quinta-feira, 27 de março de 2014

POR AMOR TAMBÉM SE MORRE,por Carlos Carvalheira


Vale da Vilariça.Foto: Leonel Brito
No Estio, o vale é um braseiro.
Encurralado entre Bornes e o Reboredo, a saber a frio e a ferro, e limitado pelas alturas escorregadias e quase abruptas da Lousa até para lá de Vila Flor, o vale é um dinossauro violento, recostado em leito húmido. Vê-se-lhe a cauda lá acima, a norte, a estancar as iras da serra. E, cá em baixo, na Foz, as fauces escancaradas, muito irregulares, a vomitar escorrências e imundícies na curva do Douro. E, por toda a amplidão do vale, o dorso calmo, tranquilo, estranhamente sossegado.
Mas é uma fera, o vale. É o Éden e a Geena.
Para experimentar Abraão, criou Deus o cume da montanha; para sacrificar os homens, concedeu-lhes toda a largura do vale.
No Inverno é ameno, suave. Mas, apertado nos estreitos braços da natureza e alagado pelos ribeiros e riachos que o alimentam, rapidamente muda de aspecto. As águas, repelidas pelos contrafortes pedregosos do Monte Meão, refluem e tornam a paisagem lisa, uniforme e magestática. É a rebofa, que atormenta os homens, alaga os campos e cobre casas e plantas. Como o Nilo, no Egipto, em tempos de judeus e de faraós.
Mas, no Verão...  O vale, no Estio, é um braseiro de assar pessoas e animais. A terra úbere, estrumada com os sedimentos carreados pelas águas inverniças, gera trigos e joios em abundância. Porque, na terra que dá o pão, germina, indistintamente, a cizânia. E é preciso cuidar de um e estiolar o outro. Por isso, no Verão, o vale é um formigueiro.
Na aragem do vale tudo é temporão. O dia, as primícias, os calores. Tudo vem cedo. Até a vida... Até a morte.
 Os sem-terra, os desprivilegiados da era agrária, vêm de todas as geografias. Do Castedo e do Vilarinho, da Cabeça de Mouro, da Vide, dos Estevais, do Felgar... E da Cabeça Boa... E da Vila... E até de mais longe... Vêm homens, vêm mulheres... Vêm jovens e de meia idade... Até os velhos... Até as crianças, que trocam a escola e a vida por ajudas de miséria que os braços todos são poucos e débeis para os trabalhos de Hércules que é preciso levar ao fim.
A jorna é longa. Longa e dura. Ainda os mochos piam, suspensos da ramagem do arvoredo que enxameia as encostas circundantes...  ainda os melros não acordaram o arrebol com as suas gargalhadas brancas, fugidias... Ainda as rolas não embalam a manhã com os seus gemidos suaves, inocentes e já os capatazes gritam que vem o dia chegando, que a noite foi demorada para o descanso, que a jeira é cara e a jorna curta para tanto trabalho.
 E, à noite, já os corvos abalam para ocidente a perseguir o sol...  Já o noitibó percorre os caminhos denunciando os rebanhos a recolher ao bardo... Já as rãs coaxam nas margens do Sabor e nos limos dos riachos e dos ribeiros... E ainda os capatazes de vozes duras e roucas e cenhos avinagrados mandam recolher alfaias e cuidar animais.
Mas é noite. E os homens ressequidos e exaustos precisam de um leito em que se abandonem para acalmar os ardores que as chagas despertam nos corpos e nas almas dos jornaleiros. Porque amanhã... E depois... E depois ainda... É preciso viver. Troca-se a vida por canseiras.
Olhai as aves do campo que não semeiam nem criam...
Mas essas, as aves, comem trigo, comem joios, comem pão, comem cizânias. O homem, esse, faz escolhas. E dessa consciência lhe advêm medos e insatisfações, dúvidas e angústias. Por isso, todo o dia, todos os dias, homens e mulheres descem à Ribeira, trazendo a vida para levar canseiras. O ar é quente, abafado. A água dos pequenos charcos e poços queima os pés e tortura as mentes. E, nesse ambiente, não raro sucumbem os corpos, tiritando de frio ao peso das maleitas, das febres, das sezões. 

