domingo, 13 de fevereiro de 2022

Entrevista transcrita do Professor Doutor Fernando Faria Correia, médico oftalmologista

Conforme previsto, temos o prazer de publicar a entrevista realizada ao Professor Doutor Fernando Faria Correia.



Entrevista ao Professor Doutor Fernando Faria Correia

 

Maria Cepeda (M.), entrevistadora

Fernando Correia (FC), entrevistado

 

M. – Obrigado por ter vindo! Hoje temos connosco o Doutor Fernando Faria Correia que é investigador da Escola de Ciências da Saúde da Universidade do Minho e foi o único especialista da Península Ibérica a integrar a “lista Top 40, abaixo dos 40 anos”, elaborada pela Biophtalmologist [ou Biophtalmology Jourmnal ou Ophtalmology Journal?] a principal revista científica do setor e isso aconteceu em 2015, se não estou em erro.

É um oftalmologista talentoso que tem publicado artigos importantes na área de ceratocone, catarata e cirurgia refractiva. É especializado em cirurgia refractiva córnea e cirurgia de catarata. É revisor de várias publicações científicas além de pertencer ao grupo de tomografia e biomecânica do Rio de Janeiro. Publicou dezenas de artigos científicos e recebeu inúmeras distinções.

Concluiu a licenciatura em Medicina na Faculdade de medicina da Universidade do Porto em 2007 e realizou o internato de formação específica em oftalmologia no Centro Hospitalar de S. João, Porto, Portugal, de 2009 a 2012. Durante o último ano de internato integrou a Fellowship de Córnea e Cirurgia Refractiva liderado pelo Professor Doutor Renato Ambrósio Júnior, Rio de Janeiro, Brasil. Em 2013, realizou outro Fellowship em Catarata e Cirurgia Refractiva liderado pelo Dr. George Waring, na University of South Caroline Storm Eye Institute, na Carolina do Sul, Charleston, nos EUA. Além de ter uma prática clínica movimentadíssima, atua ativamente na pesquisa clínica e integra as atividades do grupo de estudos em Tomografia Biomecânica da Córnea do Rio de janeiro. Também atua ativamente no ensino, sendo instrutor em vários cursos e orador convidado em distintas conferências internacionais. Em 2017, defendeu a sua tese de doutoramento em medicina, obtendo o título de Professor Doutor e concluiu ainda o curso de Physian CO na Kellogg School of Management, na Western University, nos EUA. FC. - Chicago.

 

M. - Em Illinois. Ora, o Professor Faria Correia é revisor de várias revistas internacionais de oftalmologia. Desde 2020 faz parte do conselho editorial da Cataract and Refractive Surgery Today Europe. E é membro do conselho internacional da International Society of Refractive Surgery. Atualmente, também é editor chefe da Revista Oftalmologia da Sociedade Portuguesa de Oftalmologia (SPO). Ora, isto é um currículo que nos deixa sem fôlego, apenas com 38 anos de idade.

Hoje temos então o privilégio de o entrevistar. Um jovem transmontano, natural de Bragança, com provas dadas na sua profissão a nível nacional e internacional. Professor Doutor Fernando Faria Correia, com apenas 38 anos, e volto a repetir, tem um currículo impressionante. Avancemos com as perguntas…

De que forma, o facto de, apesar de não ter nascido em Bragança, mas tendo sido cá registado, de que forma esse facto o influenciou?

FC. - Antes de mais, obrigado pelo vosso convite para participar na entrevista.

M. - Para nós é um gosto.

FC. - Sabe que eu tenho uma saudade enorme em passar no IP4, no Marão, quando vejo aquela placa “O Reino Maravilhoso” de Miguel Torga… para lá do Marão mandam os que cá estão. Estou desde 2001 na Cidade Invicta e quando falo dizem que “este sr. Não é de cá; tu não és de cá, és transmontano”. O sotaque fica, felizmente. E tenho muito orgulho em dizer que sou transmontano e que sou de Bragança. Sou brigantino.

