxe alunos para a região mas não vejo no futuro de forma alguma que possa competir com escolas no litoral também ai a questão era a mesma qual o nº de alunos que queremos em Bragança, que é preciso que tenham em Bragança o curso A, B, C, esses cursos não sejam facilitados no litoral porque ai Bragança será sempre a última escolha tendo ou não boas instalações, tendo ou não bons professores, Bragança será a última escolha no meio de uma série de alternativas, se queremos uma rede de ensino superior distribuído pelo pais é preciso dizer que vamos ter x alunos e esse x alunos têm x lugares disponíveis e outros tiverem num lado não podem ter noutro, não podemos ser concorrentes para nos canibilizarmo-nos uns aos outros, temos que ser concorrentes ao nível de estimular a qualidade mas não para ver qual é que consegue matar o parceiro do lado para sobreviver.

Agora para terminar que personalidade ou personalidades mais o marcaram ao longo da sua vida?

Sem dúvida o meu pai, se calhar, por aquilo em que somos diferentes e por aquilo que nos tornamos iguais.

1 comentário:

  1. Concordo consigo, caro colega! E aproveito para manifestar a minha admiração, não só porque se constitui como um dos poucos "resistentes" que tiveram a "ousadia" e a coragem, já agora, de se fixar num território cheio de potencialidades, é certo, mas também deficitário a vários níveis- de qualquer modo, um exemplo que deveria ser seguido por muitos (aqui há um pendor utópico premeditado)!....Bem haja pelo seu trabalho e persistência em prol dessa comunidade que muitas vezes é melhor madrasta do que mãe...Um abraço amigo

    Helder Manuel Caseiro,arq.to

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