quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

Continuação da entrevista realizada ao Dr. Fernando Calado



Recordo-me, na minha juventude, quando o Carlos Pires, no Cantinho dos mais Jovens, publicava uma poesia minha, para mim tinha um valor, um património, um reconhecimento para além do que seria normal. Eu escrevia imenso no Mensageiro, mas era mais uma peça que não valorizava. Não valorizava tanto.

Quando a poesiazinha saía pela mão do Carlos Pires, para mim tinha um valor enorme. Porquê, efetivamente, já tinha letra redonda no jornal. E o jornal valia.

Conto, a propósito do jornal, o caso do tio José Maria, da minha aldeia que comprava o jornal todos os meses, e num desses jornais vinha o rapto do navio Santa Maria pelo Henrique Galvão. Leu-se na aldeia a notícia no jornal, mas o tio José Maria não voltou à cidade tão depressa. Portanto, para a comunidade de Milhão, o barco nunca mais apareceu. Porque nunca leram o jornal que dizia que o barco tinha sido resgatado. Naquele tempo o valor que tinha a imprensa era incrível. Na altura dizia-se: "Veio no jornal!" E ninguém duvidava que tinha vindo no jornal e que era verdade.

Mas, se calhar, isso fez uma diferença muito grande para muita gente. O jornal “Mensageiro de Bragança” foi, de facto, uma escola importantíssima na construção, na visualização e na divulgação de muita gente que hoje está no mundo das letras. Foi aí, que fez a sua aprendizagem. 

(M.C.): Sim. Eu não sabia, não conhecia o jornal “Mensageiro de Bragança”. Aprendi com o Marcolino que me falou do “Mensageiro” e de toda a juventude ligada a ele. Tudo o que vocês fizeram, do que escreviam e daquilo que se publicava. Numa determinada altura, por indicação do Padre Sampaio, foi obrigado a escrever com pseudónimo, porque tinha publicado qualquer coisa no jornal que o Senhor Ministro do Interior, Dr. Rapazote, entendeu que não era adequado.

(F.C.): No meu caso, ainda era mais difícil publicar no jornal porque era seminarista. Significa que era preciso ter, por um lado, cuidado com questões políticas, por outro lado, com questões da sexualidade, nomeadamente do amor.

O que quer dizer que publicar um poema amoroso podia ser motivo de expulsão. Portanto, era, de facto, um seminário conservador onde eu vivi alguns anos. Fiz uma grande aprendizagem. Na minha idade, por várias razões. Na literatura, onde se lia muito, porque não havia televisão, nem havia entretenimento. Ao nível da filosofia, e, na minha idade, a camaradagem. É que nós éramos os primeiros a enunciar coisas que eram próprias da época e que, mais tarde, teve efeito. 

(M.C.): Sim. Foi uma escola, sem dúvida. O meu marido, Marcolino Cepeda, recorda-se de uma peça de teatro de que gostou muito, levada a cabo em milhão, a que assistiu com o Padre Sampaio, em que todas as personagens eram representadas por homens, a exemplo do teatro grego, e que ele, com o pseudónimo de José Valverde, escreveu um artigo no jornal Mensageiro de Bragança. Lembra-se? 

(F.C.): Sim. Milhão foi uma das poucas aldeias que nessa altura, teve um grupo de teatro, que foi dirigido por mim, como estudante, como seminarista, e como pessoa que gostava de teatro. Portanto, durante meia dúzia de anos ou mais, tivemos um grupo de teatro ativo, que só funcionava no verão. Mas, no verão, corríamos várias localidades a apresentarmos esse teatro, chegando a vir à Torralta. No início, Marcolino tem razão, é só um grupo de teatro de homens. Porque não era muito saudável, muito reconhecido, que as mulheres tivessem uma exposição pública dentro deste machismo bem transmontano.

Finalmente, conseguimos abrir esse preconceito e chegamos a representar peças que entravam nas cenas de filmes, nomeadamente a “Casa de Pais”, grandes dramalhões, com a plateia toda a debulhar-se em lágrimas. E o teatro chegou a ter tanta importância que, quando foi, no 25 de Abril, nas célebres campanhas de dinamização cultural do MFA (Movimento das Forças Armadas), foram um tenente  e umas praças a Milhão a saber do grupo de teatro, porque lhe tinham dito que era um grupo de teatro revolucionário e eles precisavam de um grupo de teatro para as campanhas de dinamização cultural.

O tenente perguntou: “Quem é o responsável pelo teatro? Respondi: “Sou eu.” “Quanto é que o camarada precisa para manter este teatro?” Respondi: “Precisamos de dois ou três contos.” Disse o tenente a um dos praças: “Passa aí um cheque de 20 contos ao camarada.”  

CONTINUA

Maria e Marcolino Cepeda

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