No
dia 4 de Março, às 9 da manhã (hora do Vaticano), recebia o Papa Francisco
delegação portuguesa que lhe ofertava os 30 volumes da Obra Completa de
outro ilustre Jesuíta, o Padre António Vieira. Às 18 horas romanas, na igreja
de Santo António dos Portugueses, onde Vieira pregara, o bispo Carlos de
Azevedo apresentava essa colecção de sermões, cartas, profética, vária.
Organizei o nono volume dos Sermões, segunda parte de Maria Rosa
Mística; e anotei o volume XV, com o grande especialista em parenética João
Francisco Marques (1929), cuja morte no dia 6, sexta, turvou iniciativa que
congrega 52 investigadores nacionais e brasileiros, coordenada por dois centros
de investigação da Faculdade de Letras de Lisboa, em especial, pelo Centro de
Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias, que dirijo, substituindo José
Eduardo Franco, alma do projecto vieirino. A Academia de Letras de
Trás-os-Montes patrocinou tal aventura.
Como
não pude ir a Roma, veio o Papa até mim, na capa e matéria de O Futuro
da Igreja (Lisboa, Clube do Autor), estreia de Fernando Calado
Rodrigues, a cujo lançamento assisti, em Novembro passado. Curtas prosas
no Correio da Manhã, de que sou leitor bissexto (onde, todavia,
estagiei em Setembro de 1979), ninguém notará essa fragmentação própria da
crónica, a tal ponto, em refundição bem cerzida, vêm concatenadas sob quatro
lemas: Francisco enquanto «lufada de ar fresco na Igreja»; «O papel da Igreja
na sociedade»; seu futuro (donde sai título); e «questões em aberto». A
brevidade toca o essencial; e a coragem de abordar assuntos tabu perfila o
autor como um agente da renovação eclesial em curso.
Se
a admiração pelo Sumo Pontífice vai de si, inscrita em gestos logo mediatizados
‒ e só um exorcismo público «não me pareceu crível» (p. 191), considera o autor
num dos mais belos textos, “O Diabo não existe” ‒, percebe-se que o
caminho se faz conjugando a «revolução da ternura» e uma «gramática da
simplicidade», de que saia clero mais «acolhedor», até ao «diálogo
inter-religioso». Sem isso, hão-de persistir os problemas da Igreja, chagada em
escândalos, «carreirismo» e pecados não exclusivamente «clericais», quais sejam
a vaidade, sede de dinheiro, desvios sexuais.
Vieira
(1608-1697) fez-se jesuíta professo em 1644 ou 1645, após os votos de
castidade, pobreza e, dentro da obediência, obediência também ao Papa.
Reconduzindo-se à ortodoxia, não era um seguidista e imitador de superfícies.
Os temas, sob forma de conceitos predicáveis, raiam, por vezes, a
heresia, obrigando-o a declarar: «Até não me ouvirdes, não me condeneis.» ‒ diz
noSermão da Glória de Maria, Mãe de Deus (1644), em que compara a
glória de Maria com a do Criador, «a quem Maria criou», sendo que a melhor
dessas duas partes é a de Maria. Em Janeiro de 1646, um lente jesuíta de
Santo Antão denunciou-o à Inquisição como possuindo dois livros de profecias, a
par de acusações como a de, na presença de D. João IV, filho D. Teodósio e
fidalgos, sustentar Vieira contra o capelão régio «que o Pontífice podia errar
na canonização dos santos, e não era obrigatório crer o contrário» (J. Lúcio de
Azevedo, História de António Vieira, I, 3.ª ed., 1992, p. 137). Uma
coisa é dogma, verdade da Fé; outra é liberdade de pensamento, capaz de tudo
argumentar ou questionar. Emerge esta capacidade de Vieira, de Francisco e de
Fernando Calado Rodrigues.
Entre
as partes que mais me tocaram está o entretítulo “O governo desconhece o valor
das freguesias” (p. 102-104), a merecer atenção dos poderes civil e religioso.
A primeira visita pastoral de D. José Cordeiro foi a Vinhais: «Vivem naquele
concelho menos de dez mil pessoas, dispersas por uma centena de comunidades.
Muitas das aldeias deixaram, há muito, de ser visitadas pelo médico. Só em
quatro a escola continua a funcionar. Os únicos que as visitam regularmente
ainda são o pároco e o presidente da junta.» Esta «situação inquietante» pede
um viático político imediato. Na falta deste (que não virá), e no quadro de
além-Marão, urge o empenho que Vieira dedicou ao além-mar de iniquidades, ao
seu Maranhão. Aqui, os jesuítas ensaiaram um império teocrático, de Deus na
Terra; hoje, filhos da sonhada tolerância e do ecumenismo, já bastaria que os
nossos conterrâneos se não sentissem abandonados…
Escrito por Ernesto Rodrigues
Publicado
em www.mdb.pt
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