Exorciza-se o trabalho e afugenta-se a doença praguejando e semeando preces. Previne-se a peste e expulsa-se a morte queimando aromas e emborcando chás e mezinhas. E morre-se com frequência. Num palheiro... À sombra escassa e quente de uma árvore... Em plena torreira do sol... Ou, para o mais afortunado, numa casa, em cama de palha ou de giesta miúda.
Do Castedo às Cabanas vai um calvário. E são tempos sem estradas, sem caminhos, sem meios mecanizados. Por isso, as deslocações fazem-se demoradamente a pé, em mulas estéreis e duras, em asnos dóceis e dengosos. O terreno é irregular e muito íngreme. E os carreiros de passagem, muito estreitos, lá vão descendo. Contornam zimbros, rodeiam fragas e vão descendo, coleantes, numa pacatez de serpente adormecida. Mas, santo Deus, caminhar ali é sacrifício de peregrino. Que o digam o Ti Angelco e o Roberto, donos de muitos anos, já nem sabem quantos... Eles que, no Inverno,  palmilham todo o horizonte na peugada do láparo desprevenido e do porco montês sonso e arrojado e, na Primavera, enxada em punho, cavando aqui, desbravando ali, das pedras fazendo vida... Que o digam o Sousa d’além Doiro e o Altino, jovens da cidade, muito aperaltados, bota polida e carabina luzidia... Eles que, habituados aos vícios da urbe civilizada, mal põem pé na fragada à cata da perdiz esquiva e ligeira, se desfazem em imprecações e súplicas.
Da Quinta do Peso para baixo é já o céu. E as Cabanas são mesmo ali.
O Abílio era um homem de sorte. O pai, João da Conceição Carvalho, possui meio vale. E é, como diz o povo, importante aos olhos da vila.
– Estou vereador – repetia, despretensioso, aos interlocutores. – Tenho vara, mas isso não enche barriga. Dá trabalhos, dá canseiras... Rouba-nos o tempo... Mas a causa pública é um dever, e uma honra!
O Abílio era um homem de sorte.
Habitava no vale, um calvário de labor, mas era um homem de sorte. Musculoso e trabalhador, loquaz e afável, cedo se fez homem. Eram épocas em que as crianças mal tinham tempo para serem meninos. Por isso,  o Abílio cedo se fez homem. Era um mouro de trabalho. De manhã e de tarde, ao sol e à chuva, na Primavera e no Verão...  Até nas madrugadas daqueles Estios que assam os corpos e as almas das gentes... Até nos longos serões de Inverno alumiados pelo petróleo consumido em candeeiros de chaminés enegrecidas pelo fumo e pelo uso... Mas, nos dias do Senhor, era um janota. Fato domingueiro, missa, jantar e... Ala, que se faz tarde. Romaria aqui, bailarico ali, taberna e copo de três mais além... E namoricos. Oh, quantos!
A meninice, se a teve, fugiu-lhe como um bocejo. Ele bem via os outros garotos, à sombra dos freixos e dos amieiros do vale, a armar ratoeiras à passarada. E invejava-lhes o jogo do pião e do eixo ribaldeixo no largo térreo da aldeia. E invejava-lhes a liberdade de saltar os muros das hortas e dos eidos pilhando o melão casca de carvalho, o figo bacorinho ou pingo de mel, as cenouras, as alfaces, as cebolas, os frutos com que mitigavam a fome que os atormentava desde o nascimento. Mas, para ele, eram tais passatempos proibidos. Porque é preciso encher celeiro e tulha. Que o Inverno é mandrião! Come e não produz. Por isso, o Abílio cedo se fez homem. Enquanto o comum dos garotos mirrava de fome e de frio, o Abílio fazia-se homem.
Aos vinte anos, nas festas da Vila, a Libaninha transformara-lhe o sangue num mar oceano. Na noite de S. João, passaram o baile agarrados, a saracotear, envoltos em fumo e em desejo. E, na madrugada, entontecido pelas melodias da concertina, enleado no corpo mole e abandonado da rapariga, espicaçado pelo borbulhão do sangue, filou a pequena pelo braço e puxou-a até ao vão da escadaria do tribunal de comarca.
 Desde então, quantas festas e romarias... Quantas Libaninhas... já nem ele sabe. Ainda lembra a Rosa dos Chãos, de linguajar fácil e impudico. E a Floralva, ingénua e tímida, que só conheceu naquela noite e queria já acompanhá-lo no seu regresso a casa:
– Tu és doida, rapariga! Ele, para isso, há um ror de tempo... – fazia o Abílio, virando as costas e atirando ao ar os braços longos e enfadados.
E recorda também a Moura, uma estampa, mais conhecedora de homens do que, segundo dizem, Maria Madalena. E a Zélia, que se deitava nas bermas dos caminhos em troca de uma misérrima cesta de batatas com que matasse a fome em dias de Inverno mandrião... E a velha Serafina, de fundas rugas na cara e coxas avantajadas, que se gabava de lhe terem passado pela mão mais homens do que as luzinhas da Estrada de Santiago...