M. – Ótimo! Isso a nós só nos deixa felizes! E isso influenciou de alguma forma a sua maneira de estar na vida?

FC. – Influenciou porque aqui, Bragança é, vamos dizer, um microclima que nos permite crescer de uma forma mais natural; permitiu-me, a mim, preparar-me para enfrentar um pouco a sociedade, enfrentar o trabalho, enfrentar o estudo, estar em momentos só porque estive em muitos cantos do mundo sozinho, muita viagem de avião sozinho, espera de avião nos aeroportos e a gente, na solidão, às vezes, aprende a filosofar, a meditar e é aí que crescemos como pessoas, como também o que nós podemos contribuir para a sociedade, nomeadamente… acho que o que fez isso… por exemplo, eu estou aqui, num local onde dei os meus primeiros passos. Isto era o 2.º ciclo, a preparatória Augusto Moreno era aqui, fui aluno aqui e é um prazer enorme estar aqui a dar esta entrevista num sítio que me preparou para enfrentar hoje este planeta Terra, que é, cada vez mais difícil.

M. – Muito, realmente! Agora vamos para a profissão que escolheu e eu perguntaria: porquê oftalmologia?

FC. – Foi uma opção difícil. Estive até à última hora antes de ir para a cama a escolher entre oftalmologia ou cirurgia plástica. O meu pai não se meteu em nada disso. Escolhi oftalmologia. Porquê? Oftalmologia tem uma vertente que é a cirurgia de micro incisão.  Cada vez mais, a medicina evolui para técnicas minimamente invasivas. Ainda hoje, recebi uma notícia que está relacionada com o meu doutoramento que são uns colírios que se colocam nos olhos que revertem a vista cansada. Foi aprovado pelo FDA. Esse tipo de medicamento está um pouco relacionado com a temática do meu doutoramento. É uma especialidade que, além de ter o componente cirúrgico, tem componente médico, tem exames complementares de diagnóstico e é uma especialidade inovadora. Foi a 1.ª especialidade onde se usou o laser, a palavra mágica, e acho que na medicina é aquela especialidade que é de ponta em termos de desenvolvimento.

M. – Como sabe, o meu marido cegou, está cego neste momento, depois de vários problemas a nível oftalmológico e depois de várias cirurgias… na altura não havia resposta. Imagino que se fosse hoje, talvez houvesse resposta para o que lhe aconteceu. Mas, enfim, avancemos, que a vida não para. Depois da especialidade não se deu tempo para descansar. Quer falar-nos do seu percurso académico e profissional?

FC. – Eu, se calhar, não vou descansar neste mundo. Talvez no próximo.

M. – Pois, vejo que sim! É que não se dá tempo mesmo! Não pára!

FC. – Não vou descansar neste mundo… Na próxima semana vou para Nova Orleães. Vou receber outra vez mais uma distinção da Academia Americana de Oftalmologia.

M. – Parabéns!

FC. – Sabe que, as pessoas que referenciou há bocado – o Renato Júnior e o George Waring IV, são filhos dos colegas que introduziram a cirurgia refractiva nos EUA e no Brasil. E eu vou receber a medalha Waring, por ter sido a pessoa que mais contribuiu para a promulgação e desenvolvimento do conhecimento da cirurgia refractiva no ano 2020/2021em termos mundiais e vou receber essa medalha a Nova Orleães. Daqui a três semanas vou estar no Dubai a dar formação. Mais a clinica, mais os doentes e mais a família que é importante. É a pedra basilar. Portanto, não é neste mundo que vou descansar.

M. – Mas seja feliz não descansando!

FC. – Não, não! A gente quando corre por gosto não se cansa, já dizia o meu avô.

M. – Nem mais! Quando corremos por gosto nunca cansamos. E eu acho que tem muito chão para andar.

FC. – Ah, sim! Eu acho que…é o seguinte: a questão…a minha felicidade foi ter-me cruzado com as pessoas mais incríveis da minha vida. Foi desde o meu avô materno…

M. – Que lhe deixou muitas saudades…deixou imensas saudades. E sabe que a minha avó, aqui para amenizar um bocadinho, a minha avó era prima carnal do seu avô, o pai da sua mãe.

Pois…é difícil…quando gostamos dos nossos, é muito difícil. (Aqui, por breves momentos, a emoção falou mais alto e Fernando Correia chorou pelo avô materno)

FC. - … e o meu pai e um professor brasileiro que é como um irmão. Há pessoas que…não fazem o trabalho, mas indicam a orientação que devemos ter.

M. – Guiam-nos, não é? E nós, às vezes, o que precisamos é de ter alguém que nos guie. Eu também, felizmente. Todos nós, acho que tivemos…quem nos guiasse. Isso é bom. É ótimo! Nunca o perdemos.

