sábado, 3 de agosto de 2024

Jorge Morais: PERSONAGENS (5)

SUBTÍTULO: CEGUINHOS AMBULANTES - Novembro de 1972

Quem passando os 60 não se lembra da Ana Magnani, do Zorba o Grego e outras fitas, personificadas na pessoa de uma ilusionista seráfica, toda de preto e esguia como ela e que subida a um pequeno estrado mais ou menos aonde é agora a Tasquinha da Nair, imediações da atual praceta Camões, metia um ovo num saco preto e o fazia desaparecer num lustro ao revirar o dito cujo sem que se visse nada mais do ovo. Passada a estupefação apresentava os elixires que serviam para quase tudo especialmente azia e má digestão. Notável era o rosto comprido, sombrio, vestimenta escura e gestos tão já quase automáticos que talvez nem ela própria acreditasse no seu truque. Que pena tenho não a ter fotografado. 

Pois bem, fotografei este par que deambulava em dias de feira pela cidade vendendo pequenas coisas, heranças do tempo das pagelas com tragédias escritas e histórias dramáticas, ou o Seringador, e ainda pentes ou navalhas enfiadas displicentemente num saco plástico. Um era cego, apoiava-se no outro que lhe servia de guia e potencial guarda-costas. O cego, baixinho, olhos vazados quando mais abertos assemelhando-se a quase circulares pequenas ostras avermelhadas com os lábios e comissuras de boca esboçando porém um sorriso simpático e sereno. 

O outro, era carrancudo, e muito perscrutador do espaço em frente parecendo que irrompia pela rua com olhar desconfiado mas rebocando muito segura e chegadamente o seu parceiro, como que protegendo-o de algo. A sua vestimenta, sempre me lembra de ser esta: gabardines impermeáveis e algo decrépitas, tipo inspetor Colombo de uma famosa série televisiva. Às costas, como mochileiros de tempos passados, traziam umas sacolas de pano para meter os vários pertences e artigos vendáveis. Suponho que circulavam na automotora, possivelmente com bilhete desconto. 

Lembro-me quase sempre de os ver na rua aonde os captei por voltas de 1972 - esquina do átrio coberto da Sé e princípios da rua Direita em direção à agitada vida da antiga Praça do Mercado; elemento vidente guiando o cego com determinação e, a priori, não demasiado amigável para a foto. Esconderia ou esconderiam algum segredo? - Aquela boina espanhola e o jeito da sacola a tiracolo... Lembranças da guerra civil aqui ao lado? Tantas histórias por detrás das aparências. Tantas histórias para contar. A foto só conta algumas.

Texto e fotografia de Jorge Morais


quinta-feira, 1 de agosto de 2024

Entrevista António Francisco Pires - Alfaiate

O meu nome é António Francisco Pires, nasci a 11 de Setembro de 1953, na aldeia de Samil, onde sempre residi.

Nasci de uma família pobre, mas nobre. Éramos sete irmãos, seis rapazes e uma rapariga.

A minha infância foi normal para a época. As minhas primeiras brincadeiras foram pelas ruas da aldeia com outros miúdos da mesma idade, e outros mais “velhos”. Jogávamos vários jogos, fazíamos várias traquinices. Jogava-se ao esconde-esconde a que nós chamávamos “rouque”, à palma, ao pião, ao prego, à bola, à bilharda, etc. Foi aí que comecei a relacionar-me com os amigos.

Aos 7 anos entrei para a escola, e fiz novas amizades. Entrei para a Escola Primária em Outubro de 1960.

Quando entrei, já sabia ler e escrever. Sabia, também, toda a tabuada de cabeça e contar e escrever os números até vários milhares. Nos primeiros dias, lembro-me de a senhora Professora D. Preciosa, dizer a uma aluna das mais velhas, já repetente da 4ª classe, para ir pelas carteiras dos que tinham acabado de entrar para ver o que sabiam fazer. Na minha vez perguntou-me o que sabia, e eu disse-lhe que sabia ler, escrever e contar.

“Até quanto?” “Até mil. Se esperares aí um pouco, já te conto. E aceitou o desafio, e contei-lhe até mil “quase” num instante.

Findo o serviço que lhe foi proposto, foi entregar à senhora Professora as nossas façanhas. Ficou algo admirada pelo meu feito. Daí para a frente, não tive dificuldades no meu percurso escolar.

Uma das coisas que gostava mais de fazer, logo que saía da escola, era os deveres. Às vezes, e quando o tempo o permitia, quando chegava a casa já levava os deveres feitos.

Passei todos os anos de classe, e quando andava na 4ª Classe, as senhoras professoras, D. Preciosa e D. Julieta, diziam-me que era um bom aluno e que deveria continuar os estudos. Eu não queria porque sabia das dificuldades dos meus pais, eram pobres e nós éramos 7 irmãos. Elas iam-me convencendo para que fosse fazer o exame de admissão que, na altura, era preciso para entrar para uma outra escola.

Em Junho de 1964, na Escola da Estação em Bragança fiz o exame da 4ª classe, escrita e oral. Fiquei bem, como se esperava, e então dei o sim para o exame de admissão, que era feito na Escola Industrial e Comercial de Bragança. Fiz a prova escrita, muito bem, e tinha de ir à prova oral. Então aí, aparece um senhor Professor, com uma “arrogância” a que eu não estava habituado, a perguntar-me pelas estações das linhas dos caminhos-de-ferro das Províncias Ultramarinas. Com a minha inocência e humildade, começo a chorar e não lhe disse uma palavra. Fui chumbado. (Mas eu até sabia aquilo, de cor e salteado).

As minhas Professoras ficaram indignadas e confortaram-me dizendo que para o ano eu voltava e seria diferente. Entretanto, fui-lhes dizendo que não voltaria a fazer esse exame, terminando aí o meu percurso escolar dessa altura.

Tudo o que aprendi na escola foi, e tem sido útil, ao longo da vida.

Das brincadeiras de escola, lembro-me de jogar à bola, ao pião, à bilharda, ao prego, ao eixo corrido, à malha e outros.

O relacionamento com os amigos era muito puro, mas havia alguns que não eram amigos, eram “malandros”. Fazia amigos com facilidade e ainda hoje conservo muitos desse tempo.

Aos 10 anos saí da escola, mas ainda durante o período escolar, já fazia alguns trabalhos agrícolas para ajudar os meus pais naquilo que podia. Também era guardador de vacas de alguns vizinhos e amigos dos meus pais, porque em minha casa não havia crias.

 

PERCURSO PROFISSIONAL