Mas, um dia, a Laurinha trocou-lhe as voltas. Ele nalguma ocasião um homem há-de tomar assento.
Do Castedo à sede comarcã vão três léguas. Mas, santo Deus, palmilhar Trás-os-Montes no Verão é uma indulgência. O planalto é aberto, corrido. Mas, na fragada, deixa-se tombar abruptamente para o vale. E os caminhos, as veredas e azinhagas, moldados pela vontade indomável do trasmontano, descem coleantes, tortuosos, pisados de séculos pelos carros de bois, lentos e esforçados, e pelo passarinhar de animais e de gentes na labuta diária.
Visto do Sabor, o planalto é o monte Nebo de onde Moisés mirou, deslumbrado e pesaroso, os ribeiros e riachos transbordantes de leite e mel que inundaram a terra prometida.
No lusco-fusco, os caminhantes tropeçam nas pedras soltas... Nas raízes dos pinheiros e dos zimbros que ladeiam atalhos e veredas... Na ansiedade de chegar cedo à feira anual da vila. Acompanham-nos os últimos sons estríduos dos grilos musiqueiros, discretos e noctívagos. Quando atravessam o vale, ainda se respira uma aragem humedecida do rocio nocturno. Porque é preciso evitar os mosquitos portadores de maleitas, de febres e de sezões. Que tais maleitas querem-se no calor...
Depois da Ponte do Sabor, são dois palmos de caminho.
Com a chegada à feira, nasce-lhes o Sol no horizonte. E, na alma, cresce-lhes a aurora diáfana e suave das manhãs de S. João.
A  Laurinha, franzina, olhos tímidos e saudosos, deslumbrados com o mundo e com as gentes, era um palminho de cara. Trouxeram-na para a vida os primevos anos do século XX, no planalto castedense. Na serra, como se diz na Ribeira. Eram tempos e latitudes em que se vivia e morria no local onde, pela primeira vez, se abriam os olhos.
O odor acre dos pinheiros, o aroma selvagem da bela luz e do rosmaninho, a sombra encortiçada e rugosa dos sobreiros altivos e possantes... Ali assistiam intermináveis e rotineiros a baptismos, a enlaces, a actos de encomendação para o Além. Prisioneiros dos lugares e das condições de nascimento, homens e mulheres abundantemente traziam vida, com a mesma abundância com que a natureza se encarregava de corrigir descuidos ou desmandos.
Mas a Laurinha, cadete de nove rebentos, a despeito de franzina, era de fibra temperada a fogo e a gelo.
– Tem vossemecê filhos? E quantos? – queriam, amiúde, saber alguns forasteiros em ocasionais encontros de feiras e de mercados.
– São nove, saiba vossemecê! Todos de ferro, benza-os Deus! – afirmava orgulhoso o Miguel Sá, agerásico, olhos azulados, saudosos daquela ancestralidade do mar provençal trazido até ao planalto pelos invasores franceses, levantando ligeiramente a aba respeitosa do chapéu escuro que lhe cobria uma ampla testa, larga de cinquenta anos muito vividos e trabalhosos.
E era verdade. Todos os anos, pelos meses quentes e sequiosos de Julho e Agosto, a aldeia regava com lágrimas e com suor um corrupio de anjos mal acordados para a vida já levados ao descanso que não finda. Mas o Ti Miguel Sá – Miguel Eduardo Sá, gostava ele de repisar – e a sua Maria da Luz eram basálticos.
– Eu e os meus somos de boa cepa! – sorria, interiormente agradecido.
Naquela manhã, a vila acordara buliçosa. Gente daqui e dali, o rural e o citadino, o rústico e o erudito, das aldeias e das vilas, das quintas e dos casais... Um formigueiro desordenado, caótico. Vendem-se galinhas e ovos, compram-se legumes e primores, apregoam-
-se unguentos e mezinhas, gritam-se imprecações e ordens. E, por todo o largo amplo da feira, ouve-se o hilariante zurrar do gado asinino preso pela arreata a grossas argolas suspensas das paredes vetustas de séculos ou em correrias de experiência nas mãos de ciganos e outros negociantes.
 Aqui e ali, gritos inseguros de criança e irreverentes imprecações de jovens ansiosos pela vida. E, pelas esquinas da praça, apoiados em toscos bordões de carvalho negral, um ou outro idoso transeunte, de tronco vergado menos ao peso dos seus pecadilhos de jovem do que das saudades de um tempo que lhes fugiu.
E a Laurinha, humilde de alma e de corpo franzina, assustada,  olhos oblongos de amêndoa, mirava e remirava a praça e as coisas, os animais e as pessoas... E olhava tudo com aquele semblante de deslumbramento ingénuo e infantil.
De sopetão, a um canto da praça, a perseguir as notas dolentes da concertina, aquela voz traiçoeira, inebriante, tentadora:


Quereis que cante?
Dai-me dinheiro.
Que a minha gargantinha
Não é fole de ferreiro.

À passagem dos foliões, a Laurinha levantou os olhos, humílima, para o cantador e deixou enrubescer a face. Ao Abílio caiu-lhe a alma. Suspendeu a marcha e o canto e colocou tocador e acompanhantes em semi-círculo:
– Venha daí um abraço... Dos velhos, Ti Miguel Sá...
– Sempre na estroina, seu alma danada!
– Sabe como é, Ti Miguel... O espírito quer-se temperado com as folias do corpo! Caso contrário, nem um nem outro encontram porto de salvação.
– Vai passando, um dia, lá por cima... Na serra também há mundo... E sempre haverá por lá um copo...
– Passo, Ti Miguel. Um dia, passo...
Ensaiou um exercício de memória, fez um gesto ao tocador e logo continuou a toadilha:

Ó menina coradinha,
Em que água lava o rosto?
Na água da melancia,
Criada no mês de Agosto.

E, no domingo seguinte, às onze em ponto, que o padre é homem de horas, o nosso homem levou a alma plena, ampla, à igreja do Castedo. E também no seguinte... E, depois, no outro... E nos outros...
Ao Miguel Sá agradava o rapaz. Ainda que mais velho, agradava. Agradava-lhe a vara comarcã. Mas, sobretudo, espicaçava-o a posse de meio vale.
– E que dizes tu, Maria da Luz?... Ele lá tem vara de juiz... Não é para qualquer um...
– Ele, homem de Deus, lá gosta de folias, mas...
– Pois, mas é trabalhador. É um moiro. E, de bens ao luar, conversados estamos...
– E tu que dizes, Cândida? Ó Conceição, e tu? – quis saber a mãe.
– Para aqui não são as pequenas chamadas. Tu, Manel... Tu, Silvestre... Sois já homens... Que sabeis vós lá dele? Ele andará por aí com intenção ou...
– Anda, pois. Fique vossemecê sabendo...
– Porque, se não, a qualquer instante se lhe põe o dedo no nariz. Pst, ó menino, é ter cuidado. Que as minhas filhas são netas do Manel Sá, não são mulheres de rua, ouves-me tu?
O Miguel Sá era um mouro de trabalho e um bovino de força e determinação. As terras do planalto dão testemunho...
Temperado ora por calores de forno, ora por frios polares, desde sempre fora o ai-jesus da família. A sua chegada foi como a vinda de um Messias. Nem Simeão ficou mais ledo quando lhe apresentaram o Menino-Deus. Porque um homem carrega culto e nome e descendência...
 Aos dezasseis anos, cansado por secretas zangas e exausto por incógnitos desencontros com o pai, decidiu como no evangelho se diz. Deixou pai e mãe, a casa, a adega, a tulha, largou porta fora e foi tomar enlace com a sua Maria da Luz, cinco anos mais velha, de aspecto franzino, mas de uma persistência sem limites. Foram um só. E, nas intimidades do Museto, a condição humana trouxe-lhe nove rebentos ágeis e espertos que nem judeus. E ele, visionário cidadão do mundo, cedo lhes incutiu no corpo e no espírito os direitos da mente e os deveres da salvação.
Nos domingos de tarde, comida a refeição a que não faltavam abluções e preces, reunia a filharada, puxava ora do Êxodo, ora do Génesis, hoje do Números, amanhã do Levítico, tudo muito velho do tempo e coçado do uso, e lia. Em voz alta e segura, lia guerras de Saul e sentenças de Salomão... Lia histórias de leões e de fornalhas... Lia  rios  de  leite  e  de mel... Lia dilúvios e bonanças... Chamavam a esse exercício ler a Bíblia. E ai de quem pestanejasse antes de terminada a função.
E, nos longos serões de Inverno, quando, lá fora, o vale se cobre de água e o planalto sucumbe ao peso da neve, juntava toda a prole à volta da lareira e passava demoradamente as contas do rosário de dores da vida e do mundo. E, por fim, a ladainha de todos os anjos e arcanjos... Das virtudes e das potestades... Dos querubins e dos  serafins...  De todos os santos e mártires das cortes celestiais.
– São Judas Tadeu, rogai por nós... Olha por lá não te cortes nessa faca, Maria da Luz...
– São Pedro e São Paulo, rogai por nós...
As mais novas, havia tempo, bocejavam, dormitavam. Os dois rapazes, ariscos e distraídos, desenhavam grandes círculos encarnados com as pontas incandescentes das vergas de giesta a arder na lareira. Mas, quem se levantasse antes de terminada a função, arriscava-se.
– Santa Maria Madalena... Olha que levas uma tenazada, Silvestre! Rogai por nós...
E continuava largamente a invocação dos mortos e as preces pelas intenções dos vivos...
 

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