FC. – A questão é que…as pessoas às vezes pensam que o trabalho sai. Está tudo feito. Às vezes é uma inspiração divina, às vezes é o toque de Midas, mas às vezes é aquela fortuna de estarmos na sala e cruzarmo-nos com aquela pessoa boa que… Eu amanhã vou estar a operar com o meu pai e já sei que o meu pai sabe onde vai cair o bilhar. Já sabe onde é que vai acontecer alguma coisa, já sabe. E é isso que é como um anjo da guarda.

M. – Sim, sim.

FC. – E é bom a gente ter assim um anjo da guarda.

M. – É fundamental.

FC. – É. Na medicina e em tudo na vida.

M. – Em tudo mesmo. Estou a ficar comovida porque vejo que dá imenso valor à sua família como eu dou à minha… o meu pai faleceu há dois anos, quase três. Realmente isso mexe connosco. São perdas que apesar de o serem, continuam presenças, continuam no nosso coração, no nosso pensamento.

FC. – Exatamente.

M. – Isso é o que importa. Há um anjinho que está sempre connosco. Fale-me do facto de integrar o Top 40 de oftalmologia abaixo dos 40 anos.

FC. – Integro. A mim, o que mais me valoriza, é o próximo prémio que vou ganhar. A gente tende a pensar sempre no futuro.

M. – No que vem a seguir.

FC. – Nós temos de sair da zona de conforto. Foi bom o reconhecimento… é bom a gente ser reconhecida lá fora como cá dentro pelos nossos pares e isso significa que o caminho está a ser bem trilhado. O nosso foco tem de se manter nesse ponto. Foi bom. Foi muito bom, mas a gente quer sempre um bocadinho mais. É claro que, nesse aspeto… foi importante ser reconhecido abaixo dos 40 anos… acho que era o mais novo dessa lista.

M. – Foi em 2015…

FC. – Em 2015.

M. – Foi há seis anos.

FC. - Há seis anos ainda nem era doutorado, estava a começar a dar os primeiros passos, mas eu ainda me lembro de ter feito o meu exame final de especialidade e passados dois dias estava…fiz em Braga… e passados dois dias estava em S. Francisco a dar cursos de formação. E… fui substituir o meu professor brasileiro num desses cursos com professores, que inventaram as máquinas para fazer os exames de córnea e eu pensei “Mas eu estou aqui tão pequenino; sinto-me tão constrangido”. Mas pronto, é com esse tipo de experiências que a gente cresce, portanto, integrar é bom! É bom porque nos reconhecem. Não é uma questão de ego, é uma questão de humildade mantermo-nos sempre com os pés assentes no chão e termos também um pouco de gratitude [gralha do entrevistado - leia-se “gratidão”]. A gratidão é muito importante.

M. – E saber que nós fizemos por isso, porque se nos cair assim de mão beijada não tem valor…

FC. – Sabe que eu já mandei muita gente, muito médico interno para o Brasil para ao pé do meu professor e a admiração que o meu professor tem por mim por causa do trabalho que eu fiz com ele, que… ainda hoje se ele precisar de alguma coisa, meto-me no avião e vou de propósito ao Rio de Janeiro para o ajudar nalgum problema, seja ele qual for… Ele era uma pessoa que fazia o trabalho, mas era uma pessoa que pouco vivia a vida. Ou seja, estava 100% no trabalho, 100% na balada, na noite com os amigos e acho que é esse o segredo da vida dele: é estar 100% com a família, 100% com o trabalho e 100% com os amigos. E isso, para voltar à primeira questão, só aprendi aqui em Bragança.

M. – Eu sei… Posso chamar-lhe Fernando?

FC. – À vontade!

M. – Sei que o Fernando tem duas crianças pequeninas e muitas vezes… eu já tinha ouvido falar do Fernando. Quando ia a alguma consulta com o seu pai ele falava sempre “o meu filho, o meu filho” e então eu, sem o conhecer, já o conhecia um bocadinho e uma coisa que admiro imenso – como é que consegue conciliar a sua vida profissional, que é uma loucura, com criar os filhos? E a gente diz assim: caramba, será que o seu dia tem 48h? E o meu só tem 24h?

FC. – O que importa é que os filhos estejam sempre bem!

M. – Pois, é isso! Eu acho incrível!

FC. – Porque o meu pai também é uma pessoa que se esfarrapou muito… foi uma pessoa que trabalhou muito e ainda continua a trabalhar com a idade que tem.

M. – E muito.

FC. – E muito! E isso é que é preciso sublinhar porque eu, olhando para a minha infância, olhando para a minha adolescência, o meu pai estava ausente, porque estava no internato do S. António, porque ao fim de semana tinha de ir para Moncorvo. Os consultórios estavam abertos até às 10, 11 da noite e eu já estava na cama, mas havia problemas para resolver, havia…

Quando se abraça esta profissão, a gente não tem horários e é aquilo que eu muitas vezes digo… Ainda ontem operei um rapaz à miopia e a mãe, “como é que faz com a marcação?” – “Não se preocupe que eu vou-lhe ligar!”, -“A sério, vai-me ligar?”, -“Vou-lhe ligar.” Porque é a minha obrigação, é o meu dever saber como é que estão as coisas e se há problemas…

Lembro-me, no meu 2.º ano de especialidade. O meu pai liga-me. Eu estava no Porto. – “Estou, Fernando? Passa-se isto: um doente veio de Angola e está com um pedaço de aço metido no olho há duas semanas. Está com uma endoftalmite, está com um escoamento da retina e isto é para operar. Vais tu e o Dr. Eduardo Conde.”

M. – Foi quem operou o Marcolino.

FC. – O Eduardo Conde… Fomos lá… Entrámos no bloco da Ordem de S. Francisco às 11:30 da noite e saímos da Ordem às quatro da manhã e às seis da manhã fomos para os EUA os dois.

M. – Realmente! E ficou bem?

FC. – Ficou bem. Claro que o olho já estava totalmente destruído com a infecção, mas com silicone conseguimos manter o olho para que não entrasse em atrofia… É preciso fazer sacrifícios. É preciso ter uma mente aberta e eu, isso, bebo do meu pai.

M. - Sim. Sempre foi um lutador, pelo que eu conheço. Ora, a sua prática clínica é muito movimentada. Desenvolve-a em diversas instituições. Quais são as principais dificuldades com que lida no dia a dia, se é que elas existem?

FC. – Existem muitas. Por exemplo, eu estava a trabalhar no Hospital de Braga. Ainda fui para lá com a parceria público-privada e abandonei porque aquilo está muito burocrático e o SNS está a enfrentar problemas diferentes e eu, por exemplo, tive um curso nos EUA sobre gestão na saúde e também vejo que os privados estão com muitos problemas sérios e acho que o problema é não ouvir a comunidade médica, a comunidade de saúde, nomeadamente enfermeiros… As pessoas têm de saber como é que isto funciona, tem que se ouvir o doente porque isto tem de funcionar de uma forma fluída, não pode haver gargalos.

M. – Pois não, mas há muitos.

FC. – Há muitos gargalos… os americanos chamam-lhes os “bottlenecks” e isso contribui para que a experiência, tanto no público, como no privado, tanto para o doente, como para o profissional de saúde seja agradável. Eu quero trabalhar e não estou para me chatear com papelada… Eu quero trabalhar, quero que a pessoa venha, se sente… e aquela barulheira toda que vemos nos hospitais é transversal no nosso país. Isso é o que me perturba mais. Eu não sou político e nem tenho pretensões de ser… de enveredar por esse caminho, mas acho que a Ordem dos Médicos, e mesmo outras instituições ligadas à saúde, têm de se preocupar mais… se não isto nunca mais… a gente nunca mais vai conseguir tratar os doentes de uma forma adequada.

M. – É exatamente isso que eu penso. Eu vou ao meu médico e digo o que preciso e ele no computador. Nem sequer vê as tensões, nem sequer me ausculta o coração… Ele escreve o que eu peço, “Olhe, doutor, eu preciso disto” e ele passa. As minhas consultas são assim. Eu não sei como são as dos outros, mas que é muito…

FC. – Impessoal! A empatia é muito importante na profissão médica e acho que estamos a perder certos valores… mas isto não é só em Portugal, também acontece em qualquer lugar do mundo. Daqui a vinte dias tenho colegas peruanos cá. Trabalham em Cuscos e convidaram-me para ir lá fazer cirurgia para o ano que vem. Eles estão só no privado. O SNS em Portugal é uma das melhores riquezas que nós temos!

M. – Então não é? Sem dúvida!

FC. – E acho que as pessoas, os portugueses, os políticos… e a questão da comunidade médica, científica, da saúde em geral… as pessoas têm que perceber que têm um legado muito grande e tem de ser preservado. Eu vejo, por exemplo, na Dinamarca. A gente paga os impostos e tem um SNS impecável, um sistema educacional impecável. Nós aqui estamos com vários problemas…

M. – E não vemos a luz ao fundo do túnel…

FC. – Não, porque, por exemplo, há situações como são as questões das listas de espera, material, por exemplo, doentes chumbados por falta de material e depois quando estamos a falar de áreas oncológicas ou áreas de doenças metabólicas ou doenças raras, mas mais as doenças oncológicas em que há listas de espera de meses… não pode haver falhas no SNS.

M. - Pois não, mas, infelizmente, há.

FC. – Infelizmente há!

M. – Precisamos de muitos professores doutores “Fernando Faria Correia” para ver se isto melhora… mas é difícil encontrar muitos assim.

FC. – Obrigado!

M. – Tem mais de cem trabalhos científicos. Mais de cem, incluindo artigos, capítulos de livros e resumos em reuniões de sociedades científicas e, para além disso, ensina, porque é instrutor de vários cursos e é orador convidado em conferências pelo mundo inteiro. Eu pergunto: como é que consegue conciliar isso tudo, mais a clinica, mais a família, mais tudo o que faz?

FC. – Vou-lhe contar. Quando fui ao Egito em janeiro de 2016, acho eu, até fui com o Rafael Barraquer, eu e ele convidados.

M. – Barraquer? O Marcolino foi várias vezes visto por ele.

FC. – Em Barcelona?

M. – Em Barcelona.

FC. – Fui com ele. Eu ia no avião…fui no voo da Lufthansa, saí do Sá Carneiro e encontrei um ortopedista meu amigo, o Francisco Serdoura, “Para onde é que vais?” – “Vou para o Cairo.”, - “E eu para Atenas. Então ainda vamos tomar um cafezinho.” E ainda fomos ver umas maluqueiras de carros que ele… o táxi à nossa espera, depois comemos e bebemos e eu chego ao avião, abro e vejo que as cinco palestras que eu tinha estavam todas em ordem. Adormeço. No meio do avião sou acordado pelo vizinho do lado. Estava uma pessoa em paragem cardiorrespiratória. Só estou eu e um enfermeiro. A pessoa em causa era uma pessoa acidentada, tetraplégica, canadense, e foi a pior experiência de impotência na minha vida. Nessas viagens, vamos descansados para dar umas palestras e acontecem estes imprevistos. Tivemos de aterrar de emergência em Atenas. Chegar ao Cairo. Apresentações. Vir. Depois o Cairo (não sei se sabe como é: são cinco horas desde o aeroporto até ao hotel), fazer cinco apresentações em menos de 30h e depois vir outra vez. Cheguei ao aeroporto e fui para Santa Leocádia para uma festa de anos de um amigo meu, ali ao pé do Pinhão, portanto, a gente tem de estar presente em tudo. Está a entender?

M. – Tem uma grande capacidade de presença, sem dúvida!

FC. – Aquilo que dizia o meu professor brasileiro: dar 100% a tudo. A questão é que, às vezes, pode meter confusão a muita gente. Eu gosto muito de estar sozinho, gosto de… pensar na minha vida porque depois quando estou nestas alturas, sinto-me focado, mas se me perguntar, “100 trabalhos?” – se calhar já tenho mais. Já nem os conto.

M. – Pois!

FC. – Em alguns já estou em 4.º lugar… tudo porquê? Porque são internos. Depois a gente também tem que saber… Quando vêm atrás de nós, temos que ajudar.

M. – Claro.

FC. – Já tenho amigos que estão a começar a fazer o doutoramento que vão ajudar… mas o que importa é que a gente esteja sempre ligado a alguém.

M. – Sim, sim.

FC. – E dá tempo para tudo. A gente tem é que ter uma grande capacidade organizativa. Aí quem tem culpa é a minha mãe. A minha mãe, que é economista… ela…

M – Ela organiza.

FC. – Não. A minha mãe tem uma capacidade de organização brutal e isso herdei dela. E acho que isso também é da vertente do meu avô Tozé que era uma pessoa muito organizada nas coisas e acho que eu sou assim… quer dizer, quando era pequeno, adolescente, saía à noite, havia testes, estudava, mas depois também ia para a boa vida, mas havia uma coisa que era disciplina… e havia uma coisa que era organização.

M. – Disciplina e responsabilidade.

FC. – Responsabilização nas coisas.

M. – Claro, sem dúvida nenhuma. Isso também tive a minha dose de responsabilização e acho que os pais que são pais responsabilizam.

FC. – Pois.

M. – A evolução científico-tecnológica na oftalmologia tem sido muitíssimo significativa. Até onde poderá chegar essa evolução? Podemos falar, e aqui peço desculpa pela minha ignorância, podemos falar em transplantes de olhos? Será o fim da cegueira?

FC. – É uma pergunta ratoeira porque nós por causa da cegueira temos várias doenças. Nós temos doenças nas diferentes lentes do olho, o nosso olho tem duas lentes: uma que é a córnea, que é esta lente à frente da menina da vista, temos uma atrás da menina da vista que é o cristalino, que é onde vamos ter a catarata e temos depois a retina e na retina, escoamentos de retina… a retina é o rolo da câmara, é a parte mais sensível. E a retina é a parte em que talvez as células estaminais poderão funcionar melhor… a terapia génica. Nós até agora na revista de Oftalmologia, o João Pedro Marques, de Coimbra, fez lá um editorial só a terapia génica para um doente… que é uma doença hereditária. E agora falo de outra coisa: e a impressão 3D? Por exemplo a estrutura, que nós temos à frente do olho, a córnea, é uma estrutura transparente, avascular como uma lente e… pode ser transplantada, portanto, já há estudos que estão a avançar nesse aspeto. É uma causa de cegueira. Portanto, acho que temos a questão da cegueira na córnea que pode ser tratada mais facilmente por causa da impressão 3D. A parte da retina depende muito da patologia – se é genética temos terapias genéticas. No futuro há que descobrir qual é que é o gene que está em causa e fazer o… silenciamento ou ativar esse gene através das terapias genéticas. Se são células que estão em falta, por exemplo, as que morreram por causa de uma trombose, por causa de um escoamento de retina, podemos usar talvez um tratamento diferencial, instalar o tronco… Podemos estar aí nessa fase em que a gente…

M. – Tenho em casa quem já sofreu muito com isso e neste momento não vê nada. E sempre à espera de que alguma coisa possa acontecer. Sei que no caso do Marcolino, muito provavelmente, já não vem a tempo, mas o futuro a Deus pertence e a nós resta-nos esperar…

FC. – Veja a questão do olho biónico… ainda agora é retratado no último filme do 007. O olho biónico é uma tecnologia que assusta. O último filme do 007, mesmo em termos de armamento químico direcionado para os genes que cada um manifesta, que cada um tem no sangue, e mesmo a questão do olho biónico, isso assusta porque, por exemplo, quando fui a Charleston, na Carolina do Sul, essa universidade tinha feito o 1.º transplante do olho biónico.

M. – Ah, é? E correu bem? Funcionou?

FC. – É o seguinte … é a perspetiva de cada um de nós.

M. – Claro. Bem, o futuro…

FC. – A Deus pertence!

M. – Ora, e para além disto tudo de que já falámos e que foi uma ínfima parte do que faz,  ainda tem tempo para ser editor chefe da revista Oftalmologia da sociedade Portuguesa de Oftalmologia…

FC. – Isso foi o convite endereçado pelo presidente da SPO, o Professor Rufino Silva de Coimbra, que abracei com muito gosto, e ainda esta semana tive reunião com ele que me disse, “Tu ainda não te mandaste de uma ponte abaixo?” Porque aquilo é um trabalho muito ingrato. É um trabalho muito ingrato porque apanhámos a revista num estado comatoso, praticamente, e era aquilo que eu lhe dizia – hoje os médicos internos do serviço de oftalmologia estão apinhados, estão cheios de trabalho e é preciso ter uma capacidade organizativa… para tratar bases de dados, ficheiros Excel… chegar a casa, analisar os ficheiros Excel e escrever e isso os internos, são gente nova que querem ir jantar fora, querem ter vida social, como toda a gente, como eu também tive e é preciso ter espírito de sacrifício. E as pessoas não têm hoje. Hoje o paradigma do SNS, relativamente aos médicos internos, que não têm uma vaga onde vão ficar a trabalhar no futuro, já não estão tão preocupados com a produção científica e de indexação…estamos a trabalhar nisso, mas dá muito trabalho. Dá muito trabalho. Temos de cativar as pessoas certas para escrever. Eu também escrevo. Mas podia escrever para uma revista indexada.

M. – Eu li um editorial seu.

FC. – Sim, mas podia estar a escrever… mas também escrevo para lá. Basicamente é isso.

M. – Pois. Continuo a achar que o seu dia tem 48h! Como médico, quais foram as maiores dificuldades que teve de enfrentar com a pandemia?

FC. – Tenho uma cicatriz aqui na face…

M. – E como é que a fez?

FC. – A ver doentes COVID com aquelas máscaras horríveis no Hospital de Braga. É uma…

M. – Sim, já vi! E ficou mesmo.

FC. – Essa é uma cicatriz que eu guardo da pandemia.

M. – Realmente, vocês passaram por muito, muitíssimo, mesmo. Nós, os leigos nem sequer desconfiamos. Mas valeu a pena ao menos?

FC. – Valeu a pena.

M. – Já é alguma coisa, não é? Ora, enquanto transmontano, o que, em sua opinião deveria ser feito para impedir a desertificação do interior?

FC. – Já devia ter sido feito há muito mais tempo, se calhar. Isto é o seguinte: Portugal tem um problema enorme e agora com o preço dos combustíveis a subir… Onde estão as ferrovias? Onde estão os caminhos de ferro? Não temos! Nós temos aqui o melhor instituto politécnico do país e temos que dar graças às pessoas que se envolveram sempre neste projeto porque dinamizaram a região e a cidade. Temos também de dar os parabéns aos presidentes da câmara que tivemos porque desde o programa Polis até hoje ao presidente eleito, o Dr. Hernâni, isto…a cidade está muito agradável; é uma cidade muito agradável de se viver, tomara eu ter esta qualidade de vida no Porto. O que é que é preciso? É arranjar forma de cativar as pessoas cá. Pessoas jovens. O que é que querem as pessoas jovens? Querem é ter formas de lazer… produtos, dar a conhecer e acho que há aqui…

M. – E um salário condizente com as necessidades.

FC. – Isso… se for falar com as pessoas, hoje os salários são o grande problema do nosso país, o salário e não só – é o poder de compra. E o poder de compra já. Isto, com a pandemia fez reacender aqui algumas coisas por causa do teletrabalho e o teletrabalho até poderá ser uma questão importante agora para o futuro. Porquê? Porque uma pessoa que ganhe 800/900 euros no Porto, que é que faz da vida? Nada!

M. – Não vive.

FC. – Aqui ainda consegue viver. Está a compreender? É aquilo que eu digo muitas vezes: é certamente da maneira como isto está hoje, os produtos, as matérias-primas estão a subir de preço. É desde o bacalhau até o leite, a carne, os ovos…

M. – Pão.

FC. – Tudo. A comida vai subir. Os combustíveis estão a subir… As pessoas começam a pensar… se calhar, famílias jovens começam a pensar, “Eu tenho trabalho em Bragança”… Eu tenho uma amiga, que é minha doente, que é de Santa Marta de Penaguião, que veio cá à clinica de Bragança com uma úlcera da córnea. É advogada. Trabalhou em Lisboa. Foi para Santa Marta de Penaguião, Lamego trabalhar e tem muito trabalho! “Agora, vou, não gasto praticamente dinheiro em combustível”…

M. – Justamente.

FC. – “Tenho hipermercado, tenho tudo. Estou a 1h do Porto”… e a gente, aqui em Portugal, aqui no interior, não é só em Bragança. Acho que há cidades no interior que se estão a desenvolver graças muito à questão das CM, institutos politécnicos. Então, aqui no de Bragança há que sublinhar que fizeram um trabalho excelente. Devemos dar os parabéns e acho que é isso que vai permitir que muita gente se fixe aqui no interior. Agora, temos questões políticas também para analisar, desde a ferrovia. Por exemplo, uma pessoa… Vou-lhe dar o exemplo do túnel do Marão. Quantas pessoas eu conheço da minha classe médica que vivem no Porto e que vão trabalhar a Vila Real? Muitas!

M. – Muitas?

FC. – Muitas!

M. – Agora se nós tivermos… Temos aqui uma estão de TGV.

FC. – Eu sei, na Ponferrada.

M. – Se nós tivéssemos um comboio, em quanto tempo nos púnhamos daqui ao Porto?

FC. – Em 75 minutos se tivéssemos um comboio desses.

M. – E realmente também não consigo, não consigo entender por mais esforços que faça, portanto, este desapego… Bragança é tão longe… deixá-los lá, os pobrezinhos, não é? O Marcolino diz que faltam eleitores. Como há poucos eleitores, então, não vale a pena. É a cruzinha! Vamos lá ver se nós, eu já não, mas os jovens, se conseguem mudar alguma coisa.

FC. – Não me vou candidatar à câmara, deixe estar!

M. – Não, não está muito bem!

FC. – Nunca se sabe.

M. – Sim, o futuro…

FC. – Só a Deus pertence!

M. – Só já tenho mais uma pergunta! Gostava de saber se quer dizer mais alguma coisa sobre a sua profissão ou sobre o que entende da vida.

FC. – O que entendo da vida é muito complicado. Eu já lhe disse que eu há… poucos aspetos que a gente tem para se reger na vida. Para já, temos de ter objetivos, temos de ter um foco, temos de ter concentração e é assim que a gente consegue atingir as metas. Se nós, depois atingirmos as metas, quisermos mais, é bom porque somos ambiciosos. É claro que essa ambição tem de ter sempre algum limite, mas é bom que seja sempre apimentada de vez em quando. Eu, por exemplo, poderei estar um bocadinho parado agora por causa de ser editor chefe da revista da SPO, mas as pessoas sabem quem é que eu sou lá fora, está a entender?

M. – Sim, sim.

FC. – Como lhe disse, para a semana, vou, vamos, eu e o meu pai vamos a Nova Orleães receber esse reconhecimento da Academia Americana de Oftalmologia que é a comunidade científica mais prestigiada do mundo da oftalmologia.

M. – Que maravilha!

FC. – E depois vou ao Dubai dar mais uma formaçãozinha de córnea, de lentes fáquicas para correção de miopia. Isto só para lhe dizer que a ambição não tem limites, mas tem que ser apimentada de vez em quando para não ficarmos também obsessivos e às vezes é preciso refugiar na solidão para meditar e perceber aquilo que foi mau.

M. – Só assim é que nos reencontramos.

FC. – Só assim é que nos encontramos. Eu, como transmontano, sabe onde é que eu consigo meditar bem? Aqui em Trás-os-Montes, no “Reino Maravilhoso”!

M. – Sim, do Miguel Torga! Agora, a última pergunta. Que personalidade ou personalidades mais o marcaram na sua ainda jovem vida?

FC. – Aqui na minha vida?

M. – Sim, de uma forma geral.

FC. – O meu avô, Tozé… os meus avós. Eu chamo-me Fernando António por causa de… claro que tive uma ligação maior ao meu avô Tozé… ao meu pai e depois havia sempre aqui uma ou outra personalidade que de pequeno sempre me ligou bastante. Uma delas foi a minha mãe. A minha mãe sempre esteve disponível e… foi uma pessoa que, já lhe disse, deu-me aquele espírito metódico e de organização que acho que hoje só consigo ter esses valores, porque leu, de artigos científicos a tudo, graças à forma como ela me treinou a minha cabeça para ser organizado. Relativamente a professores… eu devo muito aos meus professores porque eu também não era pera fácil e a minha turma… Éramos sempre uns traquinas. Havia sempre gente muito interessante e eu tenho ainda contacto com os meus amigos da adolescência. Ainda na semana passada fui jantar fora com um colega do secundário, aqui do ciclo e do secundário que é médico dentista. Portanto, fomos à casa Guedes, no Porto, comer umas sandes de pernil. Portanto, os nossos professores aqui tiveram muita paciência para nos formar e acho que também lhes devemos agradecer os ensinamentos, a paciência e o caminho que nos orientaram. Portanto, como pode ver, é a família, a escola, as Freirinhas (que eu também andei nas Freirinhas)…

M. - Ai, sim?

FC. – Sim. Eu tinha a Irmã Balsemão, a Irmã Estela, a Irmã Elisabete que… mas os professores que nos ensinam, são muito importantes, e a sociedade…

M. – Muito bem! Muito obrigado! Eu acho…

FC. – Muito obrigado, eu!

M. – Foi mais do que eu estava à espera. Não na sua competência, porque isso não está em causa, nunca, e na sua sabedoria também não e no seu saber fazer… e na sua grandeza que tem, mas por esse aspeto mais familiar, mais íntimo… do seu íntimo. E, por acaso, fiquei muito agradada…

FC. – Obrigado!

M. – Nós é que temos de agradecer e dizer – vá em frente, continue assim e dê o Fernando ao mundo sem descurar Portugal!

FC. – Ah, não! Isto calma! Vou ficar sempre por aqui.

M. – Obrigado